Por Núbia Alves*.

Em 1929, numa conferência proferida na Universidade do Porto, o obstetra português Costa Sacadura teria alertado: “as mulheres já não morrem por terem filhos, mas morrem por os não terem.”[1] A frase denota, na verdade, que independentemente da época ou do lugar, o abortamento é um fenômeno comum à vida de muitas mulheres, sendo difícil estimar o número real de casos, uma vez que muitos nunca chegam a ser revelados.

No Brasil, o abortamento induzido também é motivo de grande preocupação em termos de saúde pública, ensejando estudos multidisciplinares e pesquisas em abundância com o propósito de perceber a extensão do problema, assim como o perfil da mulher brasileira que recorre ao abortamento, na sua grande maioria, de forma clandestina e ilegal, com comprometimento da sua segurança e própria vida.

Segundo os dados coletados em 20 anos de pesquisas sobre aborto no Brasil, as mulheres brasileiras que abortam têm predominantemente entre 20 e 29 anos, são católicas,[2] com até 8 anos de estudo, trabalhadoras, com renda familiar até 3 salários mínimos e vivem numa relação estável. Nesse universo, estima-se que 1.054.242 abortos foram induzidos em 2005. A fonte de dados foram as internações por abortamento registradas no Serviço de Informações Hospitalares do SUS e a maior parte dos casos aconteceu nas regiões mais empobrecidas, no Nordeste e Sudeste do país, demonstrando que o abortamento inseguro de fato se mantém como um problema de saúde pública no Brasil, com marcantes influências regionais.[3]

O referido estudo, realizado pelo Ministério da Saúde, estima indiretamente a ocorrência de abortos com base em pesquisas realizadas em um período determinado. Um outro estudo de ampla magnitude, a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), estima diretamente mulheres que já fizeram aborto em algum momento da sua vida. Dada as diferenças metodológicas, os resultados entre os estudos não permitem comparação, mas corroboram que o abortamento é um problema frequente e recorrente na vida reprodutiva das mulheres brasileiras.

Os resultados da PNA foram apresentados no artigo Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna e teve por amostragem aleatória 2.002 mulheres com idade entre 18 e 39 anos, alfabetizadas e residentes no Brasil urbano. Esta pesquisa foi financiada pelo Fundo Nacional de Saúde como parte de uma investigação sobre políticas de saúde reprodutiva conduzida pela Universidade de Brasília (UnB) e a Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Género. A amostragem e as entrevistas, combinadas com a técnica de urna (ballot box technique), foram realizadas pela Agência Ibope Inteligência, com o trabalho de campo ocorrido entre 13 e 21 de Janeiro de 2010. [4]

Com base nessas investigações, em 2010, no Brasil urbano, 15% das mulheres entrevistadas realizaram aborto pelo menos uma vez na vida. Contudo, o número de abortos deve ser superior ao número de mulheres, não só porque uma única mulher pode abortar múltiplas vezes, como também porque as mulheres analfabetas e as áreas rurais do país não foram abrangidas e contabilizadas.

A PNA de 2010 indica que o abortamento é tão comum no Brasil que, ao completar 40 anos, mais de uma em cada cinco mulheres já abortou. Em termos genéricos, conclui que é um fenómeno que cresce com a idade, revelando que cerca de 60% das mulheres realizaram-no “nas idades que compõem o centro do período reprodutivo feminino, isto é, entre 18 e 29 anos, e é mais comum entre mulheres de menor escolaridade, fato que pode estar relacionado a outras características sociais das mulheres de baixo nível educacional”, tais como a participação no mercado de trabalho e salários, padrões de união conjugal, etc.[5]

Seis anos depois a PNA foi repetida, seguindo a mesma metodologia e compartilhando várias características da anterior, sendo que os dados obtidos com a PNA de 2016 foram praticamente os mesmos de 2010. A nova pesquisa, cujo levantamento foi levado a campo entre 02 e 09 de junho de 2016, revela que em 2015, aproximadamente 416 mil mulheres abortaram ilegalmente. São pelo menos 1.300 mulheres por dia, 57 por hora, quase uma mulher por minuto. A mulher que aborta é uma mulher comum, a maioria já tem filhos (67%) e declara ter religião (88%). A PNA de 2016 também reafirma que o abortamento é um evento comum na vida reprodutiva de mulheres de todas as classes sociais e níveis educacionais, mas as mulheres negras, pardas e indígenas, com menor escolaridade, e que vivem no Norte, Nordeste e Centro-Oeste apresentaram taxas de aborto mais altas.[6]

Manifestamente, os números voltam a indicar que o fenômeno do abortamento está relacionado com questões sócio-educacionais importantes e que, apesar da proibição legal, o abortamento é amplamente praticado no Brasil. É parte da vida sexual e reprodutiva das mulheres, que mesmo diante da criminalização, não se intimidam e recorrem a métodos inseguros para realizá-lo.

Na esteira do que foi demonstrado na PNA de 2010, a pesquisa de 2016 valida que o uso de medicamentos para a indução do aborto ocorre na proporção de metade das entrevistadas, o que assinala uma tendência de redução da necessidade de internamento para tratar as complicações do aborto, apesar da taxa de abortamento se revelar estável em termos comparativos. As pesquisas realmente dão conta de uma redução da taxa de mortalidade materna relativamente a décadas passadas, mas isto provavelmente tem a ver com a disseminação do uso do misoprostol,[7] o método medicamentoso recomendado pela OMS para a realização de abortos seguros e reconhecido por implicar menores riscos à saúde e menor tempo e custos hospitalares pós-procedimento. Ainda assim, permanecem outros riscos importantes, o que se verifica tendo em conta que metade das mulheres precisam ser internadas para finalizar o procedimento, estando a curetagem no topo dos procedimentos cirúrgicos mais realizados na rede pública. Em somatório, mesmo que o fármaco reduza bastante o risco de hemorragias ou infecções, nem todas as mulheres têm meios de adquiri-lo, despoletando um mercado ilegal e lucrativo de medicamentos adulterados.[8]

Com efeito, a clandestinidade e as condições inseguras em que a conduta é praticada reporta o abortamento como um grave problema de saúde pública, que exige tratamento prioritário na agenda nacional.[9] Os resultados demonstram que o abortamento induzido é um problema fortemente relacionado com circunstâncias socioeconómicas desfavoráveis como indicadores de maior probabilidade de interromper uma gestação não pretendida. Em contrapartida, mulheres economicamente mais abastadas, com mais acesso a informações e contracepção, podem optar pelo abortamento ilegal, mas de forma segura.[10]

Os estudos indicam, ainda, que mais da metade das mulheres que interrompem voluntariamente uma gestação declara o uso de métodos contraceptivos, sugerindo a sua utilização irregular ou equivocada; ao passo que uma pequena minoria, entre 9,5% e 29,2%, não tinha filhos.[11] Isto reforça a tese de que o recurso ao abortamento resulta de necessidades não satisfeitas de planeamento familiar, que é acrescida face a inexistência de políticas públicas a visar a autonomia sexual e reprodutiva da mulher brasileira. O abortamento ocorre em situações de vulnerabilidade social e económica,[12] limitadoras do acesso a informações e aos contraceptivos, vindo a se destacar como “um instrumento de planejamento reprodutivo importante para as mulheres com filhos quando os métodos contraceptivos falham ou não são utilizados adequadamente.”[13]

Portanto, a prática do abortamento, seja em decorrência de violência ou como consequência de gestação não planejada, deve ser enfrentada como um problema de saúde pública no Brasil, ou seja, uma questão de cuidados em saúde. Nesta perspectiva, deve ser garantido às mulheres de diferentes classes sociais o avanço no campo dos direitos sexuais e reprodutivos, com a promoção do abortamento humanizado nos hospitais públicos e, sobretudo, a revisão das leis que criminalizam a conduta abortiva.

Criminalizar o aborto significa penalizar ainda mais as mulheres de classes sociais menos favorecidas, uma vez que são estas as que mais recorrem ao abortamento de maneira insegura, como forma de pôr fim a uma de gestação indesejada. Esta a conclusão a que remete o Conselho Federal de Medicina, no sentido de recomendar a reforma da legislação penal brasileira com vistas a afastar a ilicitude da interrupção voluntária da gravidez até a 12.ª semana de gestação, tendo em conta a autonomia da mulher e do médico com base em aspectos éticos, sociais, epidemiológicos e jurídicos.[14]

Com efeito, tendo o aborto como uma questão ligada a autonomia feminina, é dever da ciência, do legislador e dos operadores do direito afastarem-se das discussões de cunho moral e assumirem definitivamente o papel transformador que se espera, viabilizando a vivência plena da sexualidade, da maternidade consciente e da saúde reprodutiva da mulher brasileira. Neste viés, o problema do aborto deve ser enfocado não de forma isolada como um assunto adstrito às disciplinas científicas, notadamente das ciências criminais, mas sobretudo como um problema de saúde pública, independentemente de crenças pessoais ou ideológicas que o circundam.

Referências
([1]) A conferência de Sacadura Cabral, «Considerações sobre o abortamento criminoso em Portugal», publicada no Boletim da Liga Portuguesa de Profilaxia Social, 1ª Série, Porto: 1931, é citada por Alberto Maria Ribeiro de Meireles, Do crime de abortamentoAlguns aspectos jurídicos e sociológicos, Ensaio apresentado ao Júri de Licenciatura em Ciências Jurídicas na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (dactilografado), Coimbra: 1935, p. 71.

([2]) Dado que reflete a composição religiosa do país, não sendo, por esta razão, um fator de diferenciação significativo.

([3]) Brasil, Ministério da Saúde, 20 Anos de Pesquisas sobre Aborto no Brasil 2009, pp. 14-17, disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/livreto.pdf, consultado em: 25-07-2017.

([4]) Os principais estudos sobre a magnitude do abortamento no Brasil pautam-se em três tipos de abordagem metodológica: a) registros de internações hospitalares no SUS; b) pesquisas à beira do leito, realizadas com mulheres internadas em decorrência de complicações e c) técnicas de coleta da informação fora do ambiente hospitalar. Todas elas apresentam resultados variáveis, conforme as técnicas e fontes utilizadas, mas de um modo geral não apresentam divergências significativas em razão de crença religiosa, sendo o abortamento mais comum entre mulheres de menor escolaridade. Os dados obtidos pela Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), encontram-se organizados e redigidos por Débora Dinis; Marcelo Medeiros, «Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna», in: Ciência & Saúde Coletiva,  Rio de Janeiro,  v. 15, supl. 1, pp. 959-966,  jun. 2010, disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141381232010000700002&lng=en&nrm=iso>, consultado em: 27-07-2017.

([5]) Débora Dinis; Marcelo Medeiros, Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna (cit. nt. 4), pp. 962-964.

([6]) Nota-se uma redução de 15% para 13% relativamente ao número de mulheres que já fez aborto, pelo menos uma vez na vida, nos dados obtidos pela PNA de 2010 para 2016. Não obstante, considerando-se os intervalos de confiança, os pesquisadores ressaltam que essa pequena divergência não é relevante, podendo derivar-se de fatores aleatórios e estar dentro da margem de erro. Cfr. Débora Diniz et al, «Pesquisa Nacional de Aborto 2016», in: Ciência & Saúde Coletiva, v. 22, n. 2, 2017, pp. 653-660, disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-81232017000200653&script=sci_abstract&tlng=pt, consultado em: 31-03-2017. Cfr., também, entrevista da antropóloga Débora Diniz (UnB), no programa de televisão brasileiro, Fantástico – Show da Vida, edição de 04-12-2016, disponível em: http://g1.globo.com/fantastico/videos/t/edicoes/v/em-2015-quase-meio-milhao-de-brasileiras-passaram-por-aborto-ilegal/5491711/, consultado em: 09-12-2016.

([7]) Conhecido como Cytotec, o misoprostol é um medicamento usado na terapêutica de úlcera gástrica. Foi introduzido no Brasil em 1984 ou 1986, através do laboratório Searle, e até 1991 podia ser comprado sem restrição em qualquer farmácia. Mas logo descobriram suas propriedades abortivas e passou a ser comercializado somente com retenção de prescrição médica, “proibido para fins abortivos fora de indicações médicas controladas.” Cfr. Brasil, Ministério da Saúde, 20 Anos de Pesquisas sobre Aborto no Brasil (cit. nt. 3), pp. 30-31.

([8]) Os dados indicam que “o itinerário dessa substância segue o do tráfico de drogas ilícitas e de anabolizantes.” Cfr. Brasil, Ministério da Saúde, 20 Anos de Pesquisas sobre Aborto no Brasil (cit. nt. 3), pp. 30-35.

[9] Cfr. Brasil, Câmara Deputados, TV Câmara, Entrevistas e Debates, «Aborto é um dos principais causadores de mortes maternas no Brasil», de 25-11-2014, disponível em: http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/tv/materias/EXPRESSAO-NACIONAL/478093-ABORTO-E-UM-DOS-PRINCIPAIS-CAUSADORES-DE-MORTES-MATERNAS-NO-BRASIL.html, consultado em: 27-07-2017.

([10]) Para uma melhor contextualização do problema na realidade brasileira, veja-se Clandestinas – documentário sobre aborto no Brasil, produzido por Sempreviva Organização Feminista – SOF, setembro de 2014, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=AXuKe0W3ZOU, consultado em: 26-04-2017.

([11]) Brasil, Ministério da Saúde, 20 Anos de Pesquisas sobre Aborto no Brasil (cit. nt. 3), p. 18.

([12]) Millani Souza de Almeida et al., «Perfil sociodemográfico e reprodutivo de mulheres com história de aborto», in: Revista Baiana de Enfermagem, v. 29, n. 4, out./dez. 2015, p. 296-306.

[13] Brasil, Ministério da Saúde, 20 Anos de Pesquisas sobre Aborto no Brasil (cit. nt. 3), pp. 18-19.

([14]) Brasil, Conselho Federal de Medicina (CFM), esclarece posição a favor da autonomia da mulher no caso de interrupção da gestação, 21-03-2013, disponível em: http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=23663:cfm-esclarece-posicao-a-favor-da-autonomia-da-mulher-no-caso-de-interrupcao-da-gestacao&catid=3:portal, consultado em: 26-04-2017.

* Núbia Nascimento Alves é licenciada em Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz (Brasil), Mestre em Ciências Jurídico-criminais pela Universidade de Coimbra e Investigadora/Doutoranda em Direito pela Universidade Nova de Lisboa.

O jornalismo independente e de causa precisa do seu apoio!


Fazer uma matéria como essa exige muito tempo e dinheiro, por isso precisamos da sua contribuição para continuar oferecendo serviço de informação de acesso aberto e gratuito. Apoie o Catarinas hoje a realizar o que fazemos todos os dias!

Contribua com qualquer valor no pix [email protected]

ou

FAÇA UMA CONTRIBUIÇÃO MENSAL!

Últimas