Santa Catarina se prepara para a rede de atendimento às vítimas de estupro
São comuns questionamentos sobre a palavra da vítima de violência sexual. Mudar essa concepção é o desafio. A função dos profissionais, especialmente da saúde, é garantir direitos e não julgar.
Conselheirxs tutelares, médicxs, enfermeirxs, técnicxs de enfermagem, psicólogxs, assistentes sociais, professorxs, policiais e outrxs profissionais das 16 regiões de saúde do estado participam da capacitação “Atenção Integral às Pessoas em Situação de Violência Sexual”, que iniciou ontem (9) e segue até sexta-feira (12), na Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc), em Florianópolis.
Esse é o primeiro passo para a criação de uma rede de atenção integral que faça a conexão entre todos os serviços de atendimento às vítimas de estupro em cada região do estado, facilitando o acesso aos direitos garantidos por lei, entre eles a pílula do dia seguinte, prevenção às Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) e interrupção da gravidez.
“Além de estruturar a rede, os caminhos e atribuições de cada área, é necessário divulgá-la: a população precisa saber onde está o serviço e acessá-lo com facilidade. É todo um movimento que passa pela estruturação, documentação e divulgação da rede”, afirma Carmem Delziovo, representante das coordenadorias de “Políticas de Saúde” e “Violência Doméstica e Sexual”, da Secretaria de Estado da Saúde.
O Protocolo de Atenção às Vítimas de Violência Sexual do Município de Florianópolis, reconhecido estadual e nacionalmente, é um modelo que serve de referência para a formação da rede. Implementado há 16 anos, permite que a vítima seja direcionada ao hospital e que lá possa acessar todos os atendimentos, inclusive policiais, de registro da violência e coleta de vestígios, caso ela decida pela denúncia.
Região oeste é a única com rede
Atualmente, a região oeste é a única do estado que conta com uma rede intersetorial em funcionamento. “Não tem como fazer uma rede única estadual, as particularidades de cada região precisam ser respeitadas. Nessa capacitação vamos levantar as dificuldades e facilidades em organizar uma rede intersetorial. A primeira e única experiência de rede regionalizada e intersetorial, em Chapecó, mostra que é possível”, assinala Carmem.
Apenas 20 hospitais do estado estão cadastrados para atender às vítimas de violência sexual, porém há cerca de 300 unidades notificadoras que também oferecem o serviço. “Estamos fazendo um movimento para o cadastramento dos hospitais que já atendem, pois não basta que eles façam, é preciso que documentem de forma que sejam listados no mapa do estado. Para que ao ligar ao Disque Denúncia, a vítima possa ser informada do hospital de referência mais próximo”, explica a coordenadora.
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Gaspar passa a oferecer aborto legal
A opção pelo aborto também é um direito das mulheres violadas que não acessaram o serviço a tempo de prevenir a gravidez. A partir deste mês, Santa Catarina passou a contar com mais um serviço de aborto legal, com o credenciamento do Hospital Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, em Gaspar. Além desse, mais quatro hospitais oferecem o serviço: o Hospital Universitário, na capital, o Regional de São José, a Maternidade Darcy Vargas, em Joinville, e o Municipal Santo Antônio, em Blumenau.
A palavra da vítima é suficiente para ter garantido o aborto legal, qualquer outra exigência é caracterizada uma violência institucional contra a mulher. Porém, as mulheres ainda encontram muitas barreiras para acessar os direitos, como revelou o estudo nacional “Serviços de aborto legal no Brasil”, realizado pelo Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis) e publicado recentemente. De acordo com a pesquisa, profissionais ainda exigem boletim de ocorrência, laudo pericial e alvará judicial para realizar a interrupção da gravidez. O julgamento moral e a objeção de consciência – direito a que recorrem os profissionais para não realizarem o aborto -, são apontados como principais dificuldades para a estruturação dos serviços.
Em Santa Catarina, essa resistência pode ser ainda maior, como apontou reportagem recente do Diário Catarinense. “A mulher tem que ser ouvida e respeitada, a fala dela é o que vale. A sociedade julga muito e o profissional não consegue se deslocar um pouco e pensar enquanto garantidor de direitos. São comuns questionamentos sobre a palavra da vítima. Mudar essa concepção é o desafio. A função dos profissionais, especialmente da saúde, é garantir direitos e não julgar”, pontua a coordenadora.
Garantia de direitos
Em sua pesquisa de doutorado em Saúde Pública, Carmen analisou o acolhimento das vítimas e a aplicação do protocolo, em Florianópolis. No estudo, observou que o acesso ao serviço de referência não garante a aplicação do protocolo na oferta da medicação anti-HIV e contracepção de emergência. “Muitas dessas mulheres tiveram infecção sexualmente transmissível e engravidaram. É importante que o serviço de referência cumpra o protocolo e garanta todo o cuidado com a escuta para que a mulher não seja revitimizada. Esse é um grande movimento que deve ser intensificado com as capacitações. O estado precisa garantir o serviço. E um serviço de qualidade”, afirma.
O Comitê Estadual de Atenção às Pessoas em Situação de Violência Doméstica, Sexual e outras Violências é responsável pela realização da capacitação. As palestras abordam temas como os tratados internacionais, dos quais o Brasil é signatário, que garantem os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres; relações de gênero e violência; legislação nacional sobre o atendimento às vítimas; e as políticas públicas nas áreas de saúde, segurança, educação e assistência social. Os encontros devem continuar até o fim do ano.