A discussão sobre a interrupção da gestação no Brasil é marcada por um empate técnico entre os que são favoráveis e contrários à legalização da prática em qualquer caso, segundo estudo recente. No entanto, outros levantamentos mostram que a população é mais flexível sobre o assunto do que sugerem os discursos antiaborto.

A maioria da população é contrária à criminalização do aborto e apoia a manutenção do procedimento nas circunstâncias já permitidas por lei. Além disso, é majoritariamente contrária ao PL 1904/2024, que propõe equiparar o aborto após a 22ª semana de gestação ao crime de homicídio.

Especialistas entrevistadas pelo Catarinas apontam que perguntas simplistas não captam a complexidade das experiências de quem passa por essa decisão. Além disso, o estigma associado ao aborto pode influenciar as respostas, tornando inadequadas as abordagens tradicionais.

Estima-se que ocorram cerca de 500 mil abortos por ano no Brasil, envolvendo majoritariamente mulheres cristãs, sejam católicas ou evangélicas, mas também mulheres de diversas outras religiões, segundo a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) de 2021. O levantamento aponta que, muitas vezes, a oposição ao aborto está mais relacionada à coerção moral do que a uma oposição consciente e informada.

O que dizem pesquisas recentes

Em relação ao Projeto de Lei 1904, uma pesquisa do Instituto Datafolha, realizada em junho de 2024, aponta que 66% dos brasileiros/as são contrários à proposta. Segundo o levantamento, 29% são favoráveis, 2% disseram que são indiferentes e 4% não sabem. 

Sobre a legalização do aborto, o Ipsos Global Views on Abortion 2023 indica que 39% dos entrevistados acreditam que o aborto deve ser legal, enquanto 43% acham que deve ser ilegal. A pesquisa revela maior aceitação do aborto em casos específicos, como gravidez resultante de estupro (70%), risco de vida para a mãe (66%) e problemas graves de saúde do bebê (50%). 

Outro levantamento do DataFolha, realizado em março de 2024, mostra que 42% dos entrevistados acreditam que a lei deve continuar como está. Atualmente, a legislação brasileira permite o aborto em três casos: risco de morte para a gestante, estupro e anencefalia do feto. 

Conforme a pesquisa, 35% acham que o aborto deveria ser proibido em qualquer situação; 15% acreditam que deveria ser ampliado para outras situações; e 6% acham que deveria ser permitido em qualquer situação. 2% não opinaram. As taxas permaneceram estáveis em comparação com o estudo anterior, de maio de 2022.

Já a pesquisa Percepções sobre direito ao aborto em caso de estupro, publicada pelo Instituto Patrícia Galvão e Instituto Locomotiva, em 2022, aponta uma porcentagem favorável bem maior: para 74% dos entrevistados e entrevistadas os casos de aborto previstos por lei devem ser mantidos ou ampliados. Esse apoio cresce ainda mais quando se trata de casos de estupro, atingindo 87% da população, que defende o direito da vítima decidir sobre a interrupção da gravidez.

A pesquisa do Instituto Patrícia Galvão e Locomotiva revela que a maioria (77%) reconhece que as principais vítimas da criminalização do aborto no Brasil são as mulheres pobres. Além disso, para 64% dos entrevistados, a discussão sobre aborto no país é principalmente uma questão de saúde pública e direitos.

Ao abordar a percepção sobre o direito ao aborto em casos de estupro, a violência sexual contra mulheres e meninas, as instituições de apoio às vítimas e as condições que configuram estupro, este último levantamento oferece um panorama abrangente sobre o tema, seguindo a metodologia recomendada por especialistas para tratar dessa questão de forma adequada.

Estigma pode influenciar nas respostas

A antropóloga Débora Diniz afirma ao Catarinas que é um erro metodológico e ético analisar questões de filosofia e moral privadas com perguntas “contra” ou “a favor”, pois essas perguntas binárias ignoram a complexidade do pensamento e comportamento das pessoas.

Em 2018, durante a discussão da ADPF 442 no Supremo Tribunal Federal (STF), Diniz criticou metodologias que focam apenas nos aspectos morais e legais do tema, negligenciando a abordagem de saúde pública e direitos humanos.

“Imaginem qualquer um de nós fazendo a pergunta se você é contra ou a favor de ter uma religião. Essa pergunta não seria feita porque ela não é considerada factível para se apresentar uma resposta sobre garantias de direitos individuais. Nenhuma das duas pesquisas seria publicada em uma revista confiável da comunidade acadêmica. (…) Não há erro em coleta de dados, mas há um erro de pergunta”, defendeu em discurso. 

Camilla Valadares, Diretora Colegiada do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), também enfatiza que perguntas binárias são prejudiciais para questões complexas como o aborto, que não podem ser reduzidas a “a favor” ou “contra”, “sim” ou “não” e “certo” ou “errado”. 

Ela destaca que as metodologias de pesquisa historicamente refletiram um viés patriarcal devido à exclusão das mulheres na ciência, onde a figura masculina define o que é ideal e correto e tudo fora desse modelo é considerado desviante e errado. 

“Questões complexas só começaram a ser feitas a partir da luta de mulheres e outras pessoas dissidentes de gênero e da estrutura patriarcal binária”, afirma.

“Por isso, é importante que os levantamentos sejam pensados e interpretados a partir de um olhar crítico que considere as desigualdades de raça, gênero e classe, especialmente na sociedade brasileira”, completa. 

Sonia Corrêa, coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política (SPW), pondera que as respostas sobre o aborto são mais enviesadas pelo apego à norma e à ideia de lei do que pelo viés patriarcal, embora reconheça que a legislação que proíbe o aborto tenha traços patriarcais fortes. “Isso não significa que o instituto de pesquisa tenha um viés patriarcal ao fazer essa pergunta. Ele está se apegando à norma como ela é. Há muitas sutilezas a serem consideradas”, analisa. 

Assim, enquanto Valadares enfatiza a necessidade de uma abordagem crítica e inclusiva, Corrêa destaca a complexidade dos fatores que influenciam as respostas, sugerindo que a conformidade com a lei também desempenha um papel significativo. Ambos concordam que a questão do aborto não pode ser simplificada e que é necessária uma análise mais profunda para entender as diversas influências envolvidas.

Quando o jeito de perguntar muda a opinião muda também

Para analisar o histórico de pesquisas de opinião sobre o tema, o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), o Observatório de Sexualidade e Política (SPW) e o Centro de Estudos de Opinião Pública (CESOP/Unicamp) elaboraram o relatório “Opinião pública sobre prisão de mulheres por aborto no Brasil: Resultados de pesquisas realizadas entre 2018 e 2023”.

As organizações analisaram as edições da pesquisa “A Cara da Democracia”, do Instituto da Democracia, de 2018 a 2023. O recorte leva em conta a pergunta “O(a) Sr.(a) é a favor ou contra a prisão de mulheres que interrompam a gravidez?” que até então não era feita na série histórica.

O relatório conclui que, no período analisado, a maioria dos/as brasileiros/as se opõe à criminalização das mulheres que realizam aborto, com índices entre 50% e 59%. As opiniões a favor da criminalização sempre foram menores e variaram pouco ao longo do tempo.

“Durante muitos anos, a tendência era perguntar se a lei deveria continuar como está ou ser modificada. Essa pergunta tem dois problemas: supõe que as pessoas saibam o que está na legislação, o que nem sempre ocorre, e tende a levar as pessoas a responder que querem manter a lei como está”, explica Sonia Corrêa

A pesquisadora conta que desde os anos 1980, e mais intensamente nos anos 1990, os movimentos feministas já perguntavam em suas mobilizações se as mulheres que abortavam deveriam ser presas. Segundo a coordenadora, formulado dessa forma, o questionamento suscita outro tipo de reação, pois leva as pessoas a pensarem em situações concretas de mulheres que abortam.

“Elas pensam nas suas amigas, nas suas irmãs, nas suas esposas, nas suas filhas. E ao pensar a questão com empatia elas vão dar uma resposta diferente. Então, a questão da pergunta, nesse caso, é absolutamente crucial para facilitar ou não uma reflexão das pessoas sobre a realidade do aborto”, afirma. 

“É importante que os institutos de pesquisa mudem suas metodologias como nós conseguimos, finalmente, mudar a pergunta sobre se as mulheres devem ser presas”, defende. 

A conclusão é que a análise das respostas não deve se limitar a posições binárias, mas sim explorar as práticas reais das mulheres, meninas e pessoas que gestam, proporcionando uma compreensão mais abrangente e sensível das questões relacionadas aos direitos reprodutivos no Brasil. 

“Uma pergunta possível seria: Você concorda ou discorda que uma mulher deva ser presa por fazer um aborto? Ou: Você conhece alguém que já fez aborto? Você acha que essa pessoa deveria ter sido presa? Isso desloca o raciocínio para o concreto, não uma abstração que espera uma resposta correta da moral hegemônica”, sugere Diniz.

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  • Kelly Ribeiro

    Jornalista e assistente de roteiro, com experiência em cobertura de temas relacionados a cultura, gênero e raça. Pós-gra...

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