“Vamos à luta companheiros, para que a opressão e a exploração terminem nesse país. Para que esse país, além de vir a ser uma efetiva democracia racial, esse país, tem que ser efetivamente uma democracia”.
Logo após a virada da década de 1970 para 1980 – momento histórico de muitas tensões, protestos e efervescência política, cultural e ideológica – Lélia atuou ativamente para a redemocratização do país. Marcando seu lugar (mais uma vez) no campo das lutas populares brasileiras, descolando seu espectro de ação política ligada aos movimentos sociais para a disputa eleitoral.
::Parte I – A mulher reinventada: a construção de um pensamento amefricano::
::Parte II – A mulher militante: o combate ao sexismo e ao racismo brasileiro::
No seu histórico político institucional, integrou em 1981 o Diretório Nacional do Partido de Trabalhadores (PT) e sua contribuição junto a homens e mulheres daquela instância marcou o surgimento do partido. Em 1986, passou a integrar o Partido Democrático Trabalhista (PDT). Lançou-se como candidata a deputada federal e estadual, respectivamente. Além disso, a professora de antropologia ocupou outros cargos que foram incorporados sistematicamente aos avanços democráticos, como o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM). Sem nunca ter deixado suas atividades na universidade até o ano de sua morte em 1994, devido a um infarto do miocárdio. Faleceu em sua casa no Cosme Velho, no Rio de Janeiro.
Sua trajetória na política partidária foi vivida intensamente, carregando consigo o escopo da luta ligada à militância feminista e antirracista. O polêmico texto “Racismo por Omissão”, publicado na Folha de São Paulo, em 1983, elucida o posicionamento político inegociável de suas reivindicações sociais. A autora enunciou seu descontentamento com a “invisibilidade” e “esquecimento” dos negros e negras do país na aparição televisa por políticos do PT. Dois anos mais tarde culminou com sua saída do partido.
A presença de Lélia Gonzalez na política partidária, apesar do curto tempo, pode ser entendida como representativa para as muitas mulheres brasileiras, principalmente para as mulheres negras que desafiam e reivindicam esse espaço na política. Espaço que se mantém até os dias atuais ocupado por uma maioria de homens brancos. Neste ano de eleições municipais temos presenciado um crescimento substancial de candidaturas de mulheres negras: quilombolas, trabalhadoras (urbanas e rurais), periféricas, intelectuais, ativistas sociais, entre muitas e diversas histórias de vidas que se cruzam com a trajetória de Lélia Gonzalez.
Da mulher reinventada a mulher militante, passamos para a mulher da política institucional. A mulher que no meio de um discurso cantava um samba, escolhia aquele samba que podia explicar ou comunicar melhor o que queria dizer.
Concluímos, portanto, a série dedicada a uma das intelectuais mais valiosas do pensamento crítico feminista brasileiro, aquela que foi a conexão de saberes científicos e ancestrais, erguendo a voz desde nossa Améfrica Ladina. Daremos sequência à entrevista realizada com a socióloga Flávia Rios, docente e pesquisadora da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da AFRO\Cebrap, que atualmente coordena o núcleo de pesquisa NEGRA, da UFF. Co-autora da biografia de Lélia Gonzalez, obra que integra a Coleção Retratos do Brasil Negro, realizada conjuntamente com o professor Alex Ratts (LAGENTE\UFG).
“Eu gostaria de colocar uma coisa: minoria a gente não é, tá? A cultura brasileira é uma cultura negra por excelência”.
Nicole: “De cutis preta, usa, frequentemente peruca black, cor de cobre e óculos com lentes escuras”, essa foi a descrição de Lélia, registrada pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) do Rio de Janeiro. Quais razões levaram a busca da professora de Filosofia da Universidade Gama Filho pelo regime militar brasileiro?
Flávia: Ela foi fichada em 1972. Participava em grupos de estudos, que era muito comum, de estudos marxistas e estudos feministas, realizavam reuniões em casa e na universidade. Nessa década, a gente tava num período duro com o AI-5, referenciado como anos de chumbo. Foi um período de muitas perseguições políticas, contra as organizações políticas revolucionárias, período de caça das lideranças revolucionarias.
A Lélia não estava nesses grupos clandestinos, ela estava ligada à universidade, mas a universidade brasileira foi muito perseguida: muitos expurgos, muitos infiltrados (alunos) que entravam nas universidades públicas e privadas que anotavam o que os professores falavam. Não dá pra saber, mais provavelmente um aluno (infiltrado) desse meio, fazia a coleta das informações e transcrevia tudo que se dizia lá, com isso, no seu primeiro registro em 1972 aparece como realizadora de reuniões de estudos marxistas, no Rio de Janeiro. Depois quando ela vai se envolvendo mais com as organizações políticas, é interessante dizer que não são organizações políticas clandestinas (luta armada), mas que eram lidas como potenciais subversivas e perigosas. Nesse sentido, tanto o feminismo como o antirracismo também foram controlados, nesses encontros Lélia continuava sob constante vigília. Tem aulas e palestras que ela dava nas ruas que foram transcritas, de passeatas.
Eu fui fazer essa pesquisa no DOPS, daí você vê fotos dela nas manifestações, na Baixada Fluminense. Tem um dossiê grande dela lá porque eles achavam que o que ela falava tinha potencial subversivo, em qualquer momento de alguma situação ou encontro com pessoas ligadas à luta armada ela podia ser enquadrada na Lei de Segurança Nacional. Daí ela teria um histórico, no entanto, não há um registro de que ela tenha sido interrogada. Tampouco, haviam registros de que ela tenha recebido cartas … ela atuava nas redes democráticas que estavam na superfície, que estavam ali questionando, mas que não estava naquelas bases armadas contra a ditadura.
Eu estudei uma outra autora chamada Thereza Santos, que era comunista e fazia parte das organizações clandestinas. Tinha circulação de gente e de documentos na sua casa. Ela fugiu do Rio de Janeiro e foi pra São Paulo, trocou de nome e numa época que ela achou que poderia ser presa pela ditadura militar, exilou-se na África. Histórias distintas, de atuação políticas em redes diferentes contra a ditadura militar.
Nicole: A Lélia em algum momento se auto denominou comunista ou socialista?
Flávia: Não, ela era uma intelectual que dialogava com vários campos, mas que tinha uma autonomia. Mas de fato, quando o PT se formou e o contexto democrático se configurou, aquelas forças progressistas entenderam que precisavam entrar na política para transformar a ditadura numa democracia, por dentro, pelo parlamento. Aí ela forma o PT junto, ela atua na formação do PT. O PT naquele momento era o partido mais popular do Brasil, a maior base popular e mais ampla. Muitos comunistas se negaram ingressar no PT, porque preferiram adotar outras estratégias. Os socialistas ingressaram desde distintas correntes. Ela não estava em nenhuma dessas correntes, ela dialogava com essas correntes, mas ela estava no grupo majoritário do partido, mais popular. Eu diria que ela se identificava mais com a ideia de um partido dos trabalhadores, mas não negava os princípios socialistas democráticos do PT.
“Tratar da divisão sexual do trabalho sem articulá-la com seu correspondente em nível racial, é recair numa espécie de racionalismo universal abstrato, típico de um discurso masculinizado e branco”.
Nicole: Quais foram as motivações e/o preocupações que marcaram a entrada dela na disputa política partidária da época?
Flávia: Ela entendia que tinha que se jogar na política mesmo, que não bastava só formar o partido, mas que também tinha entrar na campanha eleitoral: ela se lançou na política. Naquela época não tinha cotas partidárias ainda ou como hoje recursos destinados para as campanhas eleitorais de mulheres. Essas mulheres entraram com tudo que elas tinham, talvez se ela tivesse se candidatado a vereadora teria tido mais chance. A campanha para deputada estadual é mais dura, tem competição maior e com pouca experiência na política partidária é mais difícil. Mas elas se lançaram, acho que isso é muito bonito.
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É um tema super atual no debate contemporâneo, de você ter mulheres engajadas nos movimentos sociais que se lançam na disputa pelo Estado para poder mudar o país, mudar as leis, para produzir políticas públicas para essas populações.
Ela entendia, como muitos movimentos sociais latino-americanos, que era preciso transformar o Estado por dentro. Atuando nos movimentos sociais, sendo agente dessa transformação social, seja fora, nos protestos, ou dentro do Estado na política partidária. Tem uma entrevista dela no Mulherio que outro dia estava lendo, muito bonita e ela dizia assim:
“não é pra você votar em qualquer mulher” – como quem diz não vai votar na mulher só por ser mulher ou votar no negro porque é negro, é pra votar na mulher que está comprometida.
Junto com outras mulheres, ela percebeu que o machismo já estava se apropriando da pauta de gênero, colocando mulheres de partidos conservadores, como o Arena. Lélia trazia muito essa questão, tem que ter uma representação substantiva, de mulheres preocupadas com a temática de gênero. É interessante, que a Lélia era favorável à legalização do aborto, ela tinha uma preocupação forte com o controle da natalidade, no sentido de que as mulheres tinham que ter consciência sobre seu corpo, consciência das formas de prevenção da gravidez.
Ela era abertamente foi favorável ao aborto, mas imagina se agora é um drama tratar desses temas, isso nos anos 80, óbvio que são pautas que eleitoralmente não têm sucesso no Brasil.
E ela traz essas pautas junto com outras mulheres, não é ela sozinha de jeito nenhum, várias mulheres se lançaram na política para levarem essas agendas: de gênero, de igualdade racial e da população mais pobre mesmo e periférica.
“Ao reivindicar nossa diferença enquanto mulheres negras, enquanto amefricanas, sabemos bem o quanto trazemos em nós as marcas da exploração econômica e da subordinação racial e sexual. Por isso mesmo, trazemos conosco a marca da libertação de todos e todas”.
Nicole: Flávia aproveitando tua participação e para encerrar a entrevista, diante desse contexto pandêmico repleto de atrocidades (sucessiva retirada de direitos do conjunto dos trabalhadores, somada a largada do projeto de “nação” armamentista e genocida do presidente Bolsonaro) eu te pergunto: cumé que a gente fica?
Flávia: Ficamos numa situação muito difícil, o que eu posso tentar mostrar aqui são as estratégias que eu tenho visto, algumas bem sucedidas e outras não. No Brasil tem ocorrido a internacionalização da luta via denúncia do Estado brasileiro nos organismos internacionais, não só apresentando queixas e denúncias na Organizações das Nações Unidas (ONU), contra o regime genocida e racista do Bolsonaro, mas também tem havido articulações em criar uma imagem de que esse governo é opressivo para as populações negras, pra o ecossistema da Amazônia, com o descaso da pandemia hoje. Buscando mostrar como esse governo tem tratado e marginalizado a população, colocado a população numa situação de maior vulnerabilidade. O governo que tem adotado políticas contrárias às orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e de cientistas acadêmicos das universidades brasileiras.
Tem havido uma estratégia forte de apresentar o quanto esse governo tem agravado a situação que já é extremamente agravante com relação à pandemia e as desigualdades que existem, promovendo mensagens contraditórias e até invertidas do que está acontecendo. Tem que ser denunciado o fato desse governo ter barrado as medidas em favor das populações mais vulneráveis e principalmente as indígenas. Pois, hoje nosso principal dilema e desafio é salvaguardar essas populações, que estão mais vulneráveis, são populações pequenas, com menos acesso não só a informação, mas a proteção. Por exemplo, recentemente o governo Bolsonaro barrou as medidas sanitárias que foram apresentadas para a proteção dos indígenas, como: a obrigatoriedade que os municípios tivessem leitos destinados para essa população. Isso é gravíssimo. Essa população tem menos acesso, até porque vive em territórios mais distantes dos grandes centros, existem essas distancias territoriais e peculiaridades culturais, pois os indígenas vivem num regime comunitário, sem contar o próprio sistema imunológico diferente … Isso tudo revela a política genocida do governo: você impedir que haja um tratamento e atendimento focalizado, é criminoso. Tem que ser levado ao Tribunal de Haia, apontado como um governo genocida. Não se trata de uma discussão interna entre grupos: é um consenso mundial, não é uma posição política de um lado ou frente de oposição.
O outro ponto que eu chamaria a atenção são as violências urbanas, a atuação da polícia militar nos governos de Witzel e João Doria. Eles têm adotado políticas agressivas principalmente contra moradores de favelas. Mesmo no contexto de pandemia as operações militares continuaram nas comunidades, isso significa dizer que dessas populações as pessoas continuaram morrendo. Um menino foi metralhado na sua própria casa em São Gonzalo (RJ). Operadores comunitários que estavam fazendo ações no contexto pandêmico de proteção às comunidades foram assassinados por conta dessas operações militares, que são “rotinas”. Num contexto pandêmico de excepcionalidade, quando as pessoas estão vulneráveis precisando receber arroz, feijão, enfim … precisando de mais ações comunitárias porque o Estado não chega. O auxílio emergencial não chegou para todo mundo e demorou pra chegar e não atingiu a todos e onde chegou não é suficiente. O custo de vida aumentou, os produtos alimentícios ficaram mais caros, o gás aumentou, houve especulação do conjunto de vendas ilegais que colocaram as pessoas numa condição mais vulnerável.
O Brasil (governo) também adotou uma flexibilização das empresas com respeito ao trabalho, em que as empresas pudessem demitir as pessoas (isso logo no começo da pandemia) eles disseram: o governo vai subsidiar uma parte do salário e a empresa a outra parte, o trabalhador faz o trabalho remoto o que é possível ser feito, daí a gente mantem o trabalhador empregado. Mas a legislação teve brechas suficientes para que tão logo num período de um mês ou dois, os trabalhadores passaram a ser demitidos. As pessoas que pensaram que poderiam manter seu emprego estão agora recebendo suas cartas de demissão. Então, temos o crescimento do desemprego e vai ter um impacto avassalador no país mais adiante. Realmente, a gente está vivendo um momento dramático. Os políticos estão nesse debate de vamos pedir impeachment ou o que nós vamos fazer. Os movimentos sociais aproveitaram o contexto do assassinato de George Floyd para ir às ruas, até as torcidas organizadas a favor da democracia saíram. E foi importante, porque se criou um ambiente contestatório porque até então só a direita estava na rua defendendo o Bolsonaro e agora ocorre mais mobilizações de crítica duras ao governo. Tem este cenário em que nós estamos pressionando o governo, diante da política genocida de Estado em curso.
Foi bom. Porque pelo menos deu um fôlego, apesar deste momento preocupante dos contágios que ainda é muito problemático sair às ruas, o fato de muitas pessoas terem tido coragem de fazer isso deu uma espécie de fôlego e de mostrar que a gente tá disposto a resistir né. Teve esse folego emocional de desgaste do governo, bastante positivo.
“(…) a gente não pode estar distanciado desse povo que está aí, senão a gente cai numa espécie de abstracionismo muito grande, ficamos fazendo altas teorias, ficamos falando de abstrações… enquanto o povo está numa outra, está vendo a realidade de uma outra forma”.
Edição de Paula Guimarães.
*Descrição de Lélia extraída do documentário Lélia Gonzalez – o feminismo negro no palco da História, produzido pela Abravideo.
** Falas da autora extraídas de materiais digitais disponíveis na web e da sua obra Por um feminismo Afro-latino-Americano (1988).
***Nicole é feminista, latino-americana, mulher cis e migrante. Formada em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), mestre em Serviço Social pela Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM). Doutoranda em Sociologia, estuda teorias feministas, lutas de mulheres e feminismos na América Latina com foco na (re)produção de novas espacialidades.