A mostra on-line ocorre até 6 de novembro

Vigário Geral, Candelária, Acari e Nova Brasília foram palco no estado do Rio de Janeiro de chacinas que levaram a 53 mortos em um intervalo de quatro anos na década de 1990. Das pessoas mortas, 24 eram menores de idade e nenhum deles tinha antecedentes criminais. Os massacres realizados pela Polícia Militar foram o estopim para a organização de coletivos de mães e familiares de vítimas do estado.

Parte dessa história e casos semelhantes espalhados pelo país serão lembrados na exposição “Em Luta: vítimas, familiares, terrorismo de Estado”. A mostra inédita, que começou em 30 de outubro e segue até 6 de novembro, terá sete salas on-line com fotos, vídeos, áudios, documentos, imagens de faixas e artesanato produzido por diversas mães. O evento ocorre durante a 32ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada pela Associação Brasileira de Antropologia e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Acesse a exposição!

Ao todo, 25 coletivos de mães participaram da exposição. Desde 1990, quando o desaparecimento de onze jovens levou à criação do Movimento Mães de Acari, no Rio de Janeiro, familiares vêm se organizando coletivamente para fazer frente às ações letais e às práticas de terror empreendidas por policiais civis e militares ou por grupos paramilitares e milicianos, que atuam em territórios de periferia e favelas em inúmeras cidades brasileiras, bem como por agentes penitenciários e do sistema socioeducativo.

Como dizem na carta produzida durante o 1º Encontro Internacional das Mães de Vítimas da Violência do Estado: “LUTO para nós sempre foi verbo e substantivo, desde que nós nascemos. Nós lutamos desde sempre, desde muito antes, e nunca deixaremos de encarar de frente os inúmeros lutos cotidianos que sempre nos foram impostos com muita violência”.

A curadoria é da antropóloga Juliana Farias, que atua como pesquisadora de pós-doutorado no Núcleo de Estudos de Gênero PAGU/UNICAMP e desde 2004, realiza pesquisas sobre violência do Estado e violações de direitos humanos em favelas e periferias, militarização e tecnologias de controle de corpos e territórios.

Mobilização na Maré (RJ) /Foto: Daniela Fichino

A irmã do único sobrevivente da Chacina da Candelária, Patrícia Oliveira, representante da Rede Nacional de Mães e Familiares de Vítimas do Terrorismo de Estado, acompanhou o processo de construção da exposição desde o princípio. 

“É um momento de intercâmbio entre academia e familiares, porque muitas vezes a academia é muito distante. Visibilizar as mobilizações contra a violência de Estado e contra o racismo estrutural é um ganho muito grande, tanto para a academia quanto para todas nós que lutamos há muitos anos”, afirma Patrícia.

A história de Patrícia com o movimento de familiares de vítimas do Estado começou em 1995 quando conheceu familiares da chacina de Vigário, Candelária e Acari. “Desde então participo de atos públicos, audiências, formações, até que em 2013 fundamos a Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência, que tem familiares de várias comunidades do RJ. A gente começa a ter mais informações dos nossos direitos, a se reorganizar e se articular com outros familiares do país, com outros coletivos. Em 2016, realizamos o encontro nacional e surge a Rede Nacional de Familiares e Vítimas de Violência e de Terrorismo de Estado, composta por nove estados”.

A 32ª RBA contará com 81 grupos de trabalhos, cerca de 36 simpósios especiais e 43 mesas redondas, 6 conferências com participação de intelectuais nacionais e internacionais, além de 5 exposições, lançamentos de livros, oficinas e diversas premiações.

Uma história de coragem

Patrícia Oliveira/ Foto: arquivo pessoal

O caso da Chacina de Acari, o primeiro de uma série no estado, completou 30 anos em 26 de julho em 2020. Onze jovens, sendo sete menores, foram retirados de um sítio por um grupo de policiais, e nunca mais foram encontrados. Patrícia lembra que após o massacre as mães iniciaram um movimento em busca de informações.

As precursoras Marilene Lima, Vera Lúcia Flores e Ednéia Santos Cruz foram incansáveis. “Ednéia também foi assassinada por causa de sua luta. O grupo ficou com muito medo, mas as duas mães continuaram. O caso completou 30 anos e sem uma resposta. Crime de desaparecimento é crime de lesa-pátria, por isso imprescritível. Mesmo essas mães não estando mais aqui, todas temos consciência e compromisso de que a luta delas é de todas nós”, destaca.

A entrevistada enfatiza que a luta continua sendo a mesma, em função da falta de políticas públicas. “Nunca existiu uma política de não repetição ou não violência. O Brasil recentemente foi condenado pela chacina de Nova Brasília e nem a condenação fez o País ou Estado do Rio de Janeiro ter uma política pública voltada para essa população. Nunca tivemos um governo que afirmou não tolerar isso”.

Foto: Daniela Fichino

Pelo contrário, tanto o governo do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSL) quando o presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), estimulam a violência de Estado contra essa população. Os números apontam para a escalada da violência: de 2013 a 2019, o aumento das chamadas mortes em confronto com a polícia foi de quase 200%, passando de 2.212 para 6.375 vítimas, segundo o último Anuário Brasileiro da Segurança Pública.

“Um governo do estado que estimula e um presidente do País que também reforça esse tipo de prática e se diz a favor da tortura. Isso é muito grave, quando um presidente faz uma homenagem ao capital Brilhante Ustra, que foi um torturador, ele não tem uma postura de chefe de Estado. Essas falas de governos atuais e anteriores como ‘bandido bom é bandido morto’, ‘tiro na cabecinha’, ‘mãe de favelado é fábrica do bandido’, são graves porque partem de autoridades eleitas para defender a população, mas que escolhem defender a si mesmo”, relata.

“Estamos num momento de retrocessos, as pessoas que estão nos cargos de autoridade estão muito à vontade para falar e fazer o que querem, num contexto sem reação. Por exemplo, pedir a volta do AI5 e da tortura, o fechamento do Supremo, isso jamais deveria ter acontecido sem uma reação imediata”, analisa Patrícia.

Entre as principais demandas políticas das familiares de vítimas do Estado está a atuação do Ministério Público no controle externo da atividade policial, responsabilidade constitucional do órgão. “Essa é uma demanda antiga dos familiares que vem ao longo dos anos buscando isso e não conseguem porque os promotores que ganham muito bem para fazer o seu trabalho, não querem fazer isso. Um ou outro acabam fazendo, mas não a instituição”.

Em junho deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro durante a pandemia do novo coronavírus, salvo em casos absolutamente excepcionais, que devem ser devidamente justificadas por escrito pela autoridade competente e comunicadas ao Ministério Público estadual. A decisão foi tomada na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, em que o Partido Socialista Brasileiro (PSB) questiona a política de segurança pública do governador Wilson Witzel, que, segundo a legenda, estimula o conflito armado e “expõe os moradores de áreas conflagradas a profundas violações de seus direitos fundamentais”.

“O MP do RJ entende que o controle externo vai ser feito depois da operação, que não precisam ser previamente avisados. Existe a liminar da ADPF que determinada que não pode haver operação, mas tudo vira excepcionalidade. E tem o discurso das polícias de que a ADPF está prejudicando o trabalho policial. Isso coloca a população contra o movimento de familiares que defende a ADPF. Precisava ir ao Supremo para dizer que não vamos fazer operação na pandemia? Não! Estava implícito. A última operação na Maré envolveu 300 policiais, e isso é aglomeração. Como cobrar da população, se não se dão ao respeito?”.

O aumento dos casos de violência pela polícia é realidade em quase todos os estados do País, como afirma a ativista. “O PM tem que ser imparcial, garantir o seu papel constitucional, defender a sociedade seja ela quem for. Ele não pode partir de um lado. Só com mobilização dos familiares das vítimas vamos mudar essa realidade. A polícia é violenta no País todo, não só no Rio de Janeiro. Existem redes de familiares nos quatro cantos do Brasil e só aumenta”.

“Chamamos as pessoas a conhecerem a exposição e a se envolverem com a luta das familiares”, finaliza a entrevistada.

Foto: Arquivo do movimento Mães de Maio do Cerrado

Movimentos e coletivos que integram a Rede:

1. AMAFAVV – Associação de Mães e Familiares de Vítimas da Violência / ES 2. AMPARAR – Associação de Amigos/as e familiares de presos/as (SP) 3. Associação de Familiares de Pessoas Privadas de Liberdade MG 4. Coletivo do Amazonas (AM) 5. Coletivo Mães do Rio Grande do Norte (RN) – Sheila 6. Frente Estadual pelo Desencarceramento RJ 7. Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (RJ) 8. Instituto Memória e Resistência (GO) (+junto com Mães do Cerrado) 9. Mães de Brumados (BA) 10. Mães de Maio do Cerrado (GO) 11. Mães de Maio da Leste (SP) 12. Mães de Maio do Nordeste 13. Mães de Manguinhos (RJ) 14. Mães do Cárcere / CE (CE) 15. Mães do Curió (CE) 16. Mães em Luto da Leste (SP) 17. Mães Mogianas (SP) 18. Mães da Maré (RJ) 19. Movimento Independente Mães de Maio (SP) 20. Movimento Moleque (RJ) 21. Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência (RJ) 22. Rede Mães de Luta (MG) 23. Rede de Mães e Familiares de Vítimas da Violência de Estado na Baixada (RJ) 24. Vozes do Socioeducativo e prisional / CE (CE) 25. Rede Nenhuma Vida a Menos (PR).

O jornalismo independente e de causa precisa do seu apoio!


Fazer uma matéria como essa exige muito tempo e dinheiro, por isso precisamos da sua contribuição para continuar oferecendo serviço de informação de acesso aberto e gratuito. Apoie o Catarinas hoje a realizar o que fazemos todos os dias!

Contribua com qualquer valor no pix [email protected]

ou

FAÇA UMA CONTRIBUIÇÃO MENSAL!

Palavras-chave:

Últimas