Na reta final para a eleição de prefeitxs e vereadorxs, a discussão sobre a participação política das mulheres ganha corpo e demonstra, através do espaço público, o déficit de gênero presente em nossa sociedade. De concreto, apenas a lei de cotas que determina um percentual de 30% de gênero na composição das chapas de vereadorxs. Neste caso, vale ressaltar que a política visa incluir mulheres na disputa eleitoral, o que ainda está longe de acontecer, tendo em vista os êxitos eleitorais femininos e a invisibilidade das candidaturas de mulheres.

“Já houve avanço, mas ainda é muito pequena a participação de mulheres na política no Brasil e em Santa Catarina”. É o que aponta Simone Lolatto, ativista feminista que defendeu sua tese de doutorado em 2016 no programa de pós-graduação em Ciência Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), intitulada “Mulheres na Política: trajetória das vereadoras titulares em Florianópolis”, sob a orientação da professora Teresa Kleba Lisboa e co-orientação da professora Luzinete Simões Minella.

A pesquisadora atua no movimento feminista há pelo menos 20 anos, integra um partido político e já foi assessora parlamentar. Em seu estudo, Simone reflete sobre a atuação das mulheres no legislativo da capital do estado, o que pode nos apontar elementos para entender a invisibilidade da participação de mulheres nos espaços de poder. Em 280 anos da Câmara Municipal de Florianópolis, apenas seis mulheres foram eleitas vereadoras.

De acordo com dados disponibilizados pelo Tribunal Regional Eleitoral (TRE), na atual disputa para cargos a vereança no município de Florianópolis, são 114 mulheres tentando uma vaga na Câmara Municipal, o que representa 31% do total das candidaturas. Quando comparamos os dados gerais de Santa Catarina aos da capital a proporção se repete. São 5.310 mulheres disputando uma vaga a vereadora nos municípios catarinenses, o que representa 31% do total das candidaturas. Diante dos dados, é possível afirmar que a porcentagem de candidaturas femininas acompanha o percentual obrigatório de cotas, o que não implica necessariamente em visibilidade das candidaturas de mulheres e probabilidade de êxito eleitoral para elas.

Em entrevista exclusiva ao Portal Catarinas, Simone fala sobre o seu estudo e aponta suas percepções sobre o deficit de mulheres nos espaço de poder, enfaticamente, no legislativo municipal de Florianópolis.

Simone Lolatto em atividade de mulheres de partido, em 2012.
Simone Lolatto em atividade de mulheres de partido, em 2012.

CATARINAS: Sua pesquisa de doutorado estudou a trajetória das vereadoras titulares em Florianópolis. Como você vê a questão de gênero na Câmara de Vereadorxs do município ao longo da história?

SIMONE LOLATTO: Através de minha pesquisa de doutorado, busquei entrevistar as seis mulheres que foram eleitas vereadoras titulares em Florianópolis com o objetivo de analisar a contribuição de seus mandatos para visibilização das reivindicações feministas. A questão de gênero na Câmara Municipal de Florianópolis (CMF) pode ser analisada sob vários ângulos. Mas o que mais chama a atenção é a grave ausência de democracia de gênero no legislativo municipal da capital do Estado. Em toda a história da CMF, apenas seis mulheres foram eleitas titulares. A primeira delas – Clair Castilhos – assumiu o parlamento da capital em 1983. Somente em uma legislatura (1989-1992) tivemos mais de uma mulher ao mesmo tempo na condição de titular exercendo a vereança – Clair, Jalila e Angela Amin -. Nos pleitos eleitorais de 2008 e 2012 nenhuma mulher foi eleita vereadora titular em Florianópolis, colocando esta cidade como a única capital do país que, desde a abertura democrática, por duas legislaturas consecutivas não elege nenhuma vereadora titula – na atual legislatura [2012-2016] também a capital de Tocantins, Palmas, não elegeu nenhuma mulher titular. Nem estamos falando de mulheres feministas a princípio – o que é fundamental para o avanço dos direitos e autonomia das mulheres.

CATARINAS: Você teve dificuldade de pesquisar o tema? Há conteúdo disponível para compreender a participação das mulheres nesse espaço?

SIMONE: Não tive maiores dificuldades.  Inicialmente, busquei aprofundamento teórico, concentrando nas referências feministas brasileiras e latino-americanas que debatem o tema da participação das mulheres na política. Sem menosprezar as clássicas referências norte-americanas e europeias, propositadamente priorizamos as latino-americanas que são de alta qualidade e, infelizmente, ainda menos valorizadas no meio acadêmico, fruto inclusive do debate em torno da colonialidade e decolonialidade. Também não encontrei dificuldades em entrevistar as mulheres que foram vereadoras titulares em Florianópolis. Das seis, apenas uma não respondeu às perguntas que foram enviadas por e-mail. Angela Amin não respondeu minhas mensagens. Contundo, em razão de sua extensa participação em disputas eleitorais e por ter sido a única mulher prefeita de Florianópolis, foi possível encontrar bastante material publicado na imprensa local e até mesmo em meios de comunicação nacionais, por ocasião de seus dois mandatos de deputada federal titular. Felizmente, Clair Castilhos, Jalila El Achkar, Zuleika Lenzi, Lia Kleine e Angela Albino me receberam. Com algumas delas inclusive conversei mais de uma vez para esclarecer algumas questões.Mais uma questão metodológica pode ser evidenciada em minha pesquisa: o caráter parcial, associado inteiramente as epistemologias feministas, da perspectiva situada e o ponto de vista feminista.

CATARINAS: Como você justifica o cenário de invisibilidade das mulheres no parlamento da capital, que elegeu apenas seis mulheres na sua história?
SIMONE: Várias questões estão implicadas nesse contexto de pouca presença das mulheres nos espaços da política eleitoral. E essas questões se mesclam entre si; não podemos separar, mas podemos evidenciar sem colocar em uma “ordem de importância”: a cultura machista, patriarcal, ainda presente no pensamento e ações da maioria da sociedade que, através de todas as estruturas ideológicas – família, escola, igreja, mundo do trabalho, convivência social – cria mulheres para as atividades voltadas ao âmbito privado, centrando seus esforços na unidade familiar, com comportamento dócil e apaziguador. Enquanto isso, os homens são criados para exercer sua capacidade de liderança no âmbito público, nos espaços das negociações do mundo do trabalho e da política eleitoral. Obviamente que há exceções, mas a regra histórica tem sido esta.

A cultura machista e patriarcal faz com que as mulheres não desejem e não ambicionem estar nos partidos políticos para disputarem eleições – às mulheres ainda é incutida a ideia de que elas (nós) seremos bem sucedidas se estudarmos, tivermos uma carreira e… formarmos uma família. O mundo ideal é um bom emprego, bom salário, bom marido, crianças. Essa mesma cultura fez com que as mulheres entrassem muitos séculos mais tarde na política e nas disputas eleitorais. E essa defasagem histórica nos faz falta, temos menos referências femininas, temos menos experiência, temos menos história! Sequer constamos na história da humanidade como parte protagonista da conquista da democracia. Há menos 100 anos vivíamos as manifestações organizadas e coletivas pelo direito das mulheres votarem e serem votadas! Enquanto a participação massiva dos homens na construção da democracia vem da Antiga Grécia. Também podemos dizer que a cultura machista e patriarcal impede as mulheres de disputarem em condições de igualdade os espaços de poder, as cadeiras nos parlamentos, já que a sociedade em geral vota menos nas mulheres, pois esse espaços da política não foi pensado para ser ocupado por mulheres (mulheres = família, no máximo trabalhar fora, participar de umas associações ali e acolá, mas em primeiro lugar a vem a família).

Esse pensamento desemboca diretamente e agressivamente nos partidos políticos, lugar onde as mulheres precisam estar para terem alguma chance de disputar eleições e, portanto, terem alguma chance de participar da política eleitoral. Esses partidos políticos tem “os” Diretórios, “os” dirigentes – do gênero masculino -, pois majoritariamente as direções dos partidos políticos são formadas por homens e algumas poucas mulheres, todxs desta sociedade machista. As poucas mulheres – algumas feministas – ainda são fortemente oprimidas no interior dos partidos políticos. Muitas vezes rotuladas, discriminadas, alvo de piadas por reivindicarem mais espaço.

Penso que o lócus do poder político hoje, no Brasil, está mais nos partidos políticos do que propriamente nos espaços do parlamento. As mulheres precisam estar nos partidos, disputar vagas nas direções e âmbitos partidários, apesar de todo o desgaste que é, para terem alguma possibilidade de serem candidatas. Sem estarem nesses espaços, sequer candidatas poderão ser.

Vale lembrar que a tal cultura machista, patriarcal, potencializa a eleição dos mesmos, e quem são os mesmos historicamente? Homens, brancos, heterossexuais (supostamente), conservadores, mais velhos. Uma pessoa novata encontra muito mais dificuldades estruturais para entrar, pois não conta com um mandato anterior para organizar uma campanha eleitoral, fortalecer sua liderança política interna no partido e externa na sociedade, na cidade. Uma pessoa novata e mulher encontra ainda mais dificuldades tanto estruturais como culturais. O machismo faz com que as mulheres busquem outras formas de associativismo, “mais leves para sua vida”, priorizem o seu bem estar e o bem estar da família, pensem mais em si e na família. Faz com que as mulheres “deixem” esses espaços para quem sempre esteve ali, sob o domínio dos homens.

CATARINAS: Você entrevistou cinco das seis vereadoras eleitas na cidade e pesquisou sobre a vida política de todas. Quais as características desses êxitos eleitorais? Há semelhanças e diferenças?
SIMONE: Há algumas semelhanças sim: foram campanhas eleitorais caracterizadas pela criatividade – baixo custo -, envolvimento de diversos segmentos sociais e não um único nicho, possuíam ligação com movimentos sociais e as proposições/defesas estavam vinculadas a movimentos sociais de viés da esquerda – com exceção apenas de Angela Amin -, eram fortes lideranças em seus partidos políticos e houve investimento partidário em suas campanhas eleitorais – com exceção de Jalila -, eram mulheres que tinham relação com a luta de classes e os movimentos contra-hegemônicos da cidade – com exceção novamente de Angela Amin.

CATARINAS: Essas vereadoras encontraram dificuldades e/ou resistências? Quais?
SIMONE: Encontraram dificuldades e resistências em diferentes graus. Algumas delas relataram diferenças e discriminações no exercício do mandato parlamentar, desferida por seus pares. Outros relatos trouxeram resistências e dificuldades no âmbito familiar, com marido principalmente. Tiveram algumas questões relacionadas a enfrentamento no interior do próprio partido político pelo qual duas delas foram eleitas. É interessante observar que esses relatos aparecem de forma espontânea na entrevista, durante a conversa; mas quando a pergunta era direta, do tipo “você se sentia discriminada como vereadora?”, elas respondiam que não. Isso demonstra que nós mulheres temos dificuldade de reconhecer as discriminações cotidianas que sofremos. Aparentemente, discriminação tida como “frontal” é aquela pautada na agressividade e na violência física. As discriminações cotidianas do espaço público, mesmo que não sutis, como as enfrentadas nos partidos políticos e no exercício parlamentar, disfarçadas de “genéricas”, não são vistas como “diretamente à propria pessoa-mulher”.

Simone (a esquerda) na Marcha das Vadias em 2012.
Simone (à esquerda) na Marcha das Vadias em 2012.

CATARINAS: Sobre os mandatos, você avalia que eles corresponderam às pautas das mulheres?
SIMONE: Das seis vereadoras titulares que tivemos até hoje em Florianópolis, quatro delas tiveram atuação destacada para as demandas dos movimentos feministas da cidade. E isso se deu não somente pela aprovação de projetos de lei, pois para tanto há que se considerar a correlação de forças na CMF, se a parlamentar compõe bancada majoritária ou minoritária. A visibilidade dos debates em torno das reivindicações feministas se dava através de discursos na tribuna, por meio de audiências públicas para debater os temas que os movimentos de mulheres queriam debater, através da receptividade e participação nas atividades dos movimentos e, também, da apresentação de projetos de lei importantes para a maior autonomia das mulheres em todos os sentidos. Das seis vereadoras, quatro assumiam-se como feministas. Não por acaso, foram essas quatro feministas que levantavam nas entrevistas o debate dos direitos das mulheres e discriminações sofridas. Portanto, quero evidenciar, novamente, que ter mais mulheres na política é importante do ponto de vista da democracia de gênero. Mas ter mais mulheres feministas, associadas aos movimentos feministas e suas pautas – de combate as discriminações de gênero, raciais, LGBTs e classe social -, na política é muito importante para garantir a ampliação, o avanço de políticas públicas para as mulheres que façam o enfrentamento ao machismo e ao patriarcado.

CATARINAS: Como você avalia a lei de cotas hoje? Acredita que ela contribui para a participação das mulheres em espaços de poder?
SIMONE: Contribui sim. Tem limitações. Principalmente as cotas de gênero que temos hoje no Brasil: é cota nas inscrições para a disputa eleitoral em lista aberta; não é cota de cadeiras ou cota de inscrições em lista fechada com alternância de gênero. E isso limita muito o êxito eleitoral das mulheres tendo em vista as considerações que já fiz sobre a cultura machista e patriarcal que enfrentamos todos os dias em todos os espaços. A cota é de apenas de 30%; não é de 50%. Portanto, temos um contingente 70% de homens disputando as vagas. Certamente eles terão maior chance de serem eleitos considerando a quantidade na disputa eleitoral e, além disso, boa parte deles concorre a reeleição e já tem um capital político consolidado portanto. As cotas obrigatórias são muito importante, já significam um avanço, mas precisamos avançar mais.

CATARINAS: Como você avalia o comportamento dos partidos políticos diante da questão de gênero e de suas medidas internas de equidade?
SIMONE: Varia muito de partido para partido. A não obrigatoriedade, por exemplo, de cotas nas instâncias de direções partidárias: essa é uma questão estatutária de cada partido político. Mundialmente os partidos políticos que mais potencializam as cotas internas de gênero tem sido os partidos de esquerda. E esse é um sinal importante. Contudo, não podemos desconsiderar que os partidos políticos, sejam eles de direita ou de esquerda, são instituições formadas pela sociedade que temos, e portanto estão suscetíveis às influências culturais – machistas, patriarcais, racistas, trans-lesbo-homofóbicas – que a sociedade como um todo impõem a todxs nós.

CATARINAS: Como você vê a organização de mulheres dentro dos partidos políticos?
SIMONE: É uma luta renhida e exaustiva. Muitas desistem. Se afastam. Buscam uma vida mais tranquila. Não, não é nada fácil e nada prazerosa. É uma luta e ouso afirmar que é em todos os partidos políticos, de todos os matizes. Nos partidos políticos de direita também tem mulheres batalhando por espaço de empoderamento das mulheres. As ideologias em relação a compreensão de classe  e luta dxs trabalhadorxs certamente é outra. Quanto mais as feministas estiverem dentro dos partidos políticos, mais rapidamente poderemos acelerar o aumento de mulheres na política eleitoral. Eu faço parte de um partido político de esquerda, tenho muitas amigas que são de outros partidos políticos dentro do mesmo campo e posso afirmar com segurança que no interior desses partidos as mulheres tem conquistado espaço. Observo nesses meus 20 anos de militância feminista e partidária que muitos homens – não todos – estão mudando seus discursos e comportamentos diante do crescente enfrentamento que as mulheres nos partidos políticos estão fazendo.

É frequente, nos últimos anos, nas reuniões partidárias que as mulheres se levantem contra uma atitude machista e discriminatória de dirigentes e que as demais apoiem essa ou essas mulheres que apontam tal atitude. Eu não via isso há 15 anos atrás. Eu vejo hoje e sorrio no canto da sala pensando “puxa, isso é trabalho nosso, é trabalho feminista, das de antes que já se foram e das de agora que prosseguem”. Isso me anima, me dá esperança.

CATARINAS: Que pontuações finais você gostaria de fazer?
SIMONE: Tenho muitas mestras. São mulheres inspiradoras. Tenho mestras aqui pertinho com as quais bebo um copo sempre que possível. Tenho mestras que só conheço seus escritos em livros. Também estou cansada. Também não fui criada para ter a ambição de participar das disputas eleitorais. O difícil é ter consciência disso tudo.

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