Feminicídio não é crime passional: 10 Anos da Lei e o equívoco de Patrícia Poeta
Enquanto no meio jurídico o uso da terminologia “crime passional” em relação ao crime de feminicídio já foi reconhecido como um equívoco, a mídia segue reproduzindo estereótipos que reforçam preconceitos de gênero.
Embora os dados oficiais permitam identificar grupos de mulheres que enfrentam maior vulnerabilidade em casos de feminicídio, como as mulheres negras, percebemos que, mesmo uma década após a criação da lei que define esse crime (Lei nº 13.104/2015, de 9 de março de 2015), o feminicídio segue sendo um problema grave e real, capaz de destruir a vida de qualquer uma de nós.
Em 2024, conforme informações do Sistema Único de Segurança Pública, 1.459 mulheres foram assassinadas no país por razão de gênero: em média quatro vítimas de feminicídio por dia. De acordo com o texto legal, é feminicídio “quando o crime envolve: violência doméstica e familiar; menosprezo ou discriminação à condição de mulher”.
A causa é sempre a mesma: uma cultura machista, patriarcal, que molda e é reafirmada pelas estruturas de poder e por agentes envolvidos na dinâmica das relações sociais, que nos “ensina” (apesar de haver resistência) que corpos de mulheres, em suas múltiplas possibilidades, valem menos, podem menos e devem ser objetificados, dominados, inferiorizados, subjugados e até eliminados.
Essa mesma cultura define e reforça estereótipos sobre papeis de gênero e comportamentos socialmente esperados das mulheres, que quando ousam desafiá-los e subvertê-los, muitas vezes, sofrem graves consequências, como desvalorização social, represálias financeiras, agressões físicas e psicológicas e até a morte. A situação se torna ainda mais grave quando atravessada por outros marcadores sociais, como raça, classe, deficiência, que se articulam potencializando ainda mais o risco de morrer.
As justificativas apresentadas para camuflar a verdadeira raiz do problema, no entanto, são diversas. Na pesquisa “Os feminicídios em Santa Catarina e a cobertura jornalística: mapeamento de um problema público”, que nós, do grupo Transverso, desenvolvemos entre 2021 e 2023, sob coordenação da professora Terezinha Silva, identificamos muitas vezes menção ao término de relacionamentos, tentativas de rompimento, crises de ciúmes como motivo para o feminicídio cometido.
Em alguns casos chega-se a falar, ainda hoje, em “crime passional”, sem qualquer problematização considerando as críticas suscitadas há décadas a essa expressão, que romantiza o crime e descontextualiza completamente a questão de ódio ao gênero associada à situação.
“Crime passional” também foi a expressão usada na sexta-feira 7 de março de 2025 pela apresentadora Patrícia Poeta, ao informar ao vivo para o pai da jovem Vitória, estudante assassinada em Cajamar, na Grande São Paulo, o que havia acontecido com ela. “Seria crime passional. Daniel [apontado pela polícia como o assassino] seria namorado do ex-namorado da sua filha. Ou seja, é um crime passional em outras palavras”, disse ela. Importante ressaltar, ainda, que inclusive no meio jurídico o uso de tal terminologia já foi reconhecido como um equívoco.
Além da profunda insensibilidade que marca o caso, a negligência por parte dos meios de comunicação, entre eles os de jornalismo, em relação à dimensão estrutural do problema é muito prejudicial, pois deixa de contribuir para que a sociedade compreenda que a violência de gênero está situada no quadro mais amplo de valores sociais ligados ao machismo, ao patriarcado, à misoginia e ao sexismo, não se tratando, portanto, de um caso isolado.
Outro caso recente gerou comoção no país: o feminicídio da jornalista Vanessa Ricarte, de 42 anos, assassinada pelo ex-noivo, Caio Nascimento, horas depois de buscar atendimento na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam), em Campo Grande (MS).
Em um trecho do áudio que ela enviou a uma amiga, relatando falhas no atendimento depois de registrar boletim de ocorrência contra o agressor, Vanessa parecia acreditar estar a salvo por ser uma mulher instruída. Nesse sentido, ela afirmou: “Eu que tenho toda instrução, escolaridade, fui tratada dessa maneira, imagine uma mulher vulnerável, sem ter uma rede de apoio nenhuma. Essas que são mortas, essas que vão para a estatística do feminicídio“, disse.
A realidade mostra que qualquer uma de nós corre o risco de “ir para a estatística” a qualquer momento. Por isso, muito além de garantir medidas reativas, como os mecanismos de punição, é fundamental que sejam implementadas políticas e ações públicas voltadas a evitar e prevenir as violências e os feminicídios.
Para isso é preciso transformar a cultura machista e misógina que resulta nestes crimes com motivação de gênero. Algumas possibilidades, que têm sido apontadas pelo grupo Transverso, são campanhas educativas permanentes, ações em escolas e em outros espaços sociais.
Toda essa mobilização se torna ainda mais urgente diante das recentes tentativas de apagamento do conceito de feminicídio, como o que ocorre na vizinha Argentina. Por lá, o governo do presidente Javier Milei elabora um projeto de lei para eliminar o feminicídio do Código Penal por considerar que “o feminismo radical é uma distorção do conceito de igualdade”, conforme declarou durante o Fórum de Davos, em janeiro deste ano.
Igualdade que nós e tantas outras que nos antecederam nunca vivenciaram, mas pela qual continuamos lutando corajosamente, na academia, no mundo do trabalho, na política institucional, nas ruas e em nossas rotinas domésticas.
A medida anunciada por Milei reforça que é preciso lutar constantemente para que os nossos direitos não retrocedam. No Brasil, em outubro de 2024, entrou em vigor uma nova lei que tornou o feminicídio um crime autônomo, com características próprias e independentes (Lei 14.994, de 2024).
Além de aumentar a pena para até 40 anos de prisão, o novo texto introduziu condições agravantes, que podem elevar a pena em até um terço. São exemplos das agravantes: quando o feminicídio é cometido durante a gestação, nos três meses posteriores ao parto ou quando é cometido na presença de pais ou dos filhos da vítima.
Apesar de haver discordância no meio jurídico e em espaços de reflexão acadêmica sobre a efetividade da punição, como o encarceramento, como medida de prevenção, a lei trouxe outros efeitos, que podem ser considerados importantes para coibir a violência contra a mulher: após proclamada a sentença, o agressor perde o poder familiar, da tutela ou da curatela; e ficam vedadas a nomeação, designação ou diplomação em qualquer cargo, função pública ou mandato eletivo entre o trânsito julgado da condenação e o efetivo cumprimento da pena.