Um projeto de lei de autoria da então deputada federal Carla Ayres (PT-SC) pretende instituir no Sistema Único de Saúde (SUS) o Programa de Atenção Humanizada ao Aborto Legal e Juridicamente Autorizado. Inspirado em proposta semelhante apresentada por Marielle Franco, o PL 3984/2024 busca garantir o acesso ao aborto nos casos previstos na lei — risco à vida da gestante, violência sexual e feto anencéfalo — em toda a rede obstétrica do SUS, promovendo atendimento ético, livre de discriminação ou interferências. O projeto também prevê capacitação de profissionais, campanhas de conscientização e ações para enfrentar a violência obstétrica e evitar a revitimização das pessoas que buscam o serviço.

Dados do Ministério da Saúde apontam que, em 2023, 2.687 procedimentos de aborto legal foram realizados no Brasil, um número considerado muito abaixo da demanda do país, levando em conta que somente no ano em questão foram notiticados mais de 70 mil casos de estupro contra crianças e mulheres

Um dos entraves para o acesso ao direito é o número escasso de unidades de saúde que realizam o atendimento. Em Santa Catarina, por exemplo, apenas três hospitais realizam o procedimento.

“Precisamos combater a estigmatização e a discriminação das pessoas que buscam o procedimento, garantindo que recebam apoio emocional, psicológico e médico”, justifica a vereadora de Florianópolis que apresentou a proposta enquanto deputada federal.

A proposta também determina que, mesmo nos casos em que o profissional de saúde alegar objeção de consciência para não realizar o procedimento, é dever da unidade da rede de assistência obstétrica realizar o procedimento em tempo hábil. Para isso, estas unidades devem contar com uma equipe multiprofissional apta a realizar o procedimento durante todo o seu horário de funcionamento.

A parlamentar catarinense defende que a fragilidade da legislação atual sobre o aborto, composta por excludentes no Código Penal e uma decisão da Supremo Tribunal Federal (STF), contribui para a desinformação, o uso ideológico da pauta e a escassez de políticas públicas voltadas à garantia deste direito. 

Por isso, como defende, é preciso criar uma agenda positiva sobre o aborto no Brasil, discutindo projetos de interesse público e aperfeiçoando a legislação existente. “Neste sentido, o projeto que apresentamos pode representar um passo histórico para o Brasil, ao detalhar as diretrizes para o acesso ao aborto legal e para que tenhamos, enfim, uma produção legislativa focada no entendimento de que este é um tema de saúde pública”, coloca.

O PL 3984/2024 foi protocolado por Carla Ayres, na Câmara Federal, durante o período em que ela esteve como deputada federal, em substituição ao deputado Pedro Uczai (PT-SC), que reassumiu o mandato no último dia 17 de outubro.

Parceria com movimentos sociais

Para a criação do Programa de Atenção Humanizada ao Aborto Legal e Juridicamente Autorizado, a então deputada e atual vereadora de Florianópolis dialogou com movimentos e organizações sociais, como a Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e Pela Legalização do Aborto, a Frente Catarinense de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto, o Cfemea – Centro Feminista de Estudos e Assessoria e a Campanha Nem Presa, Nem Morta.

Em nota enviada ao Catarinas, a Frente Estadual considera o projeto necessário e urgente, pois mesmo nas situações previstas em lei, o procedimento ainda é amplamente criminalizado. A organização afirma que “essas situações deveriam ser um direito consolidado” e destaca a importância de um projeto de lei que regule de forma clara e categórica não apenas os casos em que o aborto legal é permitido, mas também estabeleça diretrizes para um atendimento mais humanizado e acolhedor.

A Frente também destaca que o aborto é um procedimento simples e que deve ser de fácil acesso. As pessoas que buscam o aborto legal no Brasil incluem mulheres cis, pessoas não binárias com útero, transmasculinas sobreviventes de violência, pessoas em risco de vida e aquelas que enfrentam o luto de uma gestação inviável.

“Aprofundar o sofrimento dessas pessoas por meio da violação de seus direitos é um caminho cruel que precisa ser denunciado”, diz trecho da nota. 

Clara Wardi, do Cfemea, destaca que o PL 3984/2024 pode reduzir a revitimização de pessoas que recorrem ao aborto legal, muitas das vítimas de violência sexual, ao promover um atendimento digno e respeitoso. Ela ressalta a importância de tratar o aborto como parte da vida reprodutiva das mulheres, com a mesma humanização conferida ao parto, e alerta para dificuldades enfrentadas, como judicialização ocasional, vazamento de dados e deslocamento entre estados

Em 2023, por exemplo, aproximadamente 1.074 mulheres precisaram deixar suas cidades, e algumas até seus estados, para conseguir realizar o aborto legal no Brasil, segundo dados do Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH).

Enfrentamento da violência obstétrica

A assessora do Cfemea ressalta que pessoas que buscam o aborto legal enfrentam diversas formas de violência institucional, muitas vezes invisibilizadas pelo estigma social, incluindo a violência obstétrica. “Assim como o parto, que historicamente é reconhecido como uma experiência que deve ser tratada com respeito, o aborto também precisa ser abordado de forma humanizada”, afirma. 

O PL 3984/2024 busca combater essas práticas, propondo medidas para prevenir e apurar condutas abusivas, como:

  • Tratar a pessoa que gesta de forma desrespeitosa ou agressiva;
  • Questionar ou desmerecer a decisão da pessoa que gesta sobre a realização do aborto legal;
  • Negar ou procrastinar o atendimento à pessoa que solicita o aborto legal;
  • Fazer comentários constrangedores sobre a pessoa que busca o aborto legal com base em sua raça, etnia, idade, escolaridade, classe social, religião, orientação sexual, estado civil ou situação conjugal, número de filhas e filhos, toda e qualquer conduta que lese a idoneidade moral da pessoa em caso de aborto legal;
  • Impedir a presença de acompanhante escolhido pela pessoa gestante, mesmo que não haja grau de parentesco, durante o atendimento, salvo em casos que impliquem risco à segurança ou à vida da pessoa gestante;
  • Coagir, com qualquer finalidade, a pessoa gestante em situação de aborto legal a não realização do procedimento.

Nova resolução do Conanda

O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) está elaborando uma nova Resolução que visa regulamentar o fluxo de atendimento a crianças e adolescentes que, após sofrerem abusos, buscam a interrupção legal da gestação. O objetivo do documento é assegurar o respeito à autonomia progressiva e ao princípio da proteção integral, garantindo o acesso a um atendimento de saúde sensível e em conformidade com as diretrizes legais.

Para apoiar a aprovação da resolução, a campanha “Criança Não é Mãe” redigiu uma nota e está reunindo assinaturas, convocando a sociedade a se mobilizar em defesa da vida e da saúde das milhares de crianças e adolescentes vítimas de estupro no país. A adesão a essa iniciativa é crucial para pressionar pela aprovação da resolução, garantindo que esses direitos sejam respeitados em um momento tão delicado.

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