Muitas vezes, saem-me da garganta palavras furiosas em letras de cor de sangue, esculpem verbos em lamentos uterinos. Queimam minhas células em acessos de cólera a cada mulher que tomba na ponta de uma faca –  Elenir Fontão, presente! Me toca fundo esse lamaçal de feminicídios que a ordem patriarcal estruturou para submeter e calar as mulheres. É inevitável que me saiam versos trágicos. Então, vomito demônios.

Enfureço-me  a cada mulher estilhaçada por uma bala de projétil;  ou esquartejada com requintes sórdidos; ou chutada pelos pés de um machista; ou queimada pela ira de dogmas; ou vendida em açougues fedorentos; ou prostituída nas redes de rufiões; ou  estuprada por homens podres; ou todas essas monstruosidades no corpo da mesma mulher 

Violentadas, todas o são de alguma forma: nenhuma mulher passa pela vida sem que tenha tido desconfortos com algum tipo de violência pelo fato de ser mulher.  Desumanizadas por terem entre as pernas uma vagina, lugar também de poder, eles as castram dos desejos. Então, eles as matam quando elas querem suas vontades respeitadas, as degolam por ciúmes abjetos, nelas atiram como fascínoras, as traficam em jaulas repugnantes, as esquartejam  de forma atroz, as prostituem como objetos, as queimam com vilania, as estupram como prova viril. E, destas violências ficam as marcas. Algumas podem cicatrizar com o tempo, mas todas elas carregam memórias da dor e levam para o túmulo. 

Nossas avós e mães, foram educadas para exercícios prescritos na ordem das culturas. A elas não caberiam tribunas, nem o espaço público, nenhum comando e nem negócios. Jamais para o exercício da liberdade. Bradaram, e bradam, os homens das bíblias que tentações eram fraqueza da alma e que nosso corpo não nos pertence. Convencionaram os homens das ciências que tormentos e desprazeres do corpo eram doença uterina. Estipularam que a maternidade nos submete à eterna fragilidade. Trataram nossos corpos como parque de diversões. Vociferaram que nosso o cérebro era menor e por isso o espaço público não nos pertencia. Ignoraram que somos fêmeas orgásticas, sujeitas de direito, cidadãs e nossa inteligência foi subestimada.

Hoje ainda, enfurecidos bandidos nos demonizam em púlpitos. Nos querem como éramos tratadas no tempo das bruxas, quietas e passivas, de “volta ao lar”, como se dele tivéssemos saído nas lides de duplas e triplas jornadas de trabalho.  Nos querem ver de novo sem direitos de voz e opinião. Sem orgasmos e prazeres. Sem diplomas e tribunas. Não sabem eles que, 

 

Desde quando nos queimaram 

nas fogueiras 

não paramos mais de arder 

nossos úteros carregam a fúria

 de nossas cúmplices ancestrais 

somos feitas do barro que as limalhas

não conseguiram romper. 

 

Não nos exterminaram. Continuamos em todos os lugares. Nos mexemos e somos barulhentas. Nos refazemos e nos multiplicamos em ações e movimentos por liberdade. Somos mulheres: somos a metade humana que habita este planeta. Somos múltiplas, diversas na raça, etnia, geração, classe, sexualidades. Somos categoria política, recarregando forças e  reivindicando nossos lugares de voz e de direitos inalienáveis. Bradamos “ele não” em combates contra os fascismos. Elas, as mulheres, resistem. Nós resistimos, e resistiremos. Somos feitas de potência e orgasmos revolucionários todos os dias do ano.   

O FEMINISMO NÃO TEM VOLTA!

 

*Marlene de Fáveri Professora do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da UDESC, onde leciona a disciplina de História e Relações de Gênero. Coordenadora do Grupo de Pesquisa “Relações de Gênero e Família” (CNPQ), e do Laboratório de Relações de Gênero e Família (LABGEF). Membro do Grupo de Trabalho de Gênero da Associação Nacional de História (ANPUH), e do Instituto de Estudos de Gênero (IEG). Autora de livros e artigos de História, Gênero e Feminismo. Militante pelos direitos humanos, integrou o Conselho Municipal dos Direitos das Mulheres de Florianópolis (COMDIM).

Veja a coluna da Marlene de Fáveri

 

 

Palavras-chave:
Marlene de Fáveri

Marlene de Fáveri, natural de Santa Catarina, Historiadora, professora Aposentada do Departamento de História da UDESC. Membro do Laboratório de Relações de Gênero e Família (LABGEF), do Instituto de Estudos de Gênero (IEG), do GTGênero (ANPUH Brasil) e da Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil (AJEB). Autora de artigos, capítulos de livros e artigos de História, Gênero, Feminismo, Divórcio, Mercado do Sexo, Mídias. Foi processada em 2016 por ex aluna no teor da ‘escola da mordaça”, vencedora no processo. É feminista, poetisa, escritora e militante pelos Direitos Humanos e cidadania, com foco nos direitos das mulheres. Participa do Grupo de Poetas e Escritores Mario Quintana, fundado em Itajaí em 1988, com publicações em coletâneas e diversas premiações, como para o Off Flip 3023. É colunista no Portal Catarinas - jornalismo com perspectiva de Gênero. Em 2021, publicou dois (02) volumes de Crônicas da incontingência da clausura – cotidianos da pandemia (Letras Contemporâneas) uma série de 54 crônicas escritas no calor dos acontecimentos da pandemia, com foco no feminismo e nas fissuras de viver num tempo pandêmico. Em 2022, escreveu e organizou o livro O Ultrarrealismo na cena literária de Itajaí (Traços & Capturas), e o livro de poesias feministas: Se pulsa, arde e resiste (Infinitta Leitura).

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