A opressão de gênero atravessa historicamente as ideologias políticas e marca presença, inclusive, onde ela não deveria existir: na esquerda.

Nesse campo, o chamado esquerdomacho se configura como o maior entrave da luta pela igualdade, exatamente por ser um falso aliado. Ele se beneficia de todos os privilégios do sistema e das benesses consequentes do prestígio dos seus críticos. Assim, ele controla, explora, sobrecarrega, ofusca, distorce, objetifica, abusa, triangula, manipula, difama, trai, agride e sai, quase sempre, impune.

Em geral, ele tem uma boa leitura dos textos clássicos e da conjuntura, incorpora os decoloniais e até algumas autoras. Comemora as datas que nos são caras, frequenta protestos, defende os movimentos sociais e as minorias. Costuma ser simpático com as pessoas e se mostra sensível às suas vulnerabilidades.

Blindado pela imagem de bom camarada, ele se atreve até mesmo a se posicionar publicamente como feminista, e conta com um grupo de fãs que o aplaude. Infelizmente, eu já fiz isso e, provavelmente, você também.

Embora sempre haja sinais (interrupções, posturas assimétricas, predileções, comportamentos duvidosos, etc), essa faceta do machismo nem sempre é explícita ou pública. Como os abusos são mais frequentes no foro íntimo ou em locais de opacidade, muitas vezes, não temos conhecimento deles. A pequena oferta de espaços de verdadeiro acolhimento e sororidade também convergem a seu favor. 

O machismo, sendo estrutural, dificulta críticas e denúncias nos seus vários níveis e formas. Em primeiro lugar, infelizmente, ainda há uma ampla tolerância sobre suas mais diversas expressões. Em segundo lugar, muitas vezes, não é possível provar. E a mulher que denuncia é sempre questionada e exposta, isso quando não é considerada louca ou coitada, até mesmo por outras mulheres, o que torna a revelação destes casos muito mais custosa para elas. Desta maneira, já desgastadas por conviver com o esquerdomachos, muitas preferem se preservar e guardam as violências para si.

Mesmo quando o comportamento machista é público, poucos se posicionam, a indignação é, em geral, seletiva. As máximas do “se não foi comigo, não devo me meter” ou “mas será que foi isso mesmo? Fulano é tão bacana”, prevalecem. Talvez seja o único caso em que o “in dubio pro reo” funcione. E, assim, o machismo segue seu curso.

A falta de coerência do esquerdo macho é um grande desserviço às nossas lutas, pois, além dos traumas individuais que causa, reproduz opressões, desmobiliza companheiras, cria constrangimentos e dúvidas nos grupos, os descredibiliza perante a sociedade e dá munição aos adversários dos movimentos.

Quantas de nossas companheiras, entre pensadoras, militantes, celebridades, colegas e amigas, já não foram ultrajadas e prejudicadas por esse tipo de indivíduo e nada aconteceu? Às vezes, como vimos pouco tempo atrás no “berço da civilização”, o embuste é até promovido.

As denúncias e mobilizações são mais frequentes quando se trata de um macho de direita, mas, na esquerda, ainda pisamos em ovos. Temos um longo caminho pela frente até que a esquerda se torne genuinamente feminista.

O que fazer? Como fazer?

Já demos passos importantes. A própria reflexão coletiva sobre as múltiplas opressões, suas interseccionalidades, a criação de canais de denúncia, orientação e acolhimento seguros, e o próprio fato de termos várias denúncias públicas nesse momento e uma investigação em curso são algumas delas. 

Mas vejam, se uma ministra de Estado, que desfruta de autoridade e estrutura jurídica, demorou mais de um ano para confirmar uma denúncia, é porque o ônus ainda recai violentamente sobre a vítima.

Observem o tratamento conferido às mulheres nas relações e suas consequências. 

Questionem-se. Há real equidade e respeito? Há coerência entre discurso e prática? Aconteceria dessa forma com outro homem? Como reagimos quando o caso é próximo, quando o acusado é conhecido?

Reflitam, leiam, escutem, ponderem, vigiem, desconfiem e não tolerem. Se posicionem. Isso vale para todes. As palavras são importantes, mas são as ações que modificam as estruturas. 

Coloquemo-las abaixo!

*Na imagem de capa, o personagem Paulo, protagonista da série “Todas as Mulheres do Mundo”. Na trama, o protagonista se descreve como apaixonado pela liberdade, pela poesia e pelas mulheres e foi classificado como esquerdomacho pelo público.

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  • Natasha Bachini

    Pesquisadora de pós-doutorado no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP). Pesquisadora ass...

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