A reportagem sobre o caso Mariana Ferrer publicada pelo The Intercept Brasil, de autoria da jornalista Schirlei Alves, teve grande repercussão no Brasil e no mundo. A expressão “estupro culposo” viralizou, sendo comentada por celebridades e autoridades do alto escalão do governo e Judiciário. A frase “não existe estupro culposo” parou nos trending topics do Twitter. No dia de sua publicação (03/11), a expressão “estupro culposo” passou a ser motivo de debate. A partir dali, a jornalista começou a ser perseguida e a receber ataques misóginos em suas redes sociais.

O primeiro promotor do caso, que ofereceu a denúncia por estupro de vulnerável, entendeu que havia elementos para comprovar a vulnerabilidade, já o segundo promotor, que apresentou as alegações finais, entendeu que as provas não eram suficientes. “A argumentação usada pelo Ministério Público (MP) trouxe o entendimento de que o fato aconteceu, mas sem caracterizar o dolo, ou seja, a intenção do acusado de estuprar, já que o MP entendeu que não ficou comprovada a vulnerabilidade dela em consentir. Mas como não há previsão desse crime na modalidade culposa, a análise afasta a punição”, explica Schirlei Alves em entrevista ao Catarinas.

A jornalista, que pretendia apontar a face misógina e machista do Judiciário brasileiro através da reportagem, acabou tornando-se alvo da rede disseminadora de ódio na web. Schirlei teve que fechar suas redes sociais e acionar organizações de proteção aos jornalistas.  De acordo com ela, dois ataques ameaçaram sua integridade física.

“Tenho recebido ataques de cunho misógino e que desqualificam meu trabalho. Há alguns casos pontuais mais graves de ameaça à minha integridade física. Há também grupos organizados e articulados, uma vez que as mensagens são muito parecidas e reproduzidas também por perfis falsos e a partir de fontes semelhantes. Tenho recebido apoio jurídico e de organizações que trabalham com a proteção de jornalistas”, afirma.

Ataques a jornalistas, comunicadores e profissionais do setor vêm se tornando mais frequentes, a maioria é desferida pelo próprio Governo Federal. De acordo com a organização internacional Artigo 19, 82 jornalistas sofreram ataques durante o exercício da profissão até agosto deste ano, 79% dos ataques saíram da boca do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Além da expressão “estupro culposo”, a matéria trouxe ainda o vídeo do julgamento de Mariana no qual André Aranha fora absolvido. O tratamento humilhante dado à vítima foi impactante e comprovou o que já se sabia, a atuação do Judiciário brasileiro é fundamentada na lógica patriarcal que estrutura a sociedade.

Com mais de dez anos de formação, a jornalista Schirlei Alves nos conta sobre a construção da sua carreira (cuja atuação é focada na defesa dos direitos humanos), a cobertura do caso Mariana Ferrer e como tem lidado com os ataques misóginos desde a repercussão da reportagem. 

Antes mesmo do material publicado pelo The Intercept Brasil, a jornalista já cobria o “caso Mari Ferrer” em um jornal local de Florianópolis. Dias depois da publicação de uma reportagem sobre a audiência de absolvição de André Aranha, sem a divulgação do vídeo, ela foi demitida.

Portal Catarinas: Pode nos contar da sua formação? Quantos anos de jornalismo, editorias pelas quais passou, principais coberturas que fez. 
Schirlei Alves: Sou formada pela Univali (Universidade do Vale do Itajaí) há 12 anos. Estagiei no The Epoch Times, no Canadá, e trabalhei nos principais veículos de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul: A Notícia, Diário Catarinense, Notícias do Dia, Zero Hora e Diário Gaúcho, com participações na CBN Diário e na Rádio Gaúcha. Também tive experiência em TV e programas de rádio. Mais recentemente tenho feito trabalhos como freelancer para a CNN e o The Intercept Brasil. Trabalhei principalmente com cobertura de segurança pública e direitos humanos. Atuei nas editorias de Geral, Polícia, Segurança Pública e Sua Vida. Foquei o meu trabalho em reportagens especiais e conquistei esse espaço na medida em que fui me aprofundando em questões sociais emergentes. A primeira reportagem que me fez vislumbrar o real impacto do meu trabalho na vida das pessoas foi quando contei a história das Mães de Monte Castelo, no jornal A Notícia. Tratava-se de mães e crianças menores de 10 anos que estavam sendo hostilizadas na pequena cidade do Planalto Norte por terem denunciado um professor por abuso sexual. Mesmo depois de ter sido condenado e 16 crianças prestarem depoimento diante do juiz, os moradores continuaram acreditando na versão do professor (bem quisto na sociedade) e apontando o dedo para as crianças que não queriam mais nem sair de casa por sentirem-se culpadas. Após a publicação da reportagem que mostrou todos os lados, inclusive a dos que acreditavam no professor, a hostilidade reduziu significativamente, segundo me contou uma das mães. 

Palestra para jovens de um projeto social, em Joinville (SC), sobre uma reportagem especial que contou a história de um adolescente infrator/Foto: Cláudia Baartsch

Quando a pauta em defesa das mulheres passou a chamar sua atenção e por quê?
Quando fiz a matéria sobre as Mães de Monte Castelo, em 2012, precisei conversar com especialistas sobre os sinais e os traumas deixados pelas violências sexuais nas crianças e descobri que o abuso praticado por pessoas muito próximas a elas, como pai, padrasto e avô, por exemplo, era muito mais comum do que se imaginava. Naquela época, as pesquisas sobre o tema ainda não eram tão recorrentes e difundidas. Percebi que havia um nicho a ser explorado e muita informação que ainda ficava restrita a pequenos grupos precisava ser difundida com urgência, especialmente para os pais, professores e todas as pessoas responsáveis pela proteção das crianças. É como um novelo de lã, quanto mais você puxa, mais demandas vão surgindo até que me deparei com a violência contra a mulher. Foi visitando delegacias, falando com especialistas e ouvindo as histórias das vítimas e das mães das vítimas que passei a me dedicar mais às pautas de gênero. Foi uma construção.

Entendi que estava diante de um problema estrutural da nossa sociedade que ia muito além daquelas histórias. Não eram fatos isolados, eram situações recorrentes e muito semelhantes. A informação é uma arma poderosa no combate à violência.   

Como o caso da Mariana veio parar em suas mãos?
Eu trabalhava como editora online no ND+ (Notícias do Dia) e produzia eventualmente algumas reportagens. Embora estivesse como editora, nunca deixei de ser repórter na minha essência. Um colega de ofício, o Marcos Bruno, estava no plantão da manhã e foi ele quem primeiro viu a história da Mariana repercutindo nas redes. Ela havia acabado de compartilhar o seu relato no Instagram. Quando cheguei para trabalhar, no período da tarde, assumi a história e passei a acompanhá-la por se tratar de um tema que tenho afinidade. Fui à coletiva de imprensa da Polícia Civil, onde poucas perguntas foram respondidas. Passei a acompanhar o caso, assim como faço com inúmeras histórias que chegam ao meu conhecimento. Toda vez que havia um desdobramento, a gente publicava, até que um dia tive conhecimento sobre o conteúdo do inquérito e publiquei a primeira reportagem com detalhes até então desconhecidos sobre o caso. Acompanhei o processo até o oferecimento da denúncia pelo MP (Ministério Público) que seguiu o mesmo entendimento da polícia e denunciou o réu por estupro de vulnerável, além de pedir sua prisão (convertida posteriormente na segunda instância). Depois disso, a nossa equipe cresceu e eu fiquei mais focada em capacitar e contribuir para o crescimento dos novos repórteres que estavam chegando cheios de entusiasmo.

Mas quando saiu a sentença com a absolvição fiquei surpresa e resolvi verificar o que aconteceu. Foi aí que me deparei com as novidades nas alegações finais do Ministério Público e com o vídeo da audiência.  

A jornalista em pauta para o Diário Gaúcho sobre uma casa de repouso para idosos, em Porto Alegre (RS)/Foto: Carlos Macedo.

Por acompanhar o caso dela desde o início você se surpreendeu com a absolvição do Aranha?
Sim. Foi uma mudança de entendimento significativa que não podia ser ignorada. Mas como o sistema de justiça tem uma imagem de “superioridade” soa estranho quando algum questionamento é feito. Mas assim como os poderes Executivo e Legislativo são compostos por agentes públicos, que devem satisfação à sociedade pelos seus serviços prestados, no Judiciário não é diferente. Não é por acaso que os membros do mesmo sistema de justiça iniciaram um grande debate sobre o tratamento dado às vítimas de violência sexual no Brasil e como as argumentações jurídicas buscam “a justificativa da violência na culpabilização da vítima”, parafraseando uma das maiores especialistas do tema no país, a promotora do MP de São Paulo Silvia Chakian. A promotora fez essa fala em um dos debates que ocorreu a partir da minha reportagem, organizado pela Escola do Ministério Público do Rio de Janeiro. Já tive o privilégio de dividir com Silvia Chakian, por duas vezes, a mesa de debate sobre o papel da imprensa no combate à violência contra as mulheres, organizado pelo Instituto Patrícia Galvão.  

Quando o vídeo do julgamento em que Mariana é humilhada chegou em suas mãos você tentou publicá-lo em um veículo de comunicação que não concordou em colocá-lo na matéria. Então, você usou apenas prints e descrição dos diálogos na audiência. Você enxerga motivos para essa decisão?
Na verdade, foi uma decisão conjunta. Havia uma preocupação com a exposição da imagem da vítima que era legítima e também com o impacto que o vídeo poderia gerar. Como em todo veículo, a decisão final é dos gestores e esse foi entendimento naquele momento. Após sair do veículo local, passei a focar no trabalho independente e voltei a discutir a pauta com os editores do Intercept. Aprendi com um dos meus gestores, ainda em Joinville, que a pauta precisa ser “espancada”. Se depois disso, ela ainda se mantiver de pé, é porque temos história para contar. E percebemos que ainda havia história para contar. Mas como fazer isso sem expor demais a vítima? Foi quando optamos por selecionar apenas os trechos em que as humilhações ocorreram. Havia um debate que precisava ser feito a partir daquelas imagens. Está correto ou não? Pode o advogado agir daquela forma? Qual o limite? Existe limite? Como os operadores do direito presentes em uma audiência devem se portar e em que medida deve ocorrer alguma interferência? Acredito que essas perguntas estão sendo respondidas agora pelos próprios profissionais e especialistas da área. Em dois debates que acompanhei, os especialistas (juízes, promotores e defensores públicos) enfatizaram que é urgente a necessidade de implementação de uma disciplina de gênero nos cursos de direito, por exemplo, e a capacitação dos profissionais que atuam com o tema, pois esse é um problema estrutural que envolve várias questões sociais que precisam ser levadas em consideração. As estatísticas sobre os crimes de estupro e as subnotificações pelo medo que as vítimas sentem em denunciar seus agressores servem como base de estudo.      

Dias depois da publicação da matéria sem o vídeo, você foi demitida. Você vê ligação entre a publicação dessa matéria e sua demissão?
Fui demitida do ND+ sob a argumentação de que estava ocorrendo uma revisão de cargos e salários na empresa e que o meu salário não estava dentro dessa revisão. Questionei se havia alguma relação com meu trabalho e a resposta que obtive foi a de que não havia.  

Logo depois o Intercept aceitou a pauta e a divulgação do vídeo. Qual foi sua intenção em revelar o vídeo do julgamento e as alegações finais do MP ao público?
Como falei anteriormente, percebemos que ainda havia história para contar e alguns questionamentos a serem feitos, especialmente sobre a conduta dos operadores do direito em um caso envolvendo violência sexual. A divulgação das alegações do MP era importante não só pela mudança de rumo que o caso tomou, mas pelo precedente que estava sendo aberto de alegações que poderiam ser usadas em outros crimes semelhantes.

Não havia precedente de absolvição por erro de tipo (que exclui o dolo) em casos como o de Mariana, ou seja, por vulnerabilidade relacionada à ingestão de alguma substância entorpecente.

Imagem: alegações finais do Ministério Público de Santa Catarina.

Os exemplos apresentados na própria alegação são de casos em que o erro de tipo foi considerado para vulnerabilidade relacionada à idade da vítima. São casos de meninas menores de 14 anos, mas que não aparentam ter a referida idade. Nesses casos, sim, há precedentes em que houve o afastamento da punição com a argumentação de que o réu cometeu o crime em erro de tipo, ou seja, errou ao não ter conhecimento sobre a idade da vítima.  

Como você chegou ao termo estupro culposo? Cite também as fontes consultadas para tal.
Na análise jurídica apresentada nas alegações finais do MP, o promotor apresentou a argumentação de “erro sobre elemento constitutivo do tipo legal”. O erro de tipo ocorre quando o autor do crime não tem consciência que está cometendo o delito. Um exemplo é quando você pega uma bagagem de outra pessoa por engano no desembarque do aeroporto. Você sabe que subtrair coisa alheia é crime. Mas você pegou a mala achando que era sua e não de outra pessoa. No caso da Mariana, o erro de Aranha, segundo a tese, seria o de não saber que a vítima não tinha o necessário discernimento para a prática do ato e acreditou que estava mantendo uma relação sexual consentida. Ele tinha conhecimento de que manter conjunção carnal com pessoa em situação de vulnerabilidade é crime, mas, segunda o entendimento do MP, ele não tinha o conhecimento de que ela estava dopada ou sem a possibilidade de consentir. Como a própria análise jurídica descreve, o erro de tipo exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo.

Não existe, porém, no ordenamento jurídico brasileiro, a punição por estupro na modalidade culposa (sem intenção), apenas na modalidade “dolosa” (com intenção de praticar o crime). O pedido é de absolvição, pois não seria possível condená-lo na modalidade culposa, uma vez que ela não existe para esse tipo de crime.

Imagem: alegações finais do Ministério Público de Santa Catarina.

Na sentença, o juiz afirma que “não há possibilidade de condenar quando o representante do MP requer a absolvição” e cita também a argumentação do erro de tipo que afasta o estupro de vulnerável.

Conversei com vários especialistas sobre o tema, algumas foram citadas abertamente na própria matéria.   

A matéria teve uma grande repercussão, mas num certo momento o debate saiu do campo do teor misógino do vídeo e foi para o uso do termo “estupro culposo” até a reportagem ser acusada de fake news. Isso desvia do propósito que a reportagem queria mostrar?
As discussões provocadas pela reportagem tanto no meio jurídico, quanto pela própria imprensa, foram qualificadas e trouxeram à tona problemas estruturais de gênero que estão refletidos no sistema de justiça. Novos casos surgiram a partir do encorajamento das vítimas que decidiram tornar públicas suas histórias.

Recentemente, um juiz de uma cidade goiana negou que fossem feitas perguntas que explorassem a experiência sexual anterior da vítima a fim de evitar que ela fosse revitimizada. Para isso, ele usou o recurso de depoimento especial. É ou não é um belo exemplo de repercussão?

Um projeto de lei foi sugerido no Congresso para evitar a violência institucional. A própria audiência por videoconferência em casos de crimes sexuais está sendo reavaliada. É um impacto muito grande, natural que provoque descontentamento e tentativas de abafar o real debate.  

Você passou a receber ataques na internet. De onde vem esses ataques, qual o teor das mensagens e quais medidas você precisou tomar?
Tenho recebido ataques de cunho misógino e que desqualificam meu trabalho. Há alguns casos pontuais mais graves de ameaça à minha integridade física. Há também grupos organizados e articulados, uma vez que as mensagens são muito parecidas e reproduzidas também por perfis falsos e a partir de fontes semelhantes. Tenho recebido apoio jurídico e de organizações que trabalham com a proteção de jornalistas.  

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