“Pra mulher negra, o lugar que lhe é reservado é sempre o menor… é o lugar da marginalização, é o lugar do menor salário, é o lugar do desrespeito com relação à sua capacidade profissional …”

 

É com esse olhar crítico e aguçado que Lélia reúne em seus escritos bases transformadoras que espelham sua trajetória militante. A mulher que sabia comunicar com todos e todas, soube enunciar com brilhantismo os problemas sociais latentes daquele momento histórico brasileiro, tecendo uma ponte com o passado colonial. Versava do mais complexo à mais simples interpretação da realidade social.

A fada negra nos olhos da filha da costureira e destemida filha de Oxum teve uma participação significativa na construção do Movimento Negro Unificado (MNU). Marcou presença no ato público de sua fundação realizado nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, em 7 de julho de 1978. Anos mais tarde, Lélia cria junto a outras feministas negras, o Coletivo de Mulheres Negras Nzinga, aquele que seria o primeiro periódico elaborado e lançado publicamente por feministas negras brasileiras.

Situada na luta política e cultural, feminista e antirracista, sua produção intelectual se mistura à sua militância. Lélia Gonzalez, onde quer que fosse, carregava consigo essa pulsante preocupação em explicar e denunciar as raízes profundas do racismo brasileiro, enfatizando como as tantas violências concretas e simbólicas (históricas e conjunturais) se adensam no corpo da mulher negra.

::Acompanhe a primeira parte da série::

Nessa segunda parte da série, daremos continuação à entrevista especial com Flávia Rios, docente, socióloga e pesquisadora da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da AFRO\Cebrap, coordenadora do núcleo de pesquisa NEGRA, da UFF.

Entrevistada Flávia Ríos, docente da UFF. Foto: Reprodução.

A mulher reinventada de Lélia, “a dona do ouro”, na fala de Elizabeth Viana (referenciando-a como mulher de Oxum) assume uma visão outra do mundo. E essa corporeidade assumidamente negra culmina num legado intelectual e de luta feminista da história brasileira. Uma frase que define sua trajetória, foi ela mesma quem disse:“a mulher negra tem um potencial político e ideológico muito maior” – referindo-se ao lugar situado que a mulher negra se encontra nas relações sociais na sociedade.

Nicole: Qual foi o período mais intenso da produção acadêmica somada ao ativismo feminista vivido por Lélia?
Flávia: Pensando na produção acadêmica, podemos dizer que ela começa como tradutora. Ela traduz autores clássicos da filosofia por ser formada em Filosofia, História e Geografia pela universidade que, hoje, chamamos de Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) – antes era a Universidade de Guanabara. Lélia estudou nos finais dos anos 60 e meados de 70. Nesse momento a trajetória dela foi muito marcada pela tradução do francês para o português, como trabalhos da psicanálise, sobretudo, textos escolhidos do Freud. Depois ela passa para uma produção muito intensa sobre questões históricas, sociológicas, antropológicas do Brasil que começou em meados dos anos 70. A produção intensa na imprensa alternativa foi através dos congressos internacionais, como Latin American Studies Association (LASA) e nos congressos brasileiros, como os da Associação Brasileira de Pós-graduandos (ANPG). Aí ela vem discutindo a questão socioeconômica histórica ligada ao sexismo, racismo e ao capitalismo no Brasil, dialogando com as teorias do capitalismo dependente na região. Ela tem essa produção intensa até 1994, quando ela falece.

Lélia, 1977. Foto: Alberto Jacob.

“O lugar em que nos situamos determinará nossa interpretação sobre o duplo fenômeno
do racismo e do sexismo”.

Nicole: Quais foram os pilares constitutivos do Movimento Negro Unificado (1978-2020) sementados por Lélia?
Flávia: Esse movimento fundado em julho de 1978 chamava-se Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial. Era uma base ampla formada por organizações de esquerdas, principalmente trotskistas e tinha também uma base de organizações negras que já existiam antes do MNU. Lélia Gonzalez participa do ato fundador, em São Paulo, e segue nas várias reuniões que aconteceram, até que ela se afasta no final dos anos 80. Mas qual é a contribuição dela? E como que ela formou, com tudo mundo ali junto, com homens e com as mulheres o MNU? Elês tem uma proposta muito forte pra questionar a democracia racial como um mito, para manter um debate entorno da discriminação que a população negra vivenciava. Nesse momento, questionavam criticamente as mortes daquelas pessoas que morriam na ditadura, pessoas comuns que não estavam ligadas a organizações políticas, como os moradores das periferias que morriam e eram torturados nas delegacias. Enfim, eram mortes negras e periféricas e não estavam dentro do escopo da esquerda política como sendo mortes políticas e o movimento abarcava essa pauta: de que aquelas pessoas estavam sofrendo a violência de Estado. A Lélia olhava muito pro caso das mães, as irmãs, as filhas desses homens que eram assassinados. Há muitas crônicas e textos dela falando dessas mulheres que vivem essa peregrinação,  sobre questões ligadas ao corpo dessas mulheres, da vida dessas pessoas.

Ela contribui muito para a questão de gênero no MNU, era um movimento extremamente machista e masculinizante. Ela por ser uma intelectual estabelecida, tinha um nível acima do “esperado” pra aqueles homens, por isso, ela foi muito respeitada.

Com essa inteligência e essa capacidade, ela conseguiu imprimir e aí foi fortalecendo um discurso antissexista no movimento, mas não foi suficiente, não teve tanta força, daí acabou saindo. Já não deu conta e foi formar organizações autônomas.

Mas é interessante que ela nunca foi assim: porque estamos formando essas autônomas não vamos dialogar com eles do MNU ou com o feminismo no geral. Não! Ela achava que tinha que ter essa autonomia, no entanto, frequentava e participava de outras organizações (não autônomas). Portanto, Lélia teve um papel muito importante nas passeatas, no dia a dia mesmo, ou seja, não só na produção intelectual das teses de congresso. Ela pegava no megafone, descia na rua, formava as marchas, os protestos, distribuía panfletos, trabalho de rua mesmo. Sendo assim, uma intelectual orgânica por definição.

Lélia discursando em Ato público na Cinelândia, Rio de Janeiro, 1983. Foto: Januário Garcia.

              “Estamos aí numa batalha violenta no sentido de conquistar um espaço para o negro na realidade brasileira, e o que eu tenho percebido é uma tentativa por parte das esquerdas em geral de reduzir a questão do negro a uma questão meramente econômica-social”.

Nicole: O que representou o Nzinga – Coletivo de Mulheres Negras na trajetória militante de Lélia?
Flávia: Ela já estava envolvida com o feminismo teórico desde da sua formação como professora e participação nos grupos de estudos. Ela se envolve com o feminismo prático, de ativismo social quando as mulheres se organizam ainda na ditadura militar no início dos anos 70: em coletivos de pesquisa de discussões sobre gênero e desigualdades. Ela está envolvida ali nessas conferências da ONU, quando a ONU declara a década da mulher; está envolvida na formação das organizações feministas, cariocas principalmente. E no final da década, ela sente junto a outras mulheres (negras periféricas e dos morros cariocas) a necessidade de formar um coletivo de mulheres negras dali mesmo, da periferia. Nasce o Coletivo de Mulheres Negras, Nzinga, integrando militantes importantes, como a Benedita da Silva e tantas outras. Com esse coletivo, elas formaram depois, o primeiro jornal de imprensa negra e feminista chamado Informativo Nzinga.

Nicole: A formação do Coletivo de Mulheres Negras Nzinga ocorre a partir de reuniões políticas-organizativas e logo se converte em imprensa ?
Flávia: Isso, se constitui como coletivo para pautar as experiências dessas mulheres, principalmente com foco nas mulheres que vivem nas periferias. Em 1985 elas decidem formar pequenos jornais. Nessa época no Brasil era muito comum que os movimentos sociais fizessem seus jornais/periódicos. Elas escreviam nesse informativo o que se tinha produzido no momento: comentavam um livro lançado; faziam resenhas e relatavam encontros feministas; externavam opiniões políticas conjunturais; falavam das lutas comuns por saneamento básico, por exemplo.

Esse jornal durou de 1985 a 1989. Inclusive cobriu o primeiro Encontro de Mulheres Negras que aconteceu no Brasil, que foi em Valença, no Rio de Janeiro (1989). Nesse jornal tem todo o resumo desse encontro. Muitas mulheres que vieram de várias partes do Brasil, mandaram relatos de como foram suas experiências, do que discutiram, etc. O jornal, portanto, tinha esse papel de trazer as questões dessas mulheres, principalmente da auto-organização.

Ação do Nzinga no Morro do Andaraí, Rio de Janeiro, 1988. Foto: Acervo Lélia Gonzalez, Projeto Memória.

Nicole: Ouvindo você narrando, podemos dizer que se constituí como auto-organização e que perseverava um trabalho de base nas comunidades, muito desse contexto dos anos 80 …
Flávia: Isso, é trabalho de base, auto-organização e trabalho de base. Conscientização, formação, a questão do corpo, da violência, da política – todos esses temas atravessaram o coletivo.

Nicole: Como ponto de encontro com essa militância feminista de Lélia, me parece que a busca dela pela ancestralidade nas raízes africanas, como foi o Candomblé e suas idas à África, marcaram um elo potente dessas figuras femininas cultuadas pelas religiões afro-brasileiras com a construção dessa mulher negra na luta. Como Lélia comunicou isso?Flávia: Nos escritos dela há uma preocupação muito forte em trazer três perfis da figura do feminino: a mãe, ela faz uma reconstrução muito forte da mãe preta, que até então naquela época era muito enquadrada numa mulher subserviente. Era uma mãe na figura do patriarcado. Era a figura da benevolência, não tinha uma resistência, ela era despossuída, era o corpo que era explorado e a Lélia rompe com essa narrativa.

Ela achava que essas mulheres que transmitiam conhecimento e afeto, que estavam na base dos cuidados, da subjetividade das crianças negras e brancas, que apesar delas estarem subjugadas, elas tinham ali um espaço de agência pela linguagem e pela cultura.

Ela conseguiu subverter a interpretação de que aquela mulher estava ali sem agência, sem ação, pra colocar uma agência nela no sentido de uma transmissão de conhecimentos, de história, de narrativas. Os conhecimentos de Lélia da psicanálise permitiam que ela analisasse com detalhes a subjetividade dessas mulheres, partindo de uma leitura do inconsciente centrado no apreendido por elas.

Outro elemento muito forte, são das mulheres guerreiras que tiveram protagonismo na história, a própria rainha Nzinga, a Luísa Mahin, para citar alguns exemplos. Ela chamava muito essa atenção,  das mães das lideranças negras, associando-as a um papel importante na história. E a outra questão que ela trazia é a das Orixás, pois ela se apresentava como filha de Oxum, uma orixá da beleza, da sedução e da palavra – traz um conjunto de elementos que tem a ver com o que seria a feminilidade ocidental (que consegue colocar a mulher nesse lugar da sedutora). No entanto, na cultura yorubana, que se constitui aqui no Brasil por meio da religiosidade afro-brasileira de modo geral, e particular no Candomblé, as mulheres têm esses dois eixos: de um lado, representam a feminilidade e do outro, elas têm (simultaneamente) esse lugar da guerreira. Da mulher que constrói o mundo, que forja o mundo e que luta por aquele mundo.

Ela traz esses elementos dessa religiosidade de forma subliminar, por exemplo, as cores quando você vê as campanhas políticas dela, ela trazia o amarelo, ouro ou dourado, mas também trazia as cores do feminismo. Ela fazia essa fusão, é bonito isso, tinha esse sincretismo religioso com o secular dos ativismos políticos.

Nicole: Podemos dizer que esse sincretismo religioso como experienciado por Lélia, dá um outro lugar para a mulher?

Flávia: Sim, pois estamos falando de uma religiosidade perseguida. Não se trata só de você sair de um mundo religioso católico, que foi de onde ela saiu mesmo, pra entrar num outro mundo religioso afro-brasileiro. Se trata de você sair de uma religião dominante, que na época dela e até hoje é o catolicismo. Apesar de estar sofrendo uma queda forte pelo protestantismo e as religiões evangélicas, o catolicismo, principalmente nos anos 70 era dominante (os censos declaravam isso), daí ela vai pra uma religiosidade minoritária e perseguida.

O candomblé até hoje é uma religiosidade perseguida, que já tinha sido perseguida pelo Estado, com intervenções polícias como invasões de terreiros e na atualidade é perseguida pela agência civil (pessoas e religiosos de outras denominações) que agridem. Até as milícias e o tráfico fomentam a intolerância forte do racismo religioso. Portanto, na época dela trazer esses elementos de Oxum, trazer as Orixás femininos, carregar essa religiosidade era também uma atitude de subversão, porque é manifestar uma cultura massacrada e que resistiu aos séculos de violências de Estado e às intolerâncias da religião dominante ocidental.

Hoje trazer essas figuras e historias femininas nas lutas, que nos remetem às histórias de mulheres africanas – como, por exemplo, o trabalho feito pelo Geledés, que faz uma reconstrução de mulheres guerreiras e mulheres africanas – converte-se em potência sim, para as lutas das mulheres e de construções de lutas feministas.

Ela conseguiu, Nicole, vamos dizer conciliar essa leitura do Candomblé sem romper com o feminismo, fazendo uma espécie de fusão. Hoje, a gente encontra movimentos que não se dizem feministas, que rejeitam o feminismo em razao de suas crenças e religiões e não é o caso Lélia.

Movimentos em defesa de uma mulher africana são, em muitos casos, forjados na ideia de mulher da África tradicional, que é uma África imaginada, como se as mulheres de lá fossem libertárias. Na verdade, essas mulheres africanas podem ter um grau diferente de poder, mas não por isso elas se mantém fora do patriarcado.

Para ser sintética, há uma tendência, hoje, de quem defende o mulherismo africano dizer não ser feminista e que o feminismo é ocidental. A Lélia Gonzalez está numa outra linha: eu sou uma feminista negra e isso significa criticar o que é ocidental e ocidentalizante no sentido do eurocentrismo. Ela não negava o ocidental e isso é importante, era uma autora que tinha um apreço muito grande pelo conhecimento e por aquilo tudo que pudesse representar algo crítico para o mundo, era contra o eurocentrismo. Tudo que era da dominação ela era contrária. Ela tentava fazer essa fusão: o que era importante da África, da Europa e da América Latina, e aí sim construir algo novo.

Lélia, 1980. Foto: Januário Garcia.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                “Essas mulheres negras, que vocês estão aqui para honrar; elas estão trabalhando e movimentando seus corpos, porque os filhos delas, precisam de escola, precisam de comida, precisam de muitas coisas”.

Nicole: Nos anos que ela viveu, a ebulição feminista era outra e ela tinha isso de adentrar nas dinâmicas sociais a fundo, tinha isso de enunciar o que estava encoberto. Então, ela vai destapando e vai incomodando claro (propositalmente) … Daí ela vai rompendo com as ideias na academia, com o feminismo branco …
Flávia: Sim. E ela também critica o feminismo negro. Tem um texto dela num jornal chamado Raça e Classe, lá no final dos anos 70, que ela faz uma crítica duríssima ao feminismo negro. Depois do grande encontro em 1988, ela viu vários problemas, aí ela foi pro jornal e faz uma crítica da organização das mulheres negras, dos limites da organização. Ela era irreverente, a crítica era importante, mas não é uma crítica de ruptura. Não é romper e não construir nada, mas é botar o pé, o dedo na ferida.

 

Edição de Paula Guimarães.

*Descrições de Lélia foram extraídas do documentário Lélia Gonzalez – o feminismo negro no palco da História, produzido pela Abravideo.

**Nicole é feminista, latino-americana, mulher cis e migrante. Formada em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), mestre em Serviço Social pela Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM). Doutoranda em Sociologia, estuda teorias feministas, lutas de mulheres e feminismos na América Latina com foco na (re)produção de novas espacialidades.

 

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