Prova de biologia aplicada por Whilliam Amaral na EEB Altamiro Guimarães embasou aprovação de decreto que proíbe o uso da linguagem não-binária nas escolas catarinenses

Manhã de 16 de junho, o professor Whilliam Amaral, 38 anos, seguia para mais um dia de aula na Escola de Educação Básica Altamiro Guimarães no município de Antônio Carlos, distante 40 km da capital catarinense. Parecia mais uma quarta-feira comum até ser surpreendido com a notícia de que a prova de biologia aplicada por ele havia se tornado alvo de críticas por parte da política ultraconservadora catarinense por conter a linguagem neutra. A avaliação, exibida em vídeo pela deputada estadual Ana Campagnolo (PSL), estava sendo usada como argumento para acelerar a aprovação de projetos de lei contrários a esse tipo de linguagem. No mesmo dia, o governador Carlos Moisés (PSL) assinou o decreto 1.329, proibindo o uso da linguagem neutra nas instituições de ensino em Santa Catarina.

A prova aplicada no fim de maio para a turma do segundo ano do Ensino Médio continha apenas uma mudança pontual, no cabeçalho a palavra ‘alune’ aparecia no lugar de aluno. Uma variação cada vez mais usual que tem como propósito incluir pessoas que não se identificam com o gênero masculino, nem com o feminino, os chamados não-binários. “No dia da prova, eu expliquei pra turma que coloquei ‘alune’ porque é gênero neutro, que abarca quem se identifica com gênero masculino, feminino e quem não se identifica com nenhum dos dois”, conta Whilliam.  

Para surpresa do professor, a denúncia partiu de uma aluna da turma que também aparece no vídeo pedindo explicações ao governador e aos deputados e deputadas. “Estou revoltado porque, primeiro, ela poderia se preocupar com qualquer outro problema na escola, criticar a estrutura da escola, como a falta de laboratórios de Biologia, Física, Química para praticar as disciplinas. Essas pessoas são excluídas da nossa sociedade. Para mim é simplesmente um preconceito camuflado de preocupação com a gramática”, afirma o docente. 

Chamado pela direção da escola, Whilliam foi orientado a seguir as diretrizes do novo decreto. “Vou seguir o decreto, mas eu vou atrás dos meus direitos. Eu vou entrar com um processo contra a deputada por me expor sem autorização, no vídeo dela aparece o meu nome completo”, enfatiza. Em conversa com o Portal Catarinas, o diretor da instituição de ensino, Jucélio Laudelino Schmitt, afirmou que o caso foi pontual e não representa a posição da escola.

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Whilliam Amaral, professor da EEB Altamiro Guimarães no município catarinense de Antônio Carlos, foi denunciado por uma aluna ao usar linguagem neutra na prova de biologia. (Foto: Arquivo Pessoal)

No vídeo publicado nas redes sociais da deputada Campagnolo, assídua apoiadora de Jair Bolsonaro, a parlamentar classifica a linguagem de gênero neutro como uma aberração linguística e comunica a ida à casa do governador para assinar o decreto que veta o uso dessas flexões. “A deputada conseguiu uma audiência muito rápida com o governador e no mesmo dia ele assina o decreto. Eu conversei com os diretores das escolas que leciono e eles me disseram que pra conseguir uma reunião com ele demora uma vida”, desabafa Whilliam. Enquanto isso, existem PLs que tratam da linguagem inclusiva tramitando no Congresso Nacional há mais de 20 anos. 

Em abril deste ano, a Justiça de Santa Catarina reconheceu o gênero neutro ao conceder o direito de uma pessoa-não binária, moradora de Florianópolis, a mudar o nome e alterar a certidão de nascimento para gênero não definido. A juíza que analisou o caso baseou a decisão em documentos históricos, segundo a magistrada, a não-binariedade é milenar. É a segunda decisão sobre a matéria no Brasil. Enquanto a justiça reconhece o direito a ser quem se é, a política catarinense a discrimina. 

Professor da rede pública catarinense desde 2015, Whilliam é gay assumido e ressalta que por fazer parte da comunidade LGBTQIA+ faz questão de incluir as pessoas que não estão dentro do binarismo. “Justamente por ser gay, cis e também heteronormativo e por ainda me identificar pelo gênero masculino, eu coloco o termo alune como uma forma de inclusão dessas pessoas que não se identificam com nenhum dos dois gêneros”. 

Nascido no Pará e morador de Florianópolis há 7 anos, Whilliam tinha uma outra imagem do Estado. “O que percebo em Santa Catarina é que é vendida uma imagem para o país em relação a comunidade LGBTQIA+, que a cidade de Florianópolis é gay friendly, mas não é assim não. Já houve o caso do estupro coletivo contra um gay e eu não me sinto seguro totalmente aqui. É uma cidade e estado, infelizmente, muito preconceituosos”, afirma.

A inclusão através da linguagem 

A linguagem é uma forma de comunicação e representação. Ela se modifica com as transformações da sociedade. Porém, quando a estrutura da língua é binária (somente masculino e feminino), transforma-se em uma forma de exclusão ao deixar de lado outras possibilidades de identidade de gênero, acarretando na invisibilização dessas pessoas que fazem parte da sociedade e que cada vez mais buscam por reconhecimento. 

“A linguagem é um território político de disputa, é algo que se transforma no tempo, a partir das lutas e das transformações da sociedade. A língua não é estática, é algo que está marcado por todas as lutas, inclusive as que passam pelo enfrentamento das desigualdades, das discriminações históricas, dos racismos, sexismo, lgbtfobia, capacitismo… Ela se transforma na perspectiva de reconhecer diferenças que foram por muito tempo silenciadas, invisibilizadas, discriminadas”, afirma Denise Carreira, coordenadora institucional do Ação Educativa, associação que atua nos campos da educação, da cultura e da juventude, na perspectiva dos direitos humanos.

Ao contrário do que muitas pessoas pensam, a luta por uma linguagem inclusiva não é de hoje, nem surgiu da cabeça de promíscuos e nem de comunistas. Nos anos 1980, feministas passaram a questionar o padrão masculino na linguagem e reivindicaram mudanças gramaticais que abarcassem também as mulheres. Outros movimentos, além do feminismo, denunciam, ainda, sentidos pejorativos relacionados às suas existências, como é o caso dos negros, ambientalistas e indígenas. 

A língua portuguesa, por exemplo, é generificada no masculino, isto é, os coletivos são masculinos e o referencial genérico também o é. Por essas razões é considerada uma língua machista e sexista. Ao falarmos de modo amplo “uma reunião entre duas advogadas e um advogado”, automaticamente adotamos o masculino “uma reunião entre advogados”. Desta forma, mulheres e pessoas que não se identificam com algum dos dois gêneros são excluídas.

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Imagem da prova de biologia aplicada na EEB Altamiro Guimarães com o termo alune no lugar de aluno. (Foto: Reprodução)

Nos anos 2000, a comunidade LGBTQIA+ passou a lutar pelo reconhecimento de pessoas transexuais, travestis, não-binárias ou intersexuais através da linguagem neutra. É cada vez mais comum nos depararmos com o uso de “e”, “x” e “@” no lugar de terminações com “a” e “o”. Por exemplo, todos se transforma em todes, alunos em alunes, como pode ser visto no guia criado pelo UOL. A internet está cheia desses exemplos, mas não só lá, empresas estão se adaptando à essa nova perspectiva junto à publicidade. 

“É uma vogal, mas se torna tão emblemática e dignificante para quem se vê assim. Quem faz a língua é quem a usa, se o sistema da língua dá brecha, eu vou usar”, pontua Raquel Freitag, vice-presidente da Associação Brasileira de Linguística (Abralin).  

Para a especialista em linguística e estudos de gênero, doutora Carmem Rosa, o momento é de inclusão. “É uma pequeníssima forma de inclusão, uma terminação gramatical não vai mudar as relações, mas ajuda na conscientização linguística e traz junto o reconhecimento dessas pessoas”. 

Um dos argumentos usados por quem é contrário ao uso da linguagem neutra e que foi usado no projeto de lei é o de que afetaria o entendimento de pessoas com deficiência, como cegos e surdos. No artigo “Língua para todes: um olhar formal sobre a expressão de gênero gramatical e a demanda pela lingua(gem) inclusiva”, a doutora em linguística Ana Lucia Pessotto reflete sobre as possibilidades do uso das terminações neutras na língua portuguesa. Ela afirma que “a alternativa ‘e’ é a única que se conforma às regras fonotáticas da língua e seria, portanto, mais amigável aos processos de aquisição de língua falada e escrita”. 

A intervenção estatal 

Três projetos de lei que previam a proibição do uso de linguagem neutra no estado tramitavam na Assembleia Legislativa de Santa Catarina (ALESC), dois são do deputado Jessé Lopes (PSL) e de Jair Miotto (Orador) e o outro é da deputada Campagnolo. A relatora Paulinha (sem partido), concatenou os três e o transformou em um. 

O PL 357.5/2020, de autoria de Campagnolo, estabelece medidas protetivas ao direito dos estudantes de SC ao aprendizado da língua portuguesa de acordo com a norma culta. Na justificativa ao projeto, a parlamentar cita três fontes: o guru de Bolsonaro, Olavo de Carvalho, uma digital influencer e professora de português contrária à adoção da linguagem neutra e George Orwell.

“O que acontece em Santa Catarina é uma realidade que está presente em alguns lugares do país e que integra essa agenda ultraconservadora contra gênero, raça e sexualidade. Esses grupos trabalham com fake news, pânico moral, preconceito e estimulam medo, perseguições nas escolas, a censura e negam o avanço de direitos, negam a construção de uma linguagem mais democrática e inclusiva”, enfatiza Denise Carreira.

A reação à linguagem neutra integra os vários ataques à educação desde que Bolsonaro tomou conta do poder. Fazem parte do pacote ultraconservador, a proposta de educação domiciliar, a militarização das escolas, as propostas da escola sem partido, os ataques ao programa nacional do livro didático e tantos outros.

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Três docentes da EEB Altamiro Guimarães já foram alvos de perseguição por parte de estudantes, pais e políticos em SC. (Foto: Divulgação)

A Associação Brasileira de Linguística divulgou uma nota de repúdio ao decreto assinado pelo governador catarinense. Segundo a Abralin, “entende-se que orientações referentes a regras gramaticais do português brasileiro não devem ser regulamentadas por decretos governamentais. Defende também que a prática docente e a formação de professores e estudantes devem ser embasadas em pesquisas, reflexões e debates existentes nas diferentes subáreas de estudo da língua portuguesa em uso no Brasil”. 

Para a especialista em linguística e estudos de gênero, Carmem Rosa, o decreto é resultado do contexto de avanço institucional do fascismo no país. “Só no fascismo se repreende a linguagem. Não tem que proibir a linguagem, isso é um absurdo completo, todo mundo tem direito de usar a sua língua, no seu ambiente, no seu contexto, isso é contra a humanidade. Isso é ideológico, eles pegam isso como se fosse um pecado, não tem nada a ver com sexualidade, tem a ver com identidade de gênero e chega de um modo tão errado nas famílias, como se fosse uma catástrofe mas eles que não são especialistas, eles que não entendem nada de português”. 

Vigilância contra docentes

Acusações contra professores e contra as práticas de ensino têm se tornado cada vez mais comuns entre pais e alunos. É a terceira vez que a EEB Altamiro Guimarães se vê envolvida em denúncias contra os docentes. Além de Whilliam, a professora de português Cláudia Monteiro sofreu perseguição por parte de uma mãe após aplicar um exercício de interpretação de texto usando uma personagem negra no ano passado. Já o professor de história, Altamiro Antonio Kretzer, foi parar nas redes bolsonaristas acusado de ser doutrinador. 

Na semana passada, uma professora de inglês de uma escola estadual no Espírito Santo foi intimidada por um vereador e uma mãe de aluna por passar um texto sobre o mês do Orgulho LGBTQIA+. Uma estudante da docente, indignada com a perseguição, postou a história no Twitter. O caso ganhou dimensão nacional e a Secretaria Estadual de Educação informou que vai denunciar o político ao Ministério Público.

Esse tipo de vigilância remete ao controle da educação na época nazista, onde estudantes eram aliciados e se tornavam vigilantes dentro da sala de aula. No Brasil atual, o incentivo às denúncias parte de parlamentares da direita, o deputado Jessé Lopes, por exemplo, disponibiliza um canal de denúncia exclusivo contra professores e escolas. 

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Canal de denúncias contra professores e escolas no site do deputado estadual, Jessé Lopes (PSL). (Foto: Reprodução)

Em 2017, a própria deputada Campagnolo ganhou os holofotes da mídia ao mover uma ação contra a ex-orientadora de mestrado, a professora e colunista do Portal Catarinas, Marlene de Fáveri. Em 2018, foi julgada improcedente pelo juiz André Alexandre Happke do 1º Juizado Especial Cível da Comarca de Chapecó. O posicionamento da parlamentar contrário à diversidade de gênero pode ser visto até hoje. No início de junho, Campagnolo participou de uma live com “cristãos” em que debateram com Michelle Brea, uma mulher trans. Durante a conversa, Michelle perguntou se a deputada poderia elaborar um projeto contra a pauta LGBT e ela afirmou que se achasse conveniente poderia sim. 

“Esse projeto ultraconservador para educação que ganhou força neste governo é um projeto não só de destruição, mas de reconfiguração da política educacional por uma perspectiva de uma educação para a obediência a uma ordem hierárquica, discriminatória, violenta que descarta corpos”, declara Denise Carreira.

No Colégio Aplicação da UFSC, pais de alunos passaram a pressionar os professores sobre o tema após a mídia local noticiar uma possível aprovação do projeto de lei que proíbe a linguagem neutra. “Há sempre essa sombra de que haverá alguém a fazer uma ‘denúncia’ e com o advento das redes sociais, de que você poderá ser execrado publicamente, perder emprego, etc. Muitas das vezes, profissionais competentes em suas áreas, que oferecem ótimas aulas, acabam vítimas de fragmentos descontextualizados de sua atuação e de patrulhas ideológicas estabelecidas por esses movimentos – que ao pretenderem se dizer sem ideologia, são o que há de mais ideológico e, por que não dizer, fascista”, declara George França, professor de português do colégio. 

Ao contrário do que é disseminado pela faceta conservadora com o intuito de causar pânico, esse tipo de debate dentro da sala de aula é trazido pelos próprios estudantes. “É constante que eles nos perguntem sobre isso. Afinal, eles estão inseridos em outras esferas de interação, em especial na internet. Ouvem e leem muitas coisas de muitas fontes diferentes. Aí trazem as questões. Toda vez que se está trabalhando alguma questão que envolva gênero gramatical, por exemplo, alguém pergunta. E acho que o pior a fazer é se negar a responder ou se sentir censurado em dar uma resposta”, afirma França.

A linguagem neutra ao redor do mundo

O acesso à informação é reconhecido como direito fundamental por organismos da comunidade internacional, como a Organização das Nações Unidas (ONU). Essa acessibilidade é um direito à cidadania. Ao redor do mundo, países começam a discutir e reconhecer a linguagem não-binária. Em 2008, o parlamento europeu passou a adotar a utilização de uma linguagem neutra do ponto de vista do gênero. 

A nossa vizinha Argentina também vem trabalhando em cima desse tema. Em abril, o presidente Alberto Fernández discursou para a população usando a linguagem neutra. Nos Estados Unidos, onde vivem cerca de 1 milhão de adultos não-binários, segundo o centro de pesquisa Williams Institute, cidades e Estados estão começando a utilizar marcadores de gênero neutro nas carteiras de habilitação. Em janeiro, o presidente americano Joe Biden assinou uma ordem executiva, baseada nas leis antidiscriminação, em que inclui orientação sexual e identidade de gênero no “sexo”. Já o país de Gales foi a primeria região a eleger um presidente não-binário. As mudanças atingem também o setor audiovisual, a plataforma de streaming Netflix anunciou o lançamento de uma série pré-escolar com o primeiro personagem não-binário. 

O Portal Catarinas entrou em contato com o governador Carlos Moisés e as deputadas Ana Caroline Campagnolo e Paulinha, mas até o fechamento desta edição não houve respostas. Também entramos em contato com a OAB para questionar a constitucionalidade do decreto, mas não obtivemos retorno. 

O que podemos afirmar é que há uma perda de tempo e de energia do legislativo em querer intervir em questões pontuais que não estão mudando a língua de forma genérica na escola, quando outras decisões mais importantes poderiam estar sendo tomadas, inclusive sobre a pandemia.

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