A matéria “Ecocídio atinge população tradicional de pescadores da Costeira, em Florianópolis” apresentou como o crescimento urbano desenfreado, aliado ao desejo de lucro e ao descaso do poder público, tem conduzido ao extermínio do ecossistema local e da comunidade tradicional da Reserva Extrativista Marinha do Pirajubaé (Reserva do Pirajubaé). Outro impacto, não tão visível, desse processo é a destruição dos conhecimentos e dos modos de viver da comunidade tradicional, ou seja, epistemicídio.
“Quando se trata de populações tradicionais, como é o caso dos pescadores artesanais da Costeira do Pirajubaé, os estudos têm apontado que há o pilar-tríplice: genocídio, ecocídio e epistemicídio. Isso porque a maneira como o poder público lida com esses povos apaga e destrói tanto o ambiente natural onde estão, quanto a identidade e herança cultural. Quando tratamos de epistemicídio estamos falando justamente do apagamento e da destruição das formas de conhecimento e cultura daquilo que não se enquadra à ideia de modernidade ocidental”, explica Inara Fonseca, coordenadora do projeto Artes de pesca: saberes e fazeres dos pescadores tradicionais da Costeira do Pirajubaé, contemplado pelo prêmio Elisabete Anderle – Edição 2020.
Ao falar sobre os conhecimentos tradicionais da pesca, Aristides Avelino Raulino, pescador artesanal, 54 anos de pesca, 65 de idade, conta que muitos já estão “só na memória”. É o caso do “liquinho com lança”, técnica utilizada para caçar peixe à noite que consistia em carregar um lampião a gás (liquinho) em uma mão e uma lança na outra, enquanto procuravam peixes no fundo do mar. A técnica era utilizada quando o mar estava calmo e as águas claras.
“Você achava o linguado, a raia, porque quando eles batem na claridade, eles param. Hoje acabou, porque tem que ser com calmaria, água clara e não tem mais linguado também na Reserva. Antes tinha, mas desde que cavaram o buraco em 92 [para fazer a Via Expressa Sul], quando tiraram o aterro, tiraram o espaço dele, a comida dele e os linguados não vieram mais. Da tradição só ficou a memória, o liquinho ficou na memória”, lamenta o pescador artesanal.
Santa Catarina hoje possui cerca de 25 mil pescadores artesanais em atividade, entretanto, o número tem diminuído ao longo dos anos em todo o estado e na Resex do Pirajubaé não é diferente. Nos últimos dados, obtidos pelo Artes de Pesca, na Resex atualmente 191 famílias do bairro Costeira são autorizadas a realizar a pesca artesanal, sendo que 45 delas dependem exclusivamente da pesca para sua sobrevivência.
Rodolfo Dote, pescador artesanal e aposentado, 68 anos, morador há 28 da Costeira do Pirajubaé, foi firme quando previu um diagnóstico para a população tradicional da região. “Eu acho que vai entrar em extinção”, disse. E completa:
“Na realidade, a população tradicional está se acabando. Por quê? Porque hoje o jovem não tem onde guardar o material de pesca, o barco, é muito difícil para quem está começando. A própria situação dos ranchos de pesca que não tem para todo mundo”.
A situação dos ranchos de pesca já foi denunciada anteriormente pela população e é possível lê-la aqui. Na Resex do Pirajubaé, o número de ranchos é insuficiente e há falta de fiscalização de quem está se apropriando deles. É importante ressaltar que antes da Via Expressa Sul, o quintal desses pescadores artesanais era o próprio mar, o que facilitava a manutenção dos seus modos de vida: econômico e culturalmente.
“Tem uma família aqui e os quatro filhos pescam. Deram a metade de um rancho para eles no recadastramento. Eles estão com o barco colocado um em cima do outro, porque falta espaço. E eles ainda têm que trabalhar num posto de combustível, na bomba, porque a situação é difícil. Então, qual a tendência? É se acabar”, lamenta Dote, como é conhecido.
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O êxodo da juventude da Resex do Pirajubaé, da pesca artesanal para outras formas de trabalho (muitas vezes precarizado), aumentou a partir da década de 1990 com a construção da Via Expressa Sul (BR 282) e configurou um exemplo de injustiça ambiental – ou seja, situação em que os interesses econômicos prevalecem sobre o controle ambiental e os interesses da comunidade tradicional, como explica o estudo de Juliana Lima Spínola, Cristina Teixeira e José Milton Andriguetto-Filho, “Conflito territorial e (in)justiça ambiental: o caso da construção da Via Expressa Sul na Resex Marinha do Pirajubaé, Santa Catarina, Brasil”.
O aterro suprimiu ecossistemas e demandou a dragagem de uma grande quantidade de areia na região onde se insere a Resex, o que implicou a perda de sete milhões de metros cúbicos de areia onde ocorria preponderantemente o extrativismo do berbigão, e reduziu a área explorável de 240 hectares para, aproximadamente, 140 hectares. Os grandes prejuízos socioeconômicos em decorrência da redução dos recursos pesqueiros afastaram os jovens.
Uma das jovens que acabou migrando de atividade foi Patrícia Martins, hoje com 42 anos. “Sou filha de pescador, com orgulho gigante de ser filha e irmã de pescador e sem contar que também pescava, desde pequena, aprendi com 8, 9 anos de idade. Fui até meus 24, 25 anos, por aí, beirando os 30”, conta sorridente.
Vinda de uma família de pescadores artesanais, Patrícia narra também que não apenas ela, mas seu irmão, foram obrigados a abandonarem a pesca artesanal. Na época, ela foi trabalhar em um supermercado.
“O meu irmão foi trabalhar fora por isso também, entendeu? Eu também vi que não tinha como mais, porque para conseguir ter uma coisa a mais na vida financeira, tu é obrigado a apelar para um outro emprego, porque na pesca é difícil. Com relação à Via Expressa, que tu me perguntou, muita gente que eu via, da minha época ou mais novinho que eu, que estava começando a aprender a pescar, saiu. Pela dificuldade”, recorda.
É importante destacar que Patrícia é uma das únicas mulheres no território da Resex do Pirajubaé que se afirmou como pescadora. Para isso, segundo Patrícia, ela precisou ser muito “metida”, muito “atrevida”, e o fato de ter exercido essa profissão por um tempo é motivo de grande orgulho em sua trajetória.
O próprio pai de Patrícia, Neri Manoel Martins, pescador artesanal de 65 anos e vivendo na Costeira do Pirajubaé desde os sete meses, lamenta a não continuidade da atividade dentro da família. Ele conta que desde pequenos os três filhos o acompanharam na pesca artesanal, mas apenas um continuou.
“O Diego Neri Martins é o que pesca comigo, desde criança também. Meus filhos todos pescavam comigo. A minha guria, com 7 anos [se referindo a Patrícia], andava pegando caranguejo do mangue. Não tinha medo de nada. (…) Para mim, daqui uns 15, 20, 30 anos vai ter bem pouco pescador artesanal. Eu já tô deixando. Daqui mais um tempo não vou aguentar mais, já vou ter que largar. E não tem ninguém para pegar essa função”, comenta.
A história da família Martins é uma história invisível que representa a de muitas outras famílias de pescadores artesanais que foram afetados pela transformação de seu território pelo avanço da urbanidade, mas que continuam resistindo e mantendo viva a cultura tradicional, a sabedoria sobre o vento, o mar, as marés e as várias espécies de animais marinhos.
“É aquela coisa, literalmente uma família de pescador raiz, como diz. Veio do vô, do pai com nove anos de idade, e eu e meu irmão com 8, 9 anos de idade também. Sempre foi desse jeito, acordando de madrugada, indo pro mar, voltando tarde, ou indo à noite e voltando de manhã, voltando de madrugada. Nunca tem hora. Depende do vento, depende da maré, depende do tempo, de pegar temporal lá fora, de a maré estar seca e não conseguir vir pra casa, ter que ficar lá fora, às vezes até com fome esperando a maré encher para poder vir pra casa. Então, tem tudo isso, né”, conta Patrícia.
Confira no vídeo abaixo entrevista em que Patrícia relata os desafios de ser mulher e pescadora: