Eu poderia aqui falar de números, e nos fazer ficar perplexas com cifras que a gente nunca chega a entender direito. O que são mais de 117 mulheres mortas em um mês e meio? Alguém consegue compreender isso direito? Eu poderia falar das leis, tão recentes ainda e tão inaplicáveis em nossa democracia fugidia, leis sancionadas por mulheres, pela persistência intransigente, ainda bem, de uma Dilma Rousseff deposta e difamada em sua “condição de sexo feminino”. Não tenho dúvidas quanto a isso. Ou eu poderia tentar falar mais concretamente sobre o assassinato de mulheres como “solução final” para uma longa cadeia de causas, abusos e negligências – públicas, sociais e de justiça.

Mas a verdade é que eu gostaria de falar sobre os conceitos e sobre os símbolos escamoteados em cada uma de nossas mortes. Porque antes de nos matar de fato, já nos mataram incontáveis vezes em seu ódio multifacetado.

Eu quero salientar a simbologia e a construção conceitual, remota, presente nestas inúmeras mortes que sofremos diariamente em nossos corpos, em nossas mentes e em nossos espíritos. Porque nós morremos um pouquinho a cada dia.

Ao nos vestirmos como bonecas ou como princesas quando somos crianças.

Ao nos sentarmos de pernas fechadas, porque nosso sexo não pode ser sequer  sugestionado.

Ao nos conformarmos à domesticidade desde muito cedo.

Ao nos conformarmos à mobília doméstica, por assim dizer.

Ao nos conformarmos a uma vergonha imposta – apenas recentemente me dei conta de que eu escondia as alças do meu sutiã sob a roupa de modo paranoico. Mas é meio óbvio que eu tenho seios e que uso sutiã, então, de onde vem isso? Aliás, eu jamais esqueci os estalos dos meus sutiãs nas minhas costas na sala de aula.

Ao nos conformarmos, portanto, a uma feminilidade que nos imobiliza e que determina os nossos destinos, as profissões apropriadas, as carreiras permitidas, os comportamentos desejados em casa, na rua, no trabalho.

Ao nos imobilizarmos em uma condição visual. Que passa por tudo, absolutamente: roupa, cabelo, corpo, unhas, acessórios; tudo aqui é imperativo. E as condições visuais da feminilidade levam tantas e tantas vezes a condições de anorexia, de mutilação, de vergonha, de depressão.

Temos nos livrado de algumas destas coisas. Mas nem tanto assim… na verdade.

A imobilidade nos padroniza. E quando não estamos no padrão, somos indesejáveis em vários sentidos deste termo: sexualmente, afetivamente, politicamente. Não consigo deixar de pensar em Dilma Rousseff novamente. Fizeram por “provar” que ela não era sexualmente, afetivamente e politicamente adequada. Tornaram-na imóvel, mais uma vez.

Obviamente, estas são condições de uma feminilidade branca; e estou falando de minha perspectiva de branquitude, heterossexualidade e cisgeneridade. E se isso é assim para esta perspectiva, o que não será para todas as outras “condições do sexo feminino”? Nós morremos um pouquinho a cada dia.

Como mulheres negras.

Como mulheres negras cujos corpos são inconformes imediatamente em sua cor, em suas feições, em seus cabelos, em sua ancestralidade.

Como mulheres negras cuja domesticidade convive com o trabalho desde a infância. Não qualquer trabalho, mas aquele que torna os seus corpos “viris”. Serão elas menos mulheres, por isso, como disse lá atrás Sojourner Truth?

Contraditoriamente, no entanto, como mulheres negras cuja caracterização sexual é diametralmente oposta àquela das mulheres brancas: são objetos de desejo e cobiça, mas num sentido violento; nunca afetivo e amoroso – a não ser que sirvam como babás, empregadas, cuidadoras. Mas mesmo isso é violento, porque o seu cuidado nunca é cuidado por ninguém.

Como mulheres negras cujo espaço ocupado é usurpado por todos e todas as outras: cargos importantes, coordenadorias, espaços políticos. Tudo isso é branco. Ousar chegar lá, é inadmissível. E quando não conseguem matar estas mulheres em seus corpos e em suas mentes ao conformá-las aos padrões específicos a elas destinados, eles as matam de fato. Marielle Franco foi morta porque aquele não era o seu lugar, não era o lugar para uma mulher, negra, lésbica ainda por cima. Uma mulher cujo sexo não se determina e não se define em sua comparação ou convivência com o sexo do homem.

O que estou afirmando aqui é que à sua morte de fato todas as outras condições já a haviam matado precedentemente. Como não puderam deixá-la morta em vida, fizeram-na morrer duas vezes. Ou três, ou quatro, conforme vamos sabendo de todas as camadas de ódio que encobrem a sua morte. Dois dias depois do seu assassinato, uma piada grotesca me fez morrer um pouco também: “mulher é dada como morta depois de ficar vinte minutos sem falar nada”. Eles nos querem mudas também. Como se na verdade de fato nos ouvissem em algum momento.

Nós morremos um pouquinho a cada dia.

Ao esquecermos as incontáveis mulheres indígenas que a colonização simplesmente fez desaparecer.

E que continua fazendo desaparecer, no confinamento de suas vidas aos espaços de exceção.

No apagamento de sua história, de sua língua, de sua cultura, de suas terras, de suas crianças – ao levarem meninas como reféns da imoralidade branca. Damares Alves mata as mulheres indígenas todos os dias ao sustentar suas histórias de violência sobre o seu desequilíbrio político. Não psicológico. Político. Porque também matamos as mulheres ao encurralá-las na loucura. Apenas, nestes casos, não é necessário matá-las de fato, porque já não existem como mulheres. – A não ser que agora se o faça, de novo, nas instituições de morte que podem tornar-se os nossos hospitais psiquiátricos.

Na invisibilidade das mulheres indígenas construída pela própria história e pela própria historiografia. Eu demorei vinte e tantos anos para me dar conta de que nas terras catarinenses viviam povos indígenas, contrariamente àquilo que se passava como “fato” nas escolas ou que se emudecia nas rodas da família. Mas eu não sei direito no que eu poderia estar pensando ao ouvir falar dos bugres ou das chinas. Que espécie de imagem me deram como certa? Há quanto tempo não estavam mortas para mim todas as mulheres indígenas da terra em que nasci?

Nós morremos um pouquinho a cada dia.

Ao esquecermos no meio do silêncio da roça, as mulheres camponesas, as agricultoras, usadas em toda a extensão de sua corporeidade para um trabalho que não vale nada, para colheitas não valem nada, para colheitas que envenenam continuamente.

Ao esquecermos a sua “animalização”.

Ao ludibriarmos a nossa imaginação com imagens idílicas do campo, acobertando o patriarcado entranhado na terra.

Elas também morrem nas fôrmas da heteronormatividade, e nas consequências de uma maternidade compulsória, de uma reprodução incansável de jornadas triplas, de uma usurpação do seu saber e do seu cuidado para com a terra, para com as sementes, para com a vida.

Nós morremos um pouquinho a cada dia.

Ao impedir que as mulheres amem mulheres, que as mulheres amem, simplesmente. Que terrível afronta a da lesbianidade ao patriarcado, a completa independência dos afetos sobre a masculinidade! É por isso que nos matam. Porque não os amamos. Ou melhor, porque não nos subjugamos. No fundo, não é o nosso amor que desejam, é simplesmente a nossa genuflexão diária.

Nós morremos um pouquinho a cada dia.

Ao ouvir de mulheres uma pregação anti-feminista – mas o que é isso afinal, meu deus? Será possível uma mulher afirmar, de sua própria voz; eu repito: de sua própria voz, que ela é anti-feminista? Não vos parece isso uma contradição performativa?

Sara Winter não está sozinha em sua sanha de vingança contra as feministas – será porque são incapazes de lidar com a liberdade e as responsabilidades de um pensamento autônomo? Pró-vida, mas pró-vida de quem?

Ela não está sozinha. Está com Ana Campagnolo cujas armas matam animais não-humanos e são apontadas todos os dias contra as feministas. Ela o faz todos os dias ao sair de casa para “legislar” como catarinense, num dos estados brasileiros que mais mata mulheres. Numa reprodução muito velha, muito usada, de caça às bruxas. Ela não é sequer criativa!

Nós morremos um pouquinho a cada dia.

Clandestinamente, silenciosamente, indigentemente, em cada um dos abortos que nos impedem de fazer. Nos cantos escuros do abandono que sobram como último recurso.

Nos cantos escuros do abandono do Estado, do abandono da família, do abandono daqueles que deveriam ser os nossos companheiros; no abandono à violência obstétrica, à violência estrutural que nos mantêm nos trabalhos de cuidado sem retorno, nos serviços terceirizados sempre mal pagos e onde nos tornamos invisíveis, nos serviços que dispõem os nossos corpos à mão alheia.

Nossos corpos estão sempre, completamente, disponíveis.

O que eu quero dizer com isso tudo é que nos matam, um pouquinho, de pouquinho em pouquinho, de várias e várias maneiras, desde que nascemos, e que nunca de fato usufruímos o estar vivas sem condicionamentos, sem pressões, sem determinações patriarcais. Nós nunca simplesmente estamos vivas. Nós estamos vivas, mas.

E tudo porque nossos corpos estão sempre, completamente, disponíveis.

Daí à violência, ao estupro, ao feminicídio, é só a aplicação de uma força a mais, de um empurrão a mais, de uma letalidade a mais.

O que eu quero dizer com isso tudo, é que só vão parar de nos matar quando pararem de nos possuir – em todos os sentidos, em todas essas nuances da corporeidade. Porque o patriarcado não nos quer vivas porque não nos quer livres, não nos quer autônomas, não nos quer cidadãs.

O patriarcado nos quer caladas e imóveis, como bonecas atadas por fios invisíveis.

Minha afirmação aqui, portanto, é a de que a luta contra a violência e o feminicídio exige encontrar e cortar cada um dos fios que prendem nossos corpos à dominação masculina. Exige a nossa liberdade. Exige que nossos corpos sejam nossos. Não se trata de uma concessão de piedade, – nós não queremos que tenham pena de nós – mas de uma concessão de cidadania. Nós queremos ser livres para viver, sem medo de morrer. Todos os dias.

 

Esse texto foi lido durante o evento de apresentação do primeiro Dossiê sobre o Lesbocídio no Brasil, em 14 de fevereiro, no centro de Florianópolis.

*Janyne é professora do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), doutora em Filosofia pela Université du Québec à Montréal (2011), e pós-doutora pela UFSC. Pesquisadora do Núcleo de Ética e Filosofia Política (NÉFIPO) e do Instituto de Estudos de Gênero (IEG) da UFSC. Em suas colunas, propõe uma série de reflexões sobre conceitos ligados ao feminismo.

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  • Janyne Sattler

    Janyne é professora do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia na Universidade Federal de Santa Catarin...

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