A importância de considerar a pauta das mulheres lésbicas como uma pauta de todas as mulheres, assim como denunciar a invisibilidade delas tanto em vida quanto após a morte, são alguns dos temas de reflexão propostos por Suane Soares, doutora em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e uma das pesquisadoras responsáveis pelo primeiro Dossiê sobre o Lesbocídio no Brasil.

O estudo tem como objetivo visibilizar a memória lésbica a partir da investigação e construção de um banco de dados sobre o assassinato de mulheres lésbicas no país e foi apresentado na última quinta-feira em Florianópolis pela pesquisadora, no evento Lesbofobia, feminicídios e violências contra as mulheres, organizado pela Marcha Mundial das Mulheres, Conselho Regional de Psicologia de Santa Catarina (CRP-SC) e Sindicato dos Trabalhadores da Educação (SINTE – SC).

“Para entender o ciclo de violência é preciso conhecer quem elas eram. A memória é um direito de todas nós”, destacou a pesquisadora durante o evento.

Em entrevista ao Portal Catarinas, a pesquisadora, ao abordar as mobilizações do Dia Internacional de Luta das Mulheres, o 8M, e a formação da Marcha de Mundial de Mulheres, realizada no final de semana na capital, ressaltou a necessidade de se pensar o entroncamento das opressões e lembrar que as lésbicas são mulheres e estão presentes em todas as outras categorias.

“É muito importante destacar que as lésbicas que mais sofrem são as lésbicas pobres, negras e indígenas. Essa é uma forma da gente entender que não adianta lutar pelo feminismo branco, isso não vai resolver o problema de quase ninguém”.

Segundo ela, é preciso ter em mente que as mulheres estão em todas as categorias, as mulheres são negras, indígenas, brancas, ricas, pobres, mas as lésbicas também estão em todas as categorias de mulheres. “Então sempre vai ter uma mulher lésbica dentro dessas categorias e isso é sempre ignorado, assim como sempre vai haver uma mulher transexual”. A partir desta proposição conseguimos compreender a importância de tratar a pauta das mulheres lésbicas como um tema que tange a vida de todas as mulheres, dentro e fora do âmbito do movimento ativista.

O assassinato da lésbica Luana Barbosa dos Reis Santos, em 2016, enquanto levava seu filho para a aula se tornou um caso emblemático ao demonstrar a brutalidade da violência racista, de gênero e lesbofóbica no Brasil. O caso foi o ponto de partida para a criação do projeto de pesquisa Lesbocídio – As histórias que ninguém conta, responsável pelo Dossiê e dedicado a resgatar informações e histórias sobre outras Luanas.

“O Dossiê surgiu como um projeto muito experimental e se manteve assim durante toda a sua coleta de dados e análise de dados e no meio desse processo a gente identificou que a simples menção a um termo que representa algo tão grave para a nossa categoria deu uma dimensão da violência contra lésbicas para a sociedade como um todo. E começamos a assumir que nós estamos de fato morrendo”.

A própria dificuldade de encontrar dados sobre as mortes de mulheres lésbicas – até a criação do projeto não existia um mapeamento específico -, e quando registrados, a abordagem pelas instâncias responsáveis e também pela própria mídia na divulgação dos casos era precária, demonstra que o campo de debate no que tange as lésbicas é extremamente invisibilizado.

“A invisibilização em si gera a violência. É um processo que se retroalimenta. Na medida em que há ausência de informação, há ausência de precaução e da dimensão do problema pelas próprias lésbicas. Então, mesmo que nós saibamos pela história do movimento lésbico que a violência contra lésbicas é uma coisa real, e que muitas estão sendo assassinadas e suicidadas, colocar isso no papel assusta muito e coloca a gente em um espaço de vulnerabilidade que a gente não sabia que ocupava”.

Para Suane, a construção do conceito de lesbocídio e sua inclusão na pauta de discussão faz parte de um processo de nomear as opressões. Ao nomear as coisas, elas passam a existir, possibilitando assim a reflexão e análise do problema, movimento importante para romper com a invisibilização. O termo lesbocídio utilizado no estudo é definido como a morte de lésbicas por motivo de lesbofobia ou ódio, repulsa e discriminação contra a existência lésbica. Todo o lesbocídio é um feminicídio, mas nem todo o feminicídio é um lesbocídio, e são essas especificidades que demandam atenção.

Segundo dados do relatório, entre 2014 e 2017, 126 mulheres lésbicas foram assassinadas e 33 suicidadas no país. Os percentuais analisados demonstram a prevalência de assassinatos entre mulheres jovens (até 24 anos), moradoras do interior e assassinadas, em sua maioria, no espaço público por homens. Contudo, o espaço doméstico também apresenta casos de lesbocídio, pois a violência familiar é bastante comum, assim como a faixa etária é diversa, demonstrando que as mulheres lésbicas, de forma geral, em todos os espaços, não estão seguras.

O suicídio entra nos dados coletados por ser entendido como um fenômeno social complexo que não pode ser relacionado apenas ao quadro de opressões e ao aumento da lesbofobia. No entanto, a população lésbica é marcada por altos números de suicídio e estes índices podem estar relacionados ao preconceito que enfrentam cotidianamente, com a impossibilidade de encontrar-se em sociedade e de possuir qualquer espaço de amparo e sociabilidade.

 

Dossié é resultado do projeto de pesquisa Lesbocídio – As histórias que ninguém conta/Foto: Elaine Schmitt

A lesbofobia, segundo Suane, é algo que gera um isolamento das lésbicas e o espaço doméstico passa a ser um espaço muito paradoxal. Se por um lado ele é um espaço em que ela está segura de todos os perigos da rua, é no ambiente familiar que ela também está vulnerável de uma outra forma que as mulheres heterossexuais não estão. “Uma mulher hetero não corre o risco de ser eliminada simplesmente por estar ali naquele espaço. A mulher heterossexual tem um lugar na sociedade, no patriarcado. As lésbicas são um erro do patriarcado e precisam ser eliminadas”.

A pesquisadora destaca ainda que todas as opressões e todos os privilégios quando juntos geram novas formas de opressões e privilégios. Na medida em que o  lesbocídio passa a ser tratado como fruto da misoginia e da lesbofobia, pelo menos, mas às vezes de outras opressões como o racismo, o classismo, é possível identificar e perceber como é essa opressão e como ela se dá em cada contexto.

Criminalizar a LGBTfobia é uma forma de diagnosticar o problema da violência

No Brasil, nenhuma lei brasileira traz expressa a palavra “lésbica” em seu texto, nem mesmo as leis Maria da Penha e a do Feminicídio. Só por esse grande “detalhe” já é possível ver o descaso institucional que a população LGBT sofre no país. A violência contra LGBTs no Brasil tem sido assunto bastante abordado na ultima semana, com o início do julgamento de duas ações pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que tratam da perseguição de pessoas LGBTs e da omissão do Congresso Nacional ao não legislar sobre o tema, criminalizando a LGBTfobia.

A primeira ação se trata de Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão, de autoria do Partido Popular Socialista (PPS), e o segundo processo julgado é um Mandado de Injunção, impetrado pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros.

Para a Suane, soa até engraçado lutar tanto por leis quando se sabe que na verdade poucas vezes elas serão aplicadas. “Todo o lesbocídio é um homicídio, e seria evidente em uma sociedade ideal que a gente não precisasse de uma lei que ratificasse uma outra lei. Mas no nosso caso, quanto mais leis a gente tiver, mais chances a gente tem de haver qualquer tipo de política pública para evitar essa violência. A lei funciona muito mais como uma forma de diagnosticar um problema do que de combater um problema”.

Assim, não existe a percepção de que a criação desta lei vai gerar mais penalização. Mesmo assim, é preciso que se faça o debate sobre as populações mais afetadas quando da aplicação de leis. “A gente sabe que as populações que mais são afetadas pelas leis mal aplicadas ou bem aplicadas são as populações negras, indígenas e pobres e isso precisa ser sempre levado em consideração”, afirma.

 

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