Por Julianna Granjeia

Quem já trabalhou com a jornalista brasileira Juliana Dal Piva, 36 anos, diz que ela dorme e acorda pensando em reportagem, seus olhos brilham com uma boa história e que ela não desiste fácil quando encontra dificuldades durante uma apuração.

Foi essa persistência que fez com que a jornalista ganhasse diversos prêmios. Entre eles, o prêmio Relatoría para la Libertad de Expresión (RELE), da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, pelo trabalho “Em 28 anos, clã Bolsonaro nomeou 102 pessoas com laços familiares”, com a equipe do Jornal O Globo, em 2019, e o prêmio Cláudio Abramo de jornalismo de dados, em 2021, pelo conjunto de reportagens “Anatomia da Rachadinha”, com a equipe do núcleo investigativo do portal UOL.

Dal Piva começou a investigar, em 2018, as suspeitas de que assessores do atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, e de seus três filhos que possuem mandatos legislativos (Flávio, Eduardo e Carlos), não atuavam, de fato, como assessores parlamentares. Na época, ela trabalhava nas redações integradas do jornal “O Globo” e revista “Época”.

“Em 2018, eu fui à uma missão especial no México junto com a Cruz Vermelha para fazer uma matéria sobre a crise dos desaparecidos no país, e foi uma experiência muito importante para mim. Eu já tinha feito meu Trabalho de Conclusão de Curso da faculdade sobre trabalho escravo na Bolívia, além dos meus estudos sobre América Latina. Eu vi questões no México que estavam conectadas com as coisas que estavam acontecendo na campanha eleitoral brasileira”, contou Dal Piva.

Segundo Dal Piva, o conhecimento sobre a América Latina é essencial para compreender melhor o Brasil. Formada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), na região sul do Brasil, a jornalista também estudou História Argentina e História Social Latino-Americana, na Universidade de Buenos Aires. De volta ao Brasil, fez seu mestrado pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação Getulio Vargas, onde analisou as investigações sobre a morte do deputado Rubens Paiva no período da ditadura militar.

“Para mim, foi muito marcante o período que passei em Buenos Aires, porque a questão da ditadura militar e da memória do que aconteceu é muito presente. Então, quando eu voltei para o Brasil, esse tema estava muito forte porque sempre lidamos muito mal com o nosso passado. O Brasil tem uma ideia de esquecimento, de virar a página, como se fosse possível deixar para trás aquilo que aconteceu sem justiça, sem verdade, sem memória. E isso tem consequências que, inclusive, estamos vendo hoje”, conta a jornalista.

Em 2010, quando Dal Piva estava iniciando sua carreira, o Brasil estava para julgar uma possível revisão sobre a chamada Lei da Anistia, uma lei aprovada em 1979 que concedeu a anistia a todos que cometeram crimes políticos ou eleitorais e àqueles que sofreram restrições em seus direitos políticos. A lei protegeu os agentes da ditadura contra qualquer responsabilização pelos crimes cometidos contra opositores do governo.

Entre os beneficiados pela Lei da Anistia estava o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que comandou, entre 1969 e 1973, um centro de tortura no extinto Doi-Codi (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna), órgão de repressão da ditadura militar. O presidente do Brasil já afirmou que considera Ustra um “herói nacional” e concedeu honrarias ao torturador.

Durante a gestão da presidente Dilma Rousseff, em 2011, o Estado criou a Comissão Nacional da Verdade (CNV) que, até 2014, investigou os casos de torturas, mortes, desaparecimentos e ocultação de cadáveres durante a ditadura. Dal Piva, então, se debruçou na cobertura dos trabalhos da CNV em todos os veículos onde trabalhou.

“O que me levou a cobrir Bolsonaro [que foi eleito presidente em 2018] foi o trabalho que eu fiz cobrindo a ditadura, porque eu conhecia muitos militares do entorno dele”, afirma a jornalista.

Em 2019, Dal Piva publicou no jornal “O Globo” a reportagem “Entrevistados em filme pró-ditadura reconhecem que houve golpe em 64”, sobre o documentário “1964: O Brasil entre Armas e Livros”, da produtora com viés conservador Brasil Paralelo. Foi a primeira vez que recebeu ameaças por seu trabalho.

“Eu fiz uma matéria simples depois de assistir ao filme. Eles queriam combater um fato histórico consolidado – que é a existência de um golpe militar -, e apresentar uma visão como se a existência da ditadura e do golpe estivessem em discussão. Só que, no meio do filme, os próprios entrevistados faziam referência à data como o golpe. A produtora criou uma situação em cima da minha matéria para divulgar o filme e eu comecei a receber milhares de xingamentos. Foi um linchamento virtual. Recebi mensagens no meu Twitter falando que eu ia morrer. Aquilo me fez muito mal, eu fiquei assustada. E uns dias depois disso fizeram um trote, ligaram na casa dos meus pais dizendo que eu tinha sido sequestrada”, contou a jornalista.

Na época, Dal Piva diz que não conseguiu fazer uma queixa formal. “Eu fui lidando como a gente lidava antigamente, que é simplesmente deixar passar. Mas a experiência me assustou e eu me fechei muito, não falava sobre isso. Até porque também estava no início das minhas investigações sobre o gabinete do Bolsonaro e seus filhos”.

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Foto: Lucas Lima/UOL.

A jornalista lembra que recebeu importante apoio de duas colegas que também tinham sido ameaçadas por apoiadores do governo Bolsonaro, Patrícia Campos Mello e Constança Rezende. “A Patrícia nos deu coragem para não tratar aquilo como normal, que ignorar não é a melhor maneira. Ameaça é crime, essas pessoas não podem fazer isso e ficar impunes”.

Ainda em 2018, Dal Piva, em conjunto com outros jornalistas de “O Globo”, publicou a reportagem “Em 28 anos, clã Bolsonaro nomeou 102 pessoas com laços familiares“. De grande repercussão, a investigação mostrou um padrão de nomeação de funcionários nos gabinetes parlamentares da família Bolsonaro na Câmara dos Deputados, na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e na Câmara dos Vereadores do Rio com indícios do esquema conhecido como “rachadinha”, a entrega ilegal de grande parte do salário do assessor para o parlamentar.

A ameaça mais grave sofrida por Dal Piva ocorreu em 2021, após a publicação do último episódio do podcast “UOL Investiga – A vida secreta de Jair”, também de grande repercussão. 

“Quando eu fui convidada para trabalhar no portal UOL, eu entendi que, depois de anos abordando diferentes informações em diferentes reportagens, era preciso fazer uma reunião de todo esse material para contar a história toda para as pessoas compreenderem melhor o entorno do presidente Bolsonaro. Para mim, era muito claro que as pessoas não tinham entendido a essência e o papel de alguns dos personagens centrais envolvidos”. Assim nasceu o podcast que foi produzido por Dal Piva junto com a equipe do portal.

Um dos personagens da produção é Frederick Wassef, que atua como advogado do presidente e de seus filhos em alguns casos. Em 2020, Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro, amigo do presidente e policial militar da reserva, foi preso dentro do sítio de Wassef, durante a investigação do esquema de “rachadinha”. Queiroz ficou escondido no local por um ano e meio.

“O Wassef já tinha uma relação difícil com vários colegas jornalistas e comigo há algum tempo. Ainda na época do Globo, durante meses, negociamos uma entrevistas. No entanto, ele recusava. Depois, marcava e não aparecia. Para o podcast, eu usei uma entrevista que tinha feito em março de 2021 e, quando precisamos complementar com ele, foi ok. Passou uma semana com o material sendo publicado e ele não me procurou para falar nada. Nem para reclamar. Quando estreou o 4º e último episódio do podcast, numa sexta-feira, no fim do dia, ele me mandou aquela mensagem no Whatsapp”, conta Dal Piva.

“Faça lá o que você faz aqui no seu trabalho, para ver o que o maravilhoso sistema político que você tanto ama faria com você. Lá na China você desapareceria e não iriam nem encontrar o seu corpo. (…) Por que não experimenta primeiro na sua pele o que é a esquerda, para depois lutar tanto para atingir o presidente de seu país e trazer o comunismo para o meu amado Brasil? Você é inimiga da pátria e do Brasil. (…) A esquerda te paga??? Você está feliz e realizada por atacar e tentar destruir o Presidente do Brasil, sua família e seu advogado?????”, escreveu o advogado à jornalista por aplicativo de mensagens. 

Não foi a primeira vez que o advogado ameaçou algum/a jornalista durante o exercício da profissão.

“Embora assustador, o comportamento de Wassef, infelizmente, não surpreende: em 1º de outubro de 2019, ele foi até a porta do Supremo Tribunal Federal e me coagiu a entrar no carro dele para reclamar de uma matéria. Não é fato isolado. Minha solidariedade à incrível repórter Juliana Dal Piva”, publicou a repórter do jornal “Valor Econômico”, Luísa Martins, em seu Twitter na ocasião.

As ameaças também atingiram a família de Dal Piva. Após aconselhamentos, inclusive do Comitê para a Proteção de Jornalistas, a jornalista teve que alterar sua rotina por um período de tempo, além de adotar medidas de segurança no ambiente virtual.

“Quando eu li a mensagem com um monte de xingamento, a questão do seu corpo desaparecendo, de ser inimiga da pátria, vai um tempo até entender o quão problemático é tudo aquilo”, confessa.

A jornalista entrou com ação civil e criminal contra Wassef. O primeiro depoimento sobre o caso, no entanto, ocorreu apenas em março deste ano, oito meses depois da abertura do processo.

“É muito difícil fazer um processo judicial, ter que reviver tudo isso e, ao mesmo tempo, não ter garantia de nada. A Patrícia [Campos Mello] me aconselhou muito nesse caso e foi muito importante para mim. Estou fazendo um caminho parecido com o dela na Justiça. É preciso passar um recado de que é necessário respeitar o trabalho da imprensa e que eles passaram do limite. É preciso nos respeitarmos como seres humanos. Foi importante ouvir a Patrícia e outras pessoas que foram ameaçadas como eu”.

Dal Piva tem contado com o apoio do escritório de advocacia Carvalho Siqueira, da organização não governamental de direitos humanos Artigo 19 e, também, do portal UOL. As eleições presidenciais deste ano no Brasil a preocupam.

“Os últimos episódios de jornalistas acompanhando, sobretudo, o presidente Jair Bolsonaro, são episódios que envolvem agressões. Acredito que precisamos criar um grupo que possa treinar colegas para que auxiliem quando acontecer esses episódios. Tanto para acolher, quanto para prestar os primeiros aconselhamentos jurídicos. Quando acontece, a gente fica sem saber exatamente o que fazer. É muita coisa para pensar e não estamos preparados para enfrentar essa situação”, afirma.

No entanto, como persistência é uma das principais características da jornalista, as ameaças não a desanimam de fazer seu trabalho. 

“Nós, jornalistas, temos que fazer nosso trabalho, mas nunca perder a noção de que a história é a protagonista e que a gente contribui para esse primeiro rascunho da história. Todas essas dificuldades mexem com a nossa vida, mas minha motivação é ajudar a construir conhecimento, sobretudo histórico. Não importa o que aconteça, o presidente Bolsonaro já faz parte da história do Brasil e acho que as pessoas não o conheciam realmente antes da eleição. Depois de muito trabalho meu e dos meus colegas, nós sabemos melhor quem ele é”, ressalta Dal Piva. 

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