Ireno Nelson Pretzel foi condenado a 17 anos de prisão pela morte da médica Lúcia Regina Schultz. Falas machistas e homofóbicas marcaram a sessão realizada em Itapema (SC), na quinta-feira (24).

Após dois anos e dois dias de matar asfixiada a médica Lúcia Regina Mattos Schultz, 59 anos, em Itapema, a justiça decidiu pela condenação do feminicida confesso, Ireno Nelson Pretzel, de 66 anos. Em decisão unânime, o réu cumprirá pena de 17 anos e seis meses em regime fechado, inicialmente. O julgamento ocorreu na quinta-feira (24), no Tribunal do Júri de Itapema e foi marcado por falas machistas e homofóbicas por parte da defesa e do próprio assassino.

Durante as 10 horas de júri, foram ouvidos o policial que atendeu a ocorrência no dia 20 de março de 2020, duas testemunhas de acusação, o réu, assistentes de acusação, promotor e advogado de defesa. Logo no início da sessão, o major da PM, Rodrigo Alves Júnior, relatou a cena encontrada no local e destacou a frieza de Nelson ao ser abordado pela polícia logo em seguida ao assassinato.

Em seguida foi a vez de Eleanora Cristina de Mello, amiga há 35 anos de Lúcia. Ela relatou diversos episódios abusivos ocorridos com a médica durante os seis anos de relacionamento com Nelson, desde cenas de ciúmes por parte do réu, controle das finanças da vítima e as vezes em que abrigou Lúcia em casa após brigas do casal.

“Uma vez ela me procurou porque estava com problema com ele, estava chorando dizendo que tinham brigado, que estava impossível viver com o Nelson. Ela estava com uma blusa de manga comprida, eu achei estranho porque estava um calor grande e ela é uma pessoa acalorada. Ali eu desconfiei que ela tinha sido agredida”, relatou Eleanora durante o interrogatório.

Emocionada, a testemunha lembrou do último encontro com a amiga no início da pandemia, uma semana antes do feminicídio. “Nos encontramos na praia e ela me falou que ia se aposentar e disse com todas as letras que não sabia como ia aguentar o Nelson 24 horas. Ela disse: ‘ainda bem que estou reformando a casa dele em Blumenau pra agora ele ter pra onde ir, pra me deixar em paz.’ Ela tinha medo do que podia acontecer e, ainda assim, ela tinha preocupação com ele por ele não ter pra onde ir”. 

Um dos depoimentos mais aguardados era da filha da vítima, Juliana dos Santos, mas, após confirmar que assistiu ao testemunho de Eleanora, teve seu depoimento suspenso pelo juiz Marcelo Trevisan Tambosi. A audiência foi transmitida ao vivo no canal do Youtube da Comarca de Itapema. De acordo com a lei penal, as testemunhas do caso não podem ter acesso à declaração de outra testemunha durante o júri. Para que o julgamento não fosse cancelado, o magistrado decidiu por encerrar o depoimento.

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Major da PM que atendeu ocorrência de feminicídio é interrogado no júri. Foto: reprodução.

Lágrimas de crocodilo

Nelson passou a maior parte do julgamento esfregando o rosto com um lenço como se secasse lágrimas que não caíam. Ele assistiu ao júri por videoconferência de dentro da Unidade Prisional de Itapema, onde está preso desde o ano passado.

Vê-lo pelo vídeo me remeteu às imagens a que tive acesso do depoimento dado à Polícia Civil no dia em que cometeu o crime. Em meio a risadinhas e sem esboçar emoção, ele confessou o assassinato ao delegado de plantão. Horas depois, o vídeo em questão seria exibido aos jurados pelo promotor de justiça, Luiz Mauro Franzoni.

No momento de ser ouvido, Nelson aceitou responder apenas às perguntas do juiz e do advogado de defesa, Alex Blaschke Romito de Almeida. Ao ser questionado pelo magistrado sobre o que teria motivado o crime, ele repetiu o depoimento dado no dia do feminicídio: que Lúcia o teria chamado de broxa em meio à uma discussão.

“Não sei se isso (a fala do broxa) me atingiu de uma forma que não conseguia absorver e aconteceu, escorreu os dedos, eu não sabia que fazendo isso ia matá-la“, disse.

De acordo com o laudo da perícia, Lúcia teve fratura na traqueia. A conclusão é de que Nelson usou de uma força brutal para cometer o crime. Para a acusação, não foi só uma “escorregadinha”, Nelson tinha a intenção de matar a médica.

“A dona Lúcia sofreu todos os tipos de violência, de acordo com a Lei Maria da Penha. Violência patrimonial, moral, psicológica; Ele desejava que Lúcia se afastasse da família e controlava toda a vida dela”, enfatizou a assistente de acusação, Márcia Irigonhê.

Lúcia Regina Schultz, 59 anos, foi morta pelo companheiro Nelson Pretzel em sua residência na cidade de Itapema (SC), em março de 2020. Foto: Arquivo Pessoal.

A médica foi a primeira vítima de feminicídio no estado de Santa Catarina no período de pandemia. Na série Um Vírus e Duas Guerras, publicada pelo Portal Catarinas, Santa Catarina ficou entre os estados mais feminicidas do Brasil. Foram 57 feminicídios em 2020 e 55 em 2021.   

“Por que ela não se separou?”

Durante o júri, não demorou muito para a cultura machista que paira sob o judiciário dar o ar da graça. O advogado de defesa, Alex Romito, chegou a afirmar que mulheres com o nível social e econômico de Lúcia não separam porque não querem, numa tentativa de culpabilizá-la pela sua morte.

“Ela se separou no primeiro casamento, ou seja, era decidida, e com o Nelson não separou. Só mulheres de classes baixas que sofrem violência doméstica e continuam no casamento”, afirmou Romito, na contramão da realidade em que a violência doméstica não escolhe classe, raça ou cor, apenas gênero.

Por outro lado, o promotor de justiça e os assistentes de acusação abordavam, em suas falas, um estudo psicológico sobre a síndrome da mulher maltratada. “É quando a vítima que sofre violência doméstica não consegue se desvincular do agressor e acaba se submetendo àquela situação, seja por dependência financeira – que não é o caso -, seja por dependência emocional e medo – o que acho que era o caso da Drª Regina”, afirmou o promotor.

Romito perguntou ao réu se ele tinha ciúmes da médica. Nelson respondeu que era um ciúme “normal”. O advogado, então, completou, em tom irônico: “Ter ciúme não é crime, ainda, Seu Nelson”. Na tentativa de desqualificar o relacionamento entre mãe e filha, Romito perguntou ao assassino como era o relacionamento entre elas. “A Juliana tinha esse problema de não gostar de homens”, afirmou Nelson. A declaração foi vista pelos presentes como homofóbica.

“A fala do Nelson desandou para homofobia e parecia que, cada vez que eles abriam a boca, o machismo imperava, tentando culpabilizar a vítima, dizendo que a vítima de alguma forma causou aquele resultado. Foi muito violento ouvir a exposição da defesa”, confessou a filha de Lúcia, Juliana dos Santos.

Nelson não esfregava mais o lenço no rosto quando o juiz leu a sentença dada pelos sete jurados. Por unanimidade, ele foi condenado por homicídio qualificado com duas qualificadoras, feminicídio e asfixia, com agravante de ter sido praticado durante calamidade pública. A pena de 17 anos e seis meses de prisão vai ser cumprida em regime fechado, inicialmente.

“Aplicação da pena cumpriu nossas expectativas. As qualificadoras e agravantes foram acolhidos pelos jurados. Estamos satisfeitos com o resultado. É uma reposta à sociedade para tentar, paulatinamente, quem sabe, diminuir o número de feminicídios”, comemorou Márcia Irigonhe.

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