Lourdes Barreto, 75 anos, assim como sua colega Gabriela Leite, não tem medo das palavras. Pelo contrário, sempre lutou pelo direito de afirmar-se como trabalhadora do sexo: “sou puta”. É por entender que o estigma da palavra “puta” só se fortalece no anonimato e silêncio que a prostituta aposentada milita há 35 anos por identidade, melhores condições de trabalho e contra violências sofridas pelas profissionais do sexo.
A ativista já viu de perto a violência em suas mais variadas faces. Aos 14 anos, ainda virgem, foi estuprada pelo tio e saiu de casa, na Paraíba, para não mais voltar. Nas ruas, sofreu cotidianamente a violência policial, agravada pelo fato de ser mulher e não poder atuar em sua profissão. Hoje, esse tipo de violência, mesmo que ainda generalizada – como afirma -, é menos frequente em função do movimento de putas iniciado por ela e tantas outras no Brasil dos anos 80. “Essa violência mudou um pouco porque eles sabem que conhecemos nossos direitos”, aponta. As violências psicológicas e emocionais, no entanto, continuam tão presentes como antes, ancoradas no preconceito da sociedade contra as trabalhadoras sexuais. “Há muita discriminação porque sou nordestina, puta e mulher”.
Fundadora do Grupo de Mulheres Prostitutas do Estado do Pará (Gempac), ela participou em 1987 do primeiro encontro que deu início às organizações em defesa das prostitutas, o “Fala mulher da vida”. Lourdes é reconhecida ainda pelo protagonismo na luta contra o HIV/Aids e hepatites virais no Brasil. Em passagem por Florianópolis, no último fim de semana, para o Seminário RED-mensionando o feminino, realizado pela Casa da Mulher Catarina e integrado pela Rede Feminista de Saúde, Rede Brasileira de Prostitutas e Rede Nacional de Pessoas Trans, a militante histórica cedeu uma entrevista a Catarinas.
Catarinas: Como você vê esse início de diálogo entre os movimentos feministas e de prostitutas?
Lourdes: Esperava essa integração há muito tempo. Os movimentos feministas precisam ver a questão dos direitos sexuais e reprodutivos com mais clareza, não só no discurso, mas na prática. Quando se reúnem com a gente, começam a ir para a prática.
Catarinas: As prostitutas também fazem a defesa por direitos sexuais e reprodutivos…
Lourdes: Sou pela legalização do aborto. É uma questão de saúde pública. Lutamos para que o SUS tenha condições de oferecer o serviço de aborto. As mortes estão relacionadas ao aborto quando este ocorre em condições de risco. Eu já fiz muitos abortos, mas tinha dinheiro e pagava bons médicos. Nesse caso, não corria riscos. O corpo é meu, faço dele o que quiser. Se tiver filhos quem paga as consequências dos cuidados sou eu. Logo, eu decido.
Catarinas: Algumas prostitutas não concordam em dividir os movimentos de putas e feministas, pois se consideram feministas também. Você é feminista? O que é ser feminista?
Lourdes: Sou feminista que luta pela organização política, por direitos e cidadania. Sou uma puta feminista. Ser feminista é ficar empoderada de direitos e deveres. Venho da igreja católica, porém consegui romper com os discursos contrários às pautas feministas, quando saímos e formamos os movimentos de putas. As feministas radicais, as chamadas abolicionistas, não nos aceitavam e continuam não aceitando. Essa não aceitação contribui para a questão de violência e estigma.
Catarinas: Como foi a vivência ao lado de Gabriela Leite?
Lourdes: Nós começamos o movimento. Pensávamos diferente em vários pontos, mas chegávamos a consensos porque éramos muito políticas, cedíamos uma para outra, batalhando pelo direito das prostitutas. A morte de Gabriela foi uma grande perda para o movimento de putas e de mulheres. Somos um movimento social, revolucionário, dinâmico, que tem suas complicações, mas tem um grande valor, principalmente pela autodeterminação. Somos mulheres com papéis sociais.
Catarinas: Qual o papel social da prostituta?
Lourdes: Tem o papel de educadora sexual. Educa porque tem muito homem que não sabe trepar. Oferecemos serviço de sexo profissional. Fazer sexo não é só levantar o pau.
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Catarinas: A ativista Monique Prada, representante da Central Única das Trabalhadoras e Trabalhadores Sexuais (Cuts), é contrária ao papel de educadora sexual atribuído à prostituta…
Lourdes: Ela é jovem. Somos de épocas diferentes, discordamos em alguns pontos. Sou do tempo em que se educava o homem para casar. A prostituta atuava como educadora sexual.
Catarinas: Nesse caso, as mulheres também precisariam de educadores sexuais?
Lourdes: Muitas também não sabem trepar, casam e vivem por viver. Não sabem nem mesmo executar uma fantasia sexual. Conheço muitas mulheres que nunca gozaram.
Catarinas: Você era virgem quando foi violentada sexualmente pelo seu tio. Como foram suas experiências sexuais?
Lourdes: Meu primeiro orgasmo aconteceu na primeira relação sexual na profissão. Me apaixonei pelo cliente que era um desembargador do estado da Paraíba. Foi logo quando saí de casa, tinha 14 anos. Sou contrária à prostituição infantil, mas foi minha realidade. Era grandona, andava bem vestida, ninguém sabia minha idade. Naquele tempo, anos 50, não havia fiscalização.
Catarinas: E como foi a vida como puta?
Lourdes: Na prostituição só tive prazer, vivi algumas decepções, porém o que ficou foi a alegria. Tive quatro filhos, ajudei a criar 10 netos e vivi com vários maridos. Gosto de ser puta, infelizmente a gente envelhece e o mercado quer corpo jovem. Vejo a prostituição como um trabalho como outro qualquer. Hoje, recebo minha aposentadoria, não é muito, mas dá para viver. Tenho minha casa própria, dou consultoria e faço outros trabalhos.
Catarinas: Você defende muito a identidade das putas para que não precisem esconder sua profissão…
Lourdes: A discriminação só vai mudar quando todas assumirem sua identidade e exercerem seu papel de cidadãs. Sou puta e acabou. Sou mulher, mãe, pago meus impostos, faço parte dessa sociedade, tenho meus direitos.
Catarinas: Quais as principais reivindicações dos movimentos de prostitutas atualmente?
Lourdes: Lutamos para divulgar que a prostituição consta como um ofício legal na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) do Ministério do Trabalho, a CBO 519805. Buscamos conscientizar também para o pagamento da seguridade social.
Catarinas: E quanto ao Projeto de Lei N 4211/2012 proposto pelo deputado federal Jean Wyllys (Psol/RJ), a Lei “Gabriela Leite” de regulamentação da prostituição?
Lourdes: Sou favorável à aprovação do projeto que regulamenta a atividade das profissionais do sexo. Precisamos preservar a única coisa que temos. Eu concordo com todos os pontos. Por exemplo, se trabalhamos numa casa em que o proprietário dá toda a estrutura acho justo que haja contribuição. Ao lado da regulamentação, precisamos lutar por melhores condições de trabalho. Em muitas casos, as condições são péssimas.
Catarinas: Como foi ser puta, ativista e mãe? Como seus filhos encaram a sua história de vida?
Lourdes: Eu amei a maternidade. Nunca escondi a verdade dos meus filhos, sempre falei de onde vinha o dinheiro. Meus filhos e netos têm muito orgulho de mim. Alguns têm teses baseadas na minha vida, outros me chamam para fazer palestras. Sou mulher pública, considerada e respeitada em Belém do Pará. Já fui de vários partidos, atualmente estou no PSOL.
Mesmo que a profissão seja reconhecida pelo Ministério do Trabalho, o seu exercício encontra barreiras no código penal, já que a manutenção de casa de prostituição e o favorecimento à atividade são considerados crimes.
Assista ao documentário “Um beijo para Gabriela”, de Laura Murray:
O filme segue de perto campanha a deputada federal, em 2010, de Gabriela Leite, a primeira prostituta de quem se tem notícia a concorrer a um mandato no Congresso Nacional brasileiro. Enfrentando 822 oponentes e um sistema politico dominado pelo gênero masculino, poderá uma prostituta, ativista, esposa e mãe contrariar a norma e vencer as eleições?