Domingo, 26 de abril de dois mil e vinte. Sempre que inicio uma crônica, já pensei no que me atiça, e a desenvolvo; às vezes de uma escrita só, outras, levam dias. No movimento da narrativa, o que me move vai tomando cursos do que me emociona, seja para os enfeites que a vida dá, seja para a dor que aperta e abre feridas. Faz algum tempo, perguntei à amiga Urda Klueger como faz para escrever tão belas histórias; me aconselhou a escrever o que vem do coração.

Nestas últimas semanas, andei tendo disparos cardíacos de tantos sentidos que me apunhalaram; tive que lidar com isso, e na escrita encontro os silêncios que me acalmam. Sobre o que escrever agora, depois dessas catarses? Ouvindo o coração, andei fazendo poesias, de amor, de dor, de saudades, do desejo dos reencontros; então, porque não falar dessa fonte que me inspira?

Desde o dia dezesseis estou na minha casa; pensava em passar uns dias aqui e voltar para ficar com minha mãe, mas uma outra contingência me levou a deslocar-me para uma despedida e cuidar de minha filha. Por mais que tenha me cuidado, como saber se o medonho oleoso encontrou um poro desavisado e não bêbado nas minhas carnes? Por esta dúvida, preciso ficar isolada antes de voltar para perto de minha mãe.

Na cidade grande (comparada a Turvo, Florianópolis é uma metrópole), tenho pensado em cada coisa de me dar nó nas ideias. Uma delas é o medo de sair de casa, porque o imprevisível dos cotidianos pode acontecer. Sair de casa na capital só por uma urgência imperativa, e tive que voltar a uma consulta médica. Mesmo com todo equipamento que consiste em sair usando máscara e levar outras na bolsa, álcool em gel, luvas, roupas leves para lavar depois, calçado só para a rua, sem brincos, anéis e sem passar batom – justo o que sempre gostei de usar – sair pela porta me faz lembrar um campo minado.

Não encostar no elevador, embebedar as chaves, sair pela garagem e alcançar a rua me dá vertigem. A tensão faz doer o pescoço; as costas enrijecem. Observo, na rua, que a cada cinco pessoas usando máscara, uma não a usa; pior, se juntam, conversam de pertinho como se não houvesse amanhã, o que reforça meu temor e o cuidado extremo.

Na volta, o ritual de deixar os sapatos na porta, tirar as roupas, lavar as mãos, por tudo no tanque e tomar banho. Ufa, cheguei na minha clausura; me sinto aliviada.  Não, não quero que isso dure muito; vai passar, “tudo passa” sempre diz minha mãe, e fala de tantos sustos e perdas que viveu, e tudo passou, não sem deixar cicatrizes.

Sigo, escrevendo, porque urgem verbos em movimento. Nessa sofrência, me pego entregue às saudades, e às ausências. Já é tarde, zero e trinta; porém me é cedo, posto que durmo sempre às zero duas. Não durmo sem antes escrever coisas que me tocam – sempre à mão; e à mão estão blocos e cadernos na minha cabeceira; quantas vezes desligo o abajur e as ideias não saem, então ilumino de novo e escrevo…

Faz pouco, me fiz uma caipirinha, com limões trazidos da casa de minha mãe; os limões amassados me olham através do copo azul, presente de pessoas queridas quando estive na FURB para ministrar aula magna por ocasião do processo. O copo me lembra este fato escabroso; porém, que tive o apoio imprescindível de tanta gente que tem como princípio a democracia e a liberdade de cátedra, e o que adentra nos poros de minha face é ternura. Vencemos, Daniela Félix!

“Não posso orientar quem não acredita naquilo que estuda”, afirma Marlene de Fáveri

Desde o entardecer e até agora, escrevi outros poemas; li Rubem Fonseca; falei com minha mãe e minha filha ao telefone; bebi muita água; engoli uma panqueca; e remoí saudades revendo memórias… em menos de uma semana perdi dois amigos, o que ainda me entorna os olhos, e não sei por quanto tempo ainda vou sentir esse amargor misturando sentidos. É preciso, é necessário afagar as dores, acariciar as cicatrizes.

Vou fazer uma digressão: aprendi com cronistas que digressões pode; então eu posso. Estou aprendendo escrever direto na telinha do computador, o que ainda me incomoda, mas percebo o ganho de tempo; o que gosto mesmo é de deslizar a tinta num papel em branco. Sei que não vou dar conta, no tempo de vida que me resta, de digitar tudo o que tenho registrado em diários e cadernos; são versos, crônicas, poemas, ensaios, textos memorialísticos que versam sobre paixões, amor, saudade, dor, abandonos, violências, denúncias, liberdade, especialmente sobre mulheres e suas lutas. Só com ajuda e muita paciência, e este é um dos projetos de aposentadoria.

Lembrei-me de uma vez quando me apaixonei, e escrevia todas as noites poemas inflados de gozos e direto nos e-mails e no celular; perdi a maior parte numa troca de computador, que lástima. Quanto aos enviados, numa de nossas brigas, e antes que nos afastássemos de vez, ele jogou pela janela do carro um bloco onde os reproduzia. Perdeu. Esses poemas me vinham como dardos da liberdade, das coisas que dão prazer imenso, da paixão que emburrece; mas é o que nos move.

Na clausura, acompanho os desmandos e os danos provocados pela alcateia que detém os poderes em seus egos palacianos. Tem um miserável que é o chefe ressentido, tosco, machista, mentiroso, que inventa, diz impropérios, tripudia, assassina, ignora a miséria social; destitui ministro, institui outro sem noção da realidade; sai outro ministro, num cenário rocambolesco que tonteia quem se dedicar a escrever a História, doravante.

E isso acontecendo enquanto abrem-se covas coletivas para os corpos mortos pelo vírus letal.  Um desses infames faz o tempo de inventar uma estapafúrdia tese de conspiração internacional comunista como responsável pela tragédia da pandemia; pior, um plano onde o que chamam de ideologia de gênero seria um mal para a humanidade. Ele, e todos os outros – e, lamentavelmente, outras – ao tripudiarem os estudos de Gênero estão cobertos do manto da ignorância; nem sabem o que significa.

Afirmo, e reafirmo, que as violências de gênero são um cancro social advindas do machismo estrutural e patriarcal; manifesta-se com a posse de armas e postura tóxica, na fala do presidente – “papai, namorei todo mundo no condomínio, não lembro dessa menina” – como temos presenciado, entre outras manifestações do horror, em passeatas da morte.

Tenho dito nas aulas e palestras que a violência contra mulheres é incontingente, é real, é verdadeira e está acontecendo neste segundo em que passamos os olhos neste texto, num tempo mais que presente.  Não, não é hora de afrouxar: defendemos e defenderemos o Gênero no ensino e na educação como proposta generosa para um mundo sem violências.

As notícias desse mundo fora do eixo em todos os sentidos, do medonho invisível a cada dia mais sedento aos escabrosos desmandos na esfera política, chega uma hora em que cansam. Então, olhei redes sociais e me surpreendi com as tantas curtidas e comentários sobre um poema, intitulado Pós claustros, gestado na madrugada do dia vinte e dois.

Este poema, brotou como resposta a um amigo que comentara a crônica anterior nesse Portal; foi a primeira vez que ouvi a palavra composta pós pandemia – haverá pós pandemia?  Cutucada pela abelha dos Aedos, de verve, explorei os sentidos dos verbos, dei-lhes sujeitos, adjetivos, por vezes num português torto, o escrevi de um punho só. Diz assim:

Pós claustros

Quando o pós pandemia chegar,

Faltarão dias e noites para

Todos e tantos encontros. 

Serei mais livre,

Farei mais escolhas,

Buscarei mais flores,

Dançarei mais tangos,

Beberei mais cervejas,

Visitarei mais as amigas,

Comerei mais morangos,

Libertarei mais o sexo,

Movimentarei mais os braços,

Andarei mais no parque,

Brindarei mais à vida,

Falarei mais de amor,                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                       

Darei mais abraços,

Escreverei mais contos,

Farei outros poemas

E festa na tua chegada.

Lendo os comentários da postagem, compreendi a força das palavras de conforto, de espera; e com a esperança de que faremos festa com nossas chegadas quando a pandemia acabar. Sim, faltarão noites, e dias, para tantos abraços e encontros. Faremos todos os eventos agora cancelados, viajaremos mais – o Seminário Internacional Fazendo Gênero, e vamos a Moçambique, mesmo com um ano de atraso, participar do Mundo de Mulheres; iremos sim, militantes feministas; urgem nossas pautas mais caras. A revolução será feminista, e às mulheres cabe fazê-la com o entusiasmo generoso e a potência reanimada pelas lutas de nossas ancestrais e contemporâneas – Mary Wollstonecraft, Rosa Luxemburgo, Simone de Beauvoir, Ângela Davis, Dandara, Marielle Franco, Sonia Guajajara, e outras tantas a nos dar exemplos.

Nesse encontro com os afetos, reli o poema citado acima, e me veio um desconforto: fui egoísta. Pensei em mim, como é compreensível dada a situação que vivemos, e minha vontade explícita de viver. Pensei então nas pessoas tantas que quero próximas, e mais próximas quando a pós pandemia chegar. Penso nas coisas que ainda não fiz, ou fiz pela metade, ou não fiz direito; nas coisas que deveria ter dito mas não disse, ou disse sem muita ênfase, ou não disse por achar piegas. Me atento que sem os outros, as outras, não haverá futuro, nem abraços, nem poemas, nem palavras e, portanto, nem festa com suas chegadas. “Faça uma lista de grandes amigos, Quem você mais via há dez anos atrás, Quantos você ainda vê todo dia, Quantos você já não encontra mais” – Osvaldo Montenegro nos conta desses pecados cometidos por não olharmos os outros e as outras com alteridade e desprendimento.

Quando a pandemia passar, precisaremos mais uns dos outros, umas das outras, e de todos e todas juntas. Nenhuma a menos; nenhuma morta; nenhum a menos; ninguém que falte na festa que trará de volta nossa liberdade. Citando Onice Sansonowicz: “Que a ciência se antecipe à morte”, num incômodo e belíssimo poema sobre tempos de covid. Sobreviveremos para tantos e todos os abraços!

Então, outros verbos, e outras frases, outros desejos, misturados aos meus, resinificam meu olhar; e escrevi assim:

 Pós claustros (2)

 Quando a pandemia passar

Faltarão dias e noites para

Dar conta de tantas urgências.

Serei mais cuidadosa contigo

Olharei mais nos teus olhos

Apertarei mais as tuas mãos

Acolherei com mais humildade.

Ouvirei mais os teus sonhos

Enxergarei mais tuas feridas 

Atentarei mais às tuas insônias

Reivindicarei por nossa igualdade.

Lutarei mais por tua cidadania

Brigarei mais por teus direitos

Abrigarei mais teus infortúnios

Marcharei mais por tua liberdade.

Respeitarei mais teus silêncios

Acariciarei mais tuas dores

Agradecerei mais teus cuidados

Vindicarei mais por tua dignidade.

Irei mais ao teu encontro

Afagarei mais teus cabelos

Dedicarei mais poemas com o

Sentido da solidariedade

Escreverei mais crônicas de amor

Festejarei mais a tua vinda e tua

Presença neste mundo, que desejo

Plena da fortuna da felicidade.

Meus desejos são ordens – fica decretado que no mundo, depois desta truculenta e infame moléstia, haverá outros verbos, advérbios, adjetivos, substantivos e nenhum deles combinará com a palavra medo. Sairemos mais fortes, voltaremos a ter liberdade para passear, molhar o mar com nossa saliva, fazer sexo com entrega, colher goiabas ainda verdes, dançar como dois em um, levantar bandeiras nas passeatas e juntar muita gente que tem na consciência a certeza de que só é possível viver com democracia, cidadania e solidariedade.

Minha homenagem à amiga Schirlei Azevedo, guerreira mulher militante, presente!

Rejane Wilke e Arielle Rodrigues, obrigada!

Marlene de Fáveri, Florianópolis, 26 de abril de 2020.

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  • Marlene de Fáveri

    Marlene de Fáveri, natural de Santa Catarina, Historiadora, professora Aposentada do Departamento de História da UDESC....

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