A conquista de nossas irmãs argentinas pelo direito ao aborto legal é uma conquista pela autonomia, cidadania e vida. Como muitas colegas escreveram, trata-se do resultado de um movimento argentino articulado de mulheres sob uma pauta específica: Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto, que em 2018 completou 13 anos. A batalha foi ganha, mais ainda é necessário que a lei passe no Senado.
Não pretendo aqui discutir o processo Argentino, mas colocar algumas impressões e ponderações sobre o Brasil ao acompanhar as votações. Ficou evidente o impacto da maré verde, da pressão popular, das mulheres organizadas e atuantes na rua. Mesmo àqueles que votaram contrários a lei, tiveram que fazer algum tipo de manobra verbal, explicar-se para estas mulheres, não possível apenas afirmar que votavam pela “família”, que votavam “por Deus” – como ouvimos à exaustão na votação do impeachment. As mulheres, as feministas, àquelas de lenços de verde nas ruas, estas eram interlocutoras impossíveis de ignorar ou menosprezar.
A mobilização gigantesca das mulheres tornou a sua presença, enquanto sujeitas um fato incontornável dentro daquele congresso. As mulheres que também votaram contra, também tiveram que justificar-se enquanto mulheres, destacaram seu trabalho como pioneiras, como ativistas, como mulheres engajadas.
O que percebo então, é que as feministas hoje, na Argentina são interlocutoras legítimas, o que descarta ataques morais/cristãos rasos, é necessário, pelo menos neste caso, argumentos vestidos de alguma lógica.
Como feminista e brasileira, acho que essa é uma conquista e tanto. Não estou falando da votação histórica em si, mas sim do que veio junto com isso: a evidência de que o movimento de mulheres é um sujeito político fundamental, gigante, e que não é possível desprezar, menosprezar e diminuir sua potência histórica – mesmo os oponentes de projeto histórico feminista tiveram que lidar com isso. Vivendo em um país em que o que mais se vê são ataques vazios e de cunho moralista, parabenizo as feministas argentinas por mais essa conquista.
Faço um alerta para a possibilidade que temos diante de nós: tramita neste momento, no Supremo Tribunal Federal (STF) a ADPF 442, protocolada pelo PSOL. Não é uma lei, como no caso de nossas vizinhas, mas uma arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, que defende a tese de que “que as razões jurídicas que moveram a criminalização do aborto pelo Código Penal de 1940 não se sustentam, porque violam os preceitos fundamentais da dignidade da pessoa humana, da cidadania, da não discriminação, da inviolabilidade da vida, da liberdade, da igualdade, da proibição de tortura ou tratamento desumano ou degradante, da saúde e do planejamento familiar de mulheres, adolescentes e meninas”. Além disso, a peça pretende questionar a razoabilidade de criminalizar o aborto sob a justificativa de que a defesa do feto e do embrião estariam asseguradas na Constituição.
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Um ponto fundamental na argumentação dessa ADPF é de que as demandas feitas nessa ação estão em consonância com outras ações e respostas anteriormente dadas pelo STF. Faz-se um apelo, para: (1) que a demanda pela descriminalização seja entendida como resultado de um processo cumulativo, consistente e coerente da própria Corte no enfrentamento da questão do aborto como uma matéria de direitos fundamentais; (2) que os ministros avaliem as demandas dessa ADPF, tendo em vista os posicionamentos anteriores da Corte, cujos princípios funcionarão como base para a elaboração de seus votos nesse caso específico.
Há, assim, um apelo para uma linha de continuidade entre as decisões já tomadas pelo STF, e, ainda, uma reivindicação de que o que se está em pauta não é a questão da moralidade da prática do aborto. A questão argumentativa central é de que a criminalização do aborto – criminalização que está contida em nos artigos 124 e 126 do Código Penal de 1940, anterior à Constituição de 1988 – configura violação à dignidade da pessoa humana, à cidadania, à não discriminação de mulheres, e impacta nos direitos à vida, à liberdade, à igualdade, à proibição da tortura e ao planejamento familiar de mulheres, ainda, que mulheres negras, indígenas, nordestinas e pobres são as que têm as suas vidas mais negativamente afetadas pela criminalização da prática.
Está nas mãos do judiciário a possibilidade de uma maior segurança e autonomia das mulheres brasileiras. O judiciário tem sido o caminho adotado por muitos movimentos sociais que diante de um legislativo conservador e a atualmente reacionário, procura na Justiça o espaço de reivindicações por direitos e cidadania. Se por um lado, não entendo como intrinsicamente negativo o fato de a nossa demanda pelo aborto estar tramitando no judiciário, final temos que lutar nas frentes possíveis e com as armas que temos, por outro, observo na movimentação feminista brasileira em torno do aborto, uma ênfase mais institucional, seja como quadros de Estado (algo possível até o golpe), ou como lobistas no Judiciário. Estes são caminhos válidos, importantes e necessários, porém, não sustentável: sem pressão popular, sem a força contundente das ruas fica difícil encampar qualquer decisão e posicionamento realmente feminista e de autonomia para as mulheres.
Em 3 e 6 de agosto teremos audiências públicas no STF, referentes à ADPF 442, ouviremos argumentos favoráveis e contrários mas o que me atormente é pensar que diferentemente da Argentina, nossos opositores não terão pudor algum em desmoralizar o movimento de mulheres, e ainda fundamentar seus posicionamentos em argumentos cristãos de defesa pela “vida” e pela “família” sem realmente levar em conta o que, de fato está em jogo: a vida das mulheres e o fato de que abortos sempre foram e continuarão a se realizar neste país.
A pauta do aborto nunca foi prioritária pelas esquerdas, nem mesmo no campo feminista há um consenso sobre sua centralidade, entretanto, com a guinada conservadora e com o avanço destes grupos sobre os corpos femininos, os inúmeros Projetos de Lei com o objetivo de retroceder nos poucos direitos reprodutivos que tínhamos, esse quadro começa a mudar. Marchas e movimentações feministas foram articuladas no Brasil todo, não restando dúvidas sobre a potência combativa das mulheres no país. Então, agora é hora de surfar na maré verde, reforçando os movimentos feministas de rua e colocando a pauta do aborto como urgente, não só para as mulheres, mas para a democracia no Brasil. Temos que, assim como as Argentinas, nos fortalecer enquanto movimento popular, de modo que nossa presença – enquanto movimento articulado pelos direitos e autonomia – seja uma presença incontornável nos debates em que a vida das mulheres estejam em jogo. É hora de reafirmar-nos enquanto sujeitas revolucionárias fazendo a América Latina feminista.
*Maria Ligia Elias é doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutoranda na Universidade Nacional de Brasília (UNB).