Por Itandehui Reyes-Díaz.
Tradução: Nicole Ballesteros Albornoz  

O que parecia una geração espontânea no terceiro chamado da Greve Internacional Feminista, não é. Para que uma avalanche de milhares de mulheres colocará seu corpo com tanto ímpeto nas ruas, teve por detrás um processo organizativo tecido com paciência, assembleias e mais assembleias, acordo sobre acordo. Palavras cuidadosamente escolhidas, gestão de tempos e formas.

Acorpadadas na rede Yo si voy 8 de Marzo, nascida em 2014, após seis assembleias públicas e abertas, o núcleo organizador das jornadas do 8M da capital jalisciense decidiu ocupar a Avenida Alcalde. Justo ao lado da catedral emblema do conservadorismo católico. Um enorme pañuelo verde anuncia a entrada ao território rebelde: “A maternidade será desejada o não será”.

Frente a rotunda de figuras ilustres – quinze estátuas de homens que se destacaram na região – foram montadas três lonas: Vulva, Desejo e Liberdade para a realização das oficinas. Em algumas destas, se tratou de vincular o corpo de todas a reflexão a partir das palavras: “Jogo de bola feminista”[1], “Mini oficina de poesia de autorretrato”, “Feminismo como pratica transformadora”, “A vulva: possibilidades de prazer”, “Ecofeminismo”, “Tecer como forma de curar”, “Mapeio coletivo”, “O que é o gênero”, “Linha do tempo”, entre outras.

A exemplo, Abril del Angel nos explica a ideia central que é abordada pela ecologia feminista: “A natureza está igualmente oprimida, como as mulheres pelo sistema patriarcal”, nesse cenário a crise ambiental seria o resultado das relações desiguais que existe entre homens e mulheres, como existe do ser humano com relação à natureza. O dialogo coletivo tenta conectar as lutas que tem sido encabeçadas pelas mulheres na defesa dos bens comuns, como em Tariquía, na Bolívia, contra o extrativismo petroleiro; como em Cherán, Michoacán, em defesa do bosque. Onde são Elas, as primeiras que saem em defesa, diante do desmatamento clandestino. Pois, isso nos leva a pensar como parte da natureza se defendendo.

De maneira mais discreta, outras lonas acompanharam a jornada: uma onde se compartilhou a comida e a outra habilitada como ludoteca e creche de responsabilidade dos homens. As 17h, quando a temperatura diminui dos 30 graus, as estátuas da rotunda foram palco de intervenção com pañuelos verdes. Minutos depois, no Paseo Alcalde (avenida) um grupo de mulheres pendura um paliacate[2] no rosto de uma das estátuas: “Nós com as zapatistas”.

Foto: Patricia Tliltik

Maré de emoções

A Pérola do Ocidente, como se conhece esta cidade, a terceira mais grande do México, a uns 500 quilômetros do lado leste da capital, se caracteriza por ter sido durante anos um fiel território católico e região apta para lavar dinheiro oriundo do narcotráfico. “Jalisco terra de Mariachi, Tequila e feminicidio” aponta acertadamente uma ativista. Nos últimos anos, o flagelo da violência paraestatal, o que a narrativa midiática chama “delinquência” tem provocado o desaparecimento e assassinato de 1.500 mulheres. Só em janeiro nos faltam 24 mulheres que foram assassinadas em espaços domésticos e públicos.

Talvez seja por isso que surpreende a radicalidade e a ousadia – aos olhos dos incrédulos – diante da proporção de mulheres jovens que tomaram as ruas do centro histórico, na sexta-feira passada, com a intenção de romper a governamentalidade do medo. A potente manifestação encabeçada com a palavras: “Organizadas paramos a violência! – culminou em um coro de milhares de vozes no Coreto dos desaparecidos e desaparecidas, onde pelo menos 2 mil corpos rebeldes acenderam uma luz, para recordar a chama acendida no Encontro Internacional de Mulheres que Lutam, realizado o ano passado no Caracol Morelia.

Se em cada localidade o chamado da Greve Internacional Feminista ganhou formas singulares ao sair as ruas, em Guadalajara, a própria manifestação promoveu uma série de práticas para buscar um sobrenome ao feminismo. Na vanguarda, uma batucada entusiasta de mulheres de origens e idades diversas foi sabendo como encontrar seu ritmo, seus jarros como tambores ressoam o détournement: “Não – que – re – mos– ma–chos – que –nos – assassinam!”.

Atrás, os cartazes sacudiram as mentes: “Levante-se senhora”, “Não é histeria é história”, “Nós ensinam a ser rivais, dissemos aliadas”, “Orgasmo: direito divino”, “Educação sexual feminista”.

O bloco lesbofeminista com todo seu pulmão reclama existência lésbica: “Pucha (vulva) com pucha, lésbicas na luta! Elas propõem amar as mulheres como política sexual escolhida “porque nós sabemos merecedoras de amor, prazer e força”.

Foto: Foto: Patricia Tliltik

Em seguida, uma companheira do bloco antiespecista, vestida de preto, levanta um desenho de uma manada de animais não humanos ao lado de uma mulher: “meu corpo não se come, não se viola, não se vende”.

Logo, estão as famílias ausentes, acompanham e seguram um varal caminhante por três horas para fazer visível as 1.500 mulheres desaparecidas no estado. O grito desesperado deste bloco provoca arrepios: “Senhor, senhora não seja indiferente, matam as mulheres na cara da gente!

Ao fundo coletivos mistos – zapatistas e comunistas. “Patriarcado e capital, aliança criminal” – puxa o coro um militante aliado.

As bandeiras, negras, verde, roxa, vermelha, colorem minutos antes da marcha. A intervenção performance incluiu acoites e bife de porco, como metáfora do consumo masculino de corpos feminizados. O que poderia parecer um monologo fragmentado pode ser lido como pétalas que coexistem.

Foto: Cláudia Lopez Pardo

O sol ainda não se esconde, na parada da rua Federalismo se tenta acender as primeiras luzes lançadas pelas zapatistas: “(…) pensamos, as respeitamos e as acompanhamos”. Ali um contingente se soma com um banner enorme: “Não aos megaprojetos! Lutar, resistir, o acordo é viver!”.

Como se fosse um pressagio, antes do anoitecer, os tons da tarde transformaram-se em céu violeta. Com o passo pelo edifício da Universidade de Guadalajara, a raiva estrugiu: “Não mais assédio na universidade!” – exige um contingente numeroso de jovens estudantes.

Política de contágio

O que demonstrou o decolar sincronizado dos corpos rebeldes e organizados nesta tarde foi a criação e inteligência coletiva. A cada quem de acordo com a sua capacidade, a cada uma de acordo com seu interesse. Uma espécie de autopoiese. Mas … do que se nutre? Serão os anos de experiência das veteranas, será a empolgação das mais jovens, será a necessidade de buscar outra forma de vida, será claridade politica de algumas? “O que nós tem dado força é a amizade”, reflexiona Evelyne Herrera, da Comissão de Logística.

Mas como gestar as diferenças que realmente existem entre as mulheres? As hierarquias há tempos se diluem, há tempos se tensionam. Mais que a idade ou origem, são as formas, cuidar as formas. “Às vezes reproduzimos o que foi aprendido nas organizações políticas das quais viemos” e, apesar do cansaço, Herrera reconhece o próprio esforço por não “jogar a toalha” durante o processo organizativo. Identifica que tem sido nos círculos de estudos – convocados depois da visita de Silvia Federici a Guadalajara – realizados no espaço feminista Cuerpos Parlantes, onde se tem consolidado um potente laço entre mulheres.

Foto: Patricia Tliltik

Se trata de uma “política de contágio”, explica com agudeza Fernanda Justo Hernández, militante da Organización del Pueblo Trabajador. Ela insiste que o feminismo é justamente uma prática transformadora inserida na luta maior, a anticapitalista e antirracista, daí a necessidade de buscar alianças.

Que existe em comum na experiência da marcha? Para Sarai, desenhadora e fotógrafa, nascida em Mazatlán, região norte do país, a marcha é “um espaço seguro perto do coração” e ao mesmo tempo “um lugar triste porque estamos marchando pelas mulheres que já não estão e que talvez não puderam levantar a voz”. Além das paixões tristes, a maquiagem e a brilhantina, as máscaras, as flores, formaram parte de um ritual alegre e festivo. Encontrar juntas uma pulsão de vida para não “cair com a dor”.

O cuidado das outras está presente: tem alguém que te pergunta se tem colocado protetor solar, porque os raios ainda queimam. Cartazes improvisados e estêncis preparados cuidadosamente para intervenções nos muros lembram que nem tudo está sob controle, que os desbordes são parte do contágio.

Desde outra perspectiva, igualmente situada, a veterana Belinda Aceves Becerra, que trabalha como bibliotecnóloga acompanha o coletivo Mujeres Insurgentes. Organizou a oficina “A linha do tempo dos Direitos das Mulheres” que discorreu pelos chamados direitos humanos das mulheres, que embora tenham tido início na Europa com Olympe de Gouges abarcou as geografias do Meio Oriente e México. “Temos que entender que o patriarcado tem estado presente ao longo da história e temos que reconhecer também onde estavam nossas avós, mães e em que momento nascemos”.

Arelly e Adanelly, duas irmãs de 19 e 21 anos, originárias do povoado de São Marcos, relatam que foi na cidade que conheceram o feminismo, graças ao tema da menstruação. Acudiram a oficina de Belinda, onde descobriram por meio de um diálogo intergeracional que “está luta não é de umas quantas, mas sim de milhares de mulheres através da história”.

Das luzinhas virão uma chamaradaSe as palavras de ordem das manifestantes de esquerda sacrificial rezam assim: “esta marcha não é festa, é luta e protesto”. No passado 8 de março ficou claro que a ação feminista está renovando a linguagem dos protestos de rua. Pode ser que a dor e a tristeza pelos ausentes convoquem muitas, mas longe de afundar na impotência, a raiva digna aparece.

Foto: PatriciaTliltik

Caída a noite, se acenderam as lâmpadas integradas nos centos de celulares, este é o modo urbano de responder a pergunta zapatista que a contratempo obteve centralidade simbólica nas ações. Onde está a luzinha que te demos?

O coro do comunicado num único som foi concluído com euforia: “Companheiras, irmãs, quando estamos juntas se incendeiam dentro de nós, pouco a pouco, umas luzes. São as que nos deram as mulheres zapatistas, que resistem desde as montanhas de Chiapas, mas também são as que nos deram todas as mulheres que lutam no mundo. Talvez nem sempre seja fácil de ver estas luzes, mas no centro delas tem fogo que arde e que se busca crescer. Do nosso tecer virá uma chamarada e brilhará tudo”.

Ao finalizar a marcha, ainda havia energia para a festa. Cuerpos Parlantes, um espaço chave para esta jornada, se ofereceu para uma comemoração não mista. As DJs injetaram ritmo ao que se viveu como um completo êxito coletivo. O núcleo organizador move as cadeiras prazerosamente.

 

[1] Faz referência ao jogo de pelota que teve origens com os povos pré-colombianos da Mesoamérica, se praticava tanto na vida cotidiana como nos rituais.
[2] Lenço com desenho hindu, utilizado para cobrir o rosto das e dos militantes zapatistas.

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