Nos últimos sete anos, 192 processos pelo crime de autoaborto foram enviados ao Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, de acordo com o levantamento do Portal Catarinas. A criminalização estende-se à situação de abortamento espontâneo, conforme apurado em março do ano passado, quando partes de um feto foram encontradas no vaso sanitário, transformando o socorro médico a uma mulher em caso policial. A paciente recebeu assistência em casa pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), foi levada até o Hospital Regional Rosa Pedrossian, onde permaneceu vigiada pela polícia e só recebeu alta depois de ser interrogada. O histórico de abortos espontâneos na sua vida reprodutiva, no entanto, a salvou de ser presa em flagrante.

Ainda que não menstruasse desde novembro, quando fez o primeiro teste de gravidez e resultou negativo, a mulher não sabia da gestação. Segundo esclareceu o delegado da 5ª Delegacia de Polícia de Campo Grande, João Reis Belo, a paciente sentiu fortes cólicas e começou a sangrar, momento em que percebeu que passava por um aborto. Mesmo que os indícios não apontem para o crime de autoaborto, o caso ainda está sob investigação da polícia civil como “morte a esclarecer”. “A mulher e o companheiro informaram que ela tem um histórico de três abortos espontâneos. O médico dela já havia alertado sobre o risco de novas situações. A polícia não descarta a possibilidade de aborto provocado, mas admite que a chance de ter sido espontâneo é muito grande”, esclareceu à época o delegado.

Saúde e polícia
O hospital, o primeiro do estado a oferecer o serviço de aborto legal – previsto por lei nos casos de estupro, feto anencéfalo e gravidez de risco – informou em nota que: “a paciente foi trazida pelo Samu (juntamente já com o feto sem o crânio) com relato de dor em baixo ventre, seguida de sangramento vaginal, com saída de feto via vaginal, no vaso sanitário de sua própria residência. Relata que tracionou o feto para auxiliar a saída. A paciente ficou sob sedação e escolta policial, uma vez que houve denúncia do fato”.

Um médico do setor de obstetrícia, que não quis se identificar, contou que o policiamento gerou desconfiança entre médicas/os e enfermeiras/os que não sabiam de onde havia partido a denúncia. “Ela já chegou escoltada e durante o atendimento houve rotatividade de policiais. Horas antes da alta, uma delegada inquiriu a paciente dentro do hospital”, relata.

Em posicionamento recente, o Samu informou que o sigilo médico pode ser quebrado em algumas situações e que o abortamento é uma delas. “Havendo suspeita de crime, a equipe deverá preservar as evidências e aguardar a chegada de autoridade policial competente previamente comunicada. Neste caso, a confidência, que é um princípio básico na relação médico paciente, pode ser quebrada”.

Na época, a assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Saúde de Campo Grande, à qual o Samu está vinculado, citou a Portaria 2.048/02, do Ministério da Saúde para afirmar que a denúncia à polícia é rotina em suspeita de crime. Porém, a portaria não faz menção à obrigatoriedade de denúncia, pelo contrário, prevê o sigilo como pré-requisito para o exercício profissional. “Velar para que todos os envolvidos na atenção pré-hospitalar observem, rigorosamente, a ética e o sigilo profissional, mesmo nas comunicações radiotelefônicas”.

A norma técnica Regulação Médica das Urgências também reafirma o sigilo como fundamental ao exercício da profissão e orienta que só poderá ser quebrado por “justa causa, dever legal ou autorização expressa do paciente”. A exceção ao sigilo, no entanto, só é possível quando não expuser a paciente a procedimento criminal, conforme prevê o artigo 66 da Lei das Contravenções Penais.

 “O caso de Campo Grande deve nos causar um profundo mal-estar. Primeiro, pela dor desta mulher: de paciente foi transformada em algoz de si mesma, e vigiada como criminosa por quem esperava ser cuidada. Segundo, pela distorção do papel do SAMU ao entrar na intimidade das pessoas em sofrimento – é para cuidar, jamais para vigiar ou denunciar. Por fim, e o mais importante, é por nos mostrar como o estigma do aborto impede até mesmo cuidados emergenciais de saúde. Se há mesmo algo a esclarecer sobre este caso, não é o aborto espontâneo desta mulher, mas a humilhação que sofreu pela violação de sua intimidade”, analisou a antropóloga Débora Diniz em artigo no site Huffpost Brasil.

Especialistas estimam que a interrupção involuntária da gravidez atinge cerca de 20% das gestações. “Há uma lógica criminal impregnada no atendimento à mulher em situação de aborto incompleto, totalmente contrária ao que diz a legislação. Partem do pressuposto de que toda mulher que sofre aborto é criminosa. Outro aspecto grave é a denúncia de um crime feita sem nenhuma evidência”,  Sonia Corrêa, co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política (SPW).

Para a pesquisadora, socorristas deveriam se guiar pela Norma Técnica de Abortamento Humanizado do Ministério da Saúde, segundo a qual o julgamento e a denúncia podem ensejar procedimento criminal, civil e ético-profissional contra quem revelou a informação. “O sigilo na prática profissional da assistência à saúde é um dever legal e ético, salvo para proteção da usuária e com o seu consentimento”, diz a norma.

Atuação da defensoria
Informada pela equipe do Portal Catarinas na época, a coordenadora do Nudem (Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher) da Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul, Edmeiry Silara Broch Festi, manifestou que faria contato com a vítima. “Nós pedimos para que a assistente social do hospital nos coloque em contato com a mulher, uma vez que a atuação da Defensoria Pública deve ser provocada. Em que pese a necessidade de provocação, entendemos que cabe uma maior investigação pelos órgãos responsáveis para saber quem fez a denúncia de aborto”, explicou.

Em entrevista realizada na sede da defensoria, dez meses depois do fato, a coordenadora afirmou que não houve manifestação da vítima. Caso fosse procurada, a defensoria poderia entrar com um mandado de segurança para o trancamento do inquérito ou ação penal, questionando o não cumprimento de direitos, e uma ação de indenização por danos morais e materiais. “A ação não seria preventiva, mas sim para fins de indenização, reparação desses danos e de educação. O Nudem criou mecanismos de expandir o conhecimento para a população e a sociedade, porque muitas vezes as mulheres não conhecem as normas que garantem seus direitos”, colocou a defensora.

Audiência pública contra a PEC 181 realizada em dezembro, no Nudem/Foto: Carlota Philippsen

Edmeiry refere-se à campanha desenvolvida pelo Nudem contra a violência obstétrica, cuja abordagem, no entanto, não contempla situações de discriminação no atendimento pós-abortamento. “A violência obstétrica ainda precisa ser reconhecida, estamos tentando nominar porque ela é invisível. Recentemente, ocorreu em uma audiência pública, ouviu-se falas de que não existe violência obstétrica. O Estado é muito conservador, temos dificuldade maior de penetrar nos organismos, o trabalho é mais árduo”, assinala.

Caso das dez mil”
Campo Grande (MS) protagonizou há onze anos, em abril de 2007, o maior caso de violação de sigilo médico de que se tem notícia no mundo. Cerca de dez mil prontuários médicos foram violados pela polícia durante a investigação de uma clínica de planejamento familiar, deflagrada a partir de uma reportagem feita com câmera escondida pela TV Morena, emissora da TV Globo. Trabalhadoras da clínica que funcionava há 20 anos, pacientes e a proprietária, a anestesista Neide Mota, tiveram suas vidas devastadas. Fichas e prontuários médicos de 9.896 pacientes, que formaram a base dos indiciamentos, denúncias e processos, ficaram disponíveis durante três meses e meio no site do Tribunal de Justiça do estado. Dois anos e meio depois da devassa, a médica foi encontrada morta dentro de seu carro. O inquérito apontou suicídio como causa da morte.

Acesse o livro com histórias de seis mulheres que realizaram aborto na clínica e duas profissionais de saúde que trabalhavam no local.

“Pacientes tiveram sua privacidade violada, seja porque decidiram interromper uma gravidez indesejada ou porque simplesmente fizeram uma consulta. Embora 1.500 mulheres tenham sido indiciadas, não é exagero afirmar que todas as quase dez mil mulheres tiveram seus direitos violados, na medida em que nem o sigilo médico e nem sua privacidade foram respeitados”, analisa a pesquisadora Alexandra Lopes da Costa, no artigo “Inquisição Contemporânea: uma história de perseguição criminal, exposição da intimidade e violação de direitos no Brasil”.

“Foi um escândalo, uma denúncia para o mundo, saiu na televisão em uma cidade pequena, onde todos se conheciam. O nome das pessoas apareceu no site do Tribunal de Justiça, elas não tiveram a menor privacidade, todo mundo manuseou as fichas médicas. Os processos não foram tratados com sigilo”, lembra a advogada Beatriz Galli, integrante do Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem Brasil). Segundo a advogada, mesmo depois de esgotados os recursos na Justiça, não foi possível construir uma denúncia internacional devido à ausência de uma organização local em Campo Grande. Ela avalia o caso como uma “experiência piloto” de grupos conservadores, que não se repetiu naquela proporção porque houve uma resposta da sociedade civil. “Fizemos relatórios com denúncias aos comitês de direitos humanos da ONU, uma publicação com histórias de oito mulheres que relataram o impacto da violação na vida delas e exposição fotográfica no Congresso Nacional. Tentamos ao máximo chamar a atenção da sociedade, tínhamos muito apoio da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) da época”, conta.

“Certamente esse episódio de Mato Grosso do Sul poderá ensejar uma punição do Estado brasileiro junto à Corte Interamericana de Direito Humanos”, assinalou a defensora pública estadual do Núcleo de Direitos Difusos e Coletivos, Neyla Ferreira Mendes, no pedido de habeas corpus coletivo em favor de todas as pacientes da clínica para o trancamento da ação penal, em maio de 2009. O habeas corpus alegou constrangimento ilegal, ausência de provas e ocorrência de provas obtidas por meios ilegais, além de contestar a constitucionalidade da criminalização do autoaborto, classificando-a como “ofensa ao direito reprodutivo das mulheres”. Os juízes da Segunda Turma Criminal do Tribunal de Justiça não aceitaram o pedido na modalidade de coletivo com o argumento de que a medida não poderia beneficiar “pessoas indeterminadas”, pois correria o risco de anistiar a prática. Para a defensora a decisão é contestável posto que a possibilidade de habeas corpus coletivo é garantida pela Constituição Federal. “Essas mulheres já estavam em outra fase da vida. O estigma do aborto é grande e o preço a pagar é muito alto. A punição ocorre pelo fato de associar a mulher à figura da mãe. É como se questionassem ‘como você, mulher, não aceita ser mãe?’”, afirmou a defensora em entrevista.

De acordo com Neyla, a lógica de coação moral na perseguição de gênero tomou contornos ainda mais nítidos de crueldade com a imposição de uma pena com fins pedagógicos. Como condição para reversão da sentença de prisão, as acusadas deveriam prestar serviços comunitários em creches. “As mulheres beneficiadas pela medida e as que ainda serão, terão a oportunidade de meditarem sobre o que fizeram. Elas deveriam criar os filhos e não optarem pelo aborto”, argumentou o juiz Aloísio Pereira dos Santos em entrevista a um jornal.

A defensora explica que o pressuposto do Direito Penal é punir o que é relevante para a sociedade, e não o que é desaconselhável pela moral. Para ela não há relevância penal na prática do aborto, por não colocar em risco a comunidade. “A relevância da gravidez para a sociedade é discutível do ponto de vista penal e moral. Qual o mal causado pela prática do aborto para as demais pessoas, senão para a própria? A criminalização é uma interferência desproporcional do Estado na vida das mulheres”, defende.

O peso da exposição
Em entrevista exclusiva, uma funcionária pública de 57 anos, que preferiu não se identificar, contou que havia acessado a clínica para fazer dois abortos. Durante o depoimento à polícia sentiu-se coagida a demonstrar arrependimento. “O escrivão perguntou: ‘você está arrependida?’ Eu disse que não, porque naquele momento foi uma decisão minha e eu tinha claro o que tava fazendo. Ele perguntou novamente: ‘mas você tem certeza de que não está arrependida?’ Aí eu entendi que eu tinha que falar que estava arrependida para constar nos autos”, relatou.

A exposição da intimidade, passados vários anos do atendimento na clínica, trouxe tensões para o convívio social da mulher. “Você se sente mal com a situação, por mais que estivesse claro que a decisão era minha. As pessoas cobram demais, questionavam ‘como uma profissional liberal não teria condições de criar seu filho?’.

Funcionária pública foi uma das criminalizadas no caso das dez mil/Foto: Carlota Philippsen

. Quando falei para o meu ex-companheiro, ele perguntou ‘por que você não me consultou?’. Senti um peso por mais que eu tenha feito o que queria”, contou.

Ela recebeu a suspensão condicional do processo e durante dois anos teve que comparecer mensalmente em juízo. “O juiz nem olhou para mim, o defensor público menos ainda. Ele leu nos autos o meu depoimento onde confirmava que eu tinha feito o aborto e estava arrependida perante o ato. Era uma pessoa idônea, ré primária, que tinha casa e trabalho”, conta sobre o dia da audiência. A confissão era condição imposta pelo juiz para que o constrangimento não fosse ainda maior, conforme relatou a defensora no habeas corpus. Ainda que as investigadas tivessem ido até a clínica somente para fazer exames ou curetagem de um abortamento espontâneo, o ato de negar o crime dava margem para que a vida delas fosse devassada. “Trocando em miúdos: a mulher pode negar se quiser, mas lhe será imediatamente imposta a pena de execração pública”, disse a defensora.

Na época em que a devassa foi instaurada não havia nenhum serviço de aborto legal no estado, mesmo com a garantia do direito desde o código penal de 1940. Com a maior taxa de estupros do país, conforme o Anuário Brasileiro de Segurança Pública – 54,4 para cada 100 mil habitantes em 2016, o estado realizou somente duas interrupções da gravidez por motivo de violência sexual durante o ano. Os homens, partícipes da gravidez, que teriam incentivado e até pago os abortos, não foram processados. Alguns figuraram apenas como testemunhas.

Esta publicação faz parte da série “Do pronto socorro ao sistema penal” com textos inéditos a cada dia. Acompanhe.

Capítulo 2: Quando o hospital se transforma em cárcere: relato de uma jovem algemada ao leito.

Capítulo 3: A justificativa do hospital que denunciou uma paciente por aborto. 

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  • Paula Guimarães

    Paula Guimarães é jornalista e cofundadora do Portal Catarinas. Escreve sobre direitos humanos das meninas e mulheres. É...

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