Embora os dados oficiais permitam identificar grupos de mulheres que enfrentam maior vulnerabilidade em casos de feminicídio, como as mulheres negras, percebemos que, mesmo uma década após a criação da lei que define esse crime (Lei nº 13.104/2015, de 9 de março de 2015), o feminicídio segue sendo um problema grave e real, capaz de destruir a vida de qualquer uma de nós.

Em 2024, conforme informações do Sistema Único de Segurança Pública, 1.459 mulheres foram assassinadas no país por razão de gênero: em média quatro vítimas de feminicídio por dia. De acordo com o texto legal, é feminicídio “quando o crime envolve: violência doméstica e familiar; menosprezo ou discriminação à condição de mulher”.

A causa é sempre a mesma: uma cultura machista, patriarcal, que molda e é reafirmada pelas estruturas de poder e por agentes envolvidos na dinâmica das relações sociais, que nos “ensina” (apesar de haver resistência) que corpos de mulheres, em suas múltiplas possibilidades, valem menos, podem menos e devem ser objetificados, dominados, inferiorizados, subjugados e até eliminados.

Essa mesma cultura define e reforça estereótipos sobre papeis de gênero e comportamentos socialmente esperados das mulheres, que quando ousam desafiá-los e subvertê-los, muitas vezes, sofrem graves consequências, como desvalorização social, represálias financeiras, agressões físicas e psicológicas e até a morte. A situação se torna ainda mais grave quando atravessada por outros marcadores sociais, como raça, classe, deficiência, que se articulam potencializando ainda mais o risco de morrer.

As justificativas apresentadas para camuflar a verdadeira raiz do problema, no entanto, são diversas. Na pesquisa “Os feminicídios em Santa Catarina e a cobertura jornalística: mapeamento de um problema público”, que nós, do grupo Transverso, desenvolvemos entre 2021 e 2023, sob coordenação da professora Terezinha Silva, identificamos muitas vezes menção ao término de relacionamentos, tentativas de rompimento, crises de ciúmes como motivo para o feminicídio cometido.

Em alguns casos chega-se a falar, ainda hoje, em “crime passional”, sem qualquer problematização considerando as críticas suscitadas há décadas a essa expressão, que romantiza o crime e descontextualiza completamente a questão de ódio ao gênero associada à situação. 

“Crime passional” também foi a expressão usada na sexta-feira 7 de março de 2025 pela apresentadora Patrícia Poeta, ao informar ao vivo para o pai da jovem Vitória, estudante assassinada em Cajamar, na Grande São Paulo, o que havia acontecido com ela. “Seria crime passional. Daniel [apontado pela polícia como o assassino] seria namorado do ex-namorado da sua filha. Ou seja, é um crime passional em outras palavras”, disse ela. Importante ressaltar, ainda, que inclusive no meio jurídico o uso de tal terminologia já foi reconhecido como um equívoco.

Além da profunda insensibilidade que marca o caso, a negligência por parte dos meios de comunicação, entre eles os de jornalismo, em relação à dimensão estrutural do problema é muito prejudicial, pois deixa de contribuir para que a sociedade compreenda que a violência de gênero está situada no quadro mais amplo de valores sociais ligados ao machismo, ao patriarcado, à misoginia e ao sexismo, não se tratando, portanto, de um caso isolado.

Outro caso recente gerou comoção no país: o feminicídio da jornalista Vanessa Ricarte, de 42 anos, assassinada pelo ex-noivo, Caio Nascimento, horas depois de buscar atendimento na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam), em Campo Grande (MS).

Em um trecho do áudio que ela enviou a uma amiga, relatando falhas no atendimento depois de registrar boletim de ocorrência contra o agressor, Vanessa parecia acreditar estar a salvo por ser uma mulher instruída. Nesse sentido, ela afirmou: “Eu que tenho toda instrução, escolaridade, fui tratada dessa maneira, imagine uma mulher vulnerável, sem ter uma rede de apoio nenhuma. Essas que são mortas, essas que vão para a estatística do feminicídio“, disse.

A realidade mostra que qualquer uma de nós corre o risco de “ir para a estatística” a qualquer momento. Por isso, muito além de garantir medidas reativas, como os mecanismos de punição, é fundamental que sejam implementadas políticas e ações públicas voltadas a evitar e prevenir as violências e os feminicídios.

Para isso é preciso transformar a cultura machista e misógina que resulta nestes crimes com motivação de gênero. Algumas possibilidades, que têm sido apontadas pelo grupo Transverso, são campanhas educativas permanentes, ações em escolas e em outros espaços sociais. 

Toda essa mobilização se torna ainda mais urgente diante das recentes tentativas de apagamento do conceito de feminicídio, como o que ocorre na vizinha Argentina. Por lá, o governo do presidente Javier Milei elabora um projeto de lei para eliminar o feminicídio do Código Penal por considerar que “o feminismo radical é uma distorção do conceito de igualdade”, conforme declarou durante o Fórum de Davos, em janeiro deste ano.

Igualdade que nós e tantas outras que nos antecederam nunca vivenciaram, mas pela qual continuamos lutando corajosamente, na academia, no mundo do trabalho, na política institucional, nas ruas e em nossas rotinas domésticas.

A medida anunciada por Milei reforça que é preciso lutar constantemente para que os nossos direitos não retrocedam. No Brasil, em outubro de 2024, entrou em vigor uma nova lei que tornou o feminicídio um crime autônomo, com características próprias e independentes (Lei 14.994, de 2024).

Além de aumentar a pena para até 40 anos de prisão, o novo texto introduziu condições agravantes, que podem elevar a pena em até um terço. São exemplos das agravantes: quando o feminicídio é cometido durante a gestação, nos três meses posteriores ao parto ou quando é cometido na presença de pais ou dos filhos da vítima.

Apesar de haver discordância no meio jurídico e em espaços de reflexão acadêmica sobre a efetividade da punição, como o encarceramento, como medida de prevenção, a lei trouxe outros efeitos, que podem ser considerados importantes para coibir a violência contra a mulher: após proclamada a sentença, o agressor perde o poder familiar, da tutela ou da curatela; e ficam vedadas a nomeação, designação ou diplomação em qualquer cargo, função pública ou mandato eletivo entre o trânsito julgado da condenação e o efetivo cumprimento da pena.

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  • Thais Araujo

    Jornalista, mestra e doutoranda em Jornalismo (UFSC), pesquisadora nos grupos Transverso e DhJor (Jornalismo e Direitos...

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