A pastora Fabíola Oliveira sabe o que é ser vítima de racismo religioso por ser uma pessoa com dupla pertença religiosa. Além de evangélica, ela também é nascida e criada no candomblé. Discípula de Jesus Preto de Nazaré, ela é pastora na Comunidade Batista em São Gonçalo, no Rio de Janeiro. Aos 38 anos, é educadora social, idealizadora e diretora executiva do Odarah Cultura e Missão, atua na articulação educativa e institucional com jovens inseridos em contexto de socioeducação e integra a comissão de direito socioeducativo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). 

“Conectar-me com Jesus preto é me conectar com o meu pertencimento. É não cair em mais uma armadilha do racismo que embranquece tudo aquilo que é preto pra que a gente fique desmotivado a encontrar a nossa própria raiz”, explica.

Fabíola Oliveira é uma das seis protagonistas de “FÉministas: evangélicas por um futuro democrático e amoroso”, terceira temporada do podcast “Narrando Utopias” já disponível nas plataformas digitais. A produção conta com a parceria do grupo Prosa, da UFSC, e a colaboração da Rede de Mulheres Negras Evangélicas, do qual a pastora também faz parte.

Confira a entrevista na íntegra com Fabíola Oliveira:

Você se apresentou como discípula Jesus Preto de Nazaré. Quais os significados dessa escolha? 

Para mim significa pertencimento. Eu sou nascida e criada num território de religião de matriz africana. A minha mãe nunca forçou a gente a seguir essa religiosidade, tanto é que o meu irmão foi para a igreja evangélica. E a gente percebia que o racismo religioso se dava pela demonização do nosso espaço de fé. Então, esse Jesus que eu conhecia era um Jesus que me odiava. Era um Jesus que falava que eu adorava demônios.

Só que o que eu vivia dentro da experiência de candomblé era acolhimento e empatia. Por isso me descolei completamente da espiritualidade do Cristo de Nazaré. Via nele um cara branco, centrado na sua masculinidade que impunha valores, desejos, modelos de vivência para outras pessoas.

Até que eu descobri que esse Jesus tinha uma tinta branca por cima dele com a intenção nítida de fazer um apagamento. Basta pensar nos espaços que são descritos na narrativa bíblica. Na África que é narrada ali. Aí eu descobri que essa era mais uma façanha do racismo. E é por isso que eu me conecto a ele.

Me conectar com Jesus preto é me conectar com o meu pertencimento. É não cair em mais uma armadilha do racismo que embranquece tudo aquilo que é preto pra que a gente fique desmotivado a encontrar a nossa própria raiz. 

Gostaríamos de saber um pouco mais sobre a sua trajetória. Quando você se tornou evangélica?

Eu digo que me tornei evangélica porque quero disputar a mentalidade das pretinhas e dos pretinhos que estão dentro desse espaço com ódio do próprio cabelo, com ódio do nariz, com ódio dos traços negroides, das suas referências pretas, com ódio dos seus familiares que são de umbanda e de candomblé. E eu assumo essa pertença religiosa pra minha vida dentro de um terreiro de candomblé.

Eu estava na minha Casa de Santo e eu reconheci que aquela manifestação espiritual que eu estava sentindo ali não era dos orixás. Então, comecei a buscar saber o que era aquilo. Mergulho na espiritualidade de Jesus de Nazaré a partir de 2015 quando começo a estudar, passear pelo espaço da igreja com muita dificuldade, porque os elementos, os simbolismos, a forma de se dar a liturgia é muito diferente do espaço do candomblé. E fui me construindo enquanto essa pessoa de dupla pertença religiosa, que não abre mão de um para ter o outro, mas que tem em Jesus de Nazaré um potencializador da minha espiritualidade.

E como foi criar o Odarah Cultura e Missão?

O Odarah já existia antes desse período. As primeiras ações do Odarah se deram dentro de escolas públicas através de oficinas de literatura infanto-juvenil para crianças da rede municipal aqui do Rio de Janeiro. Mas o Odarah se sistematiza enquanto uma organização a partir do ano de 2013, quando começamos a levar essas oficinas para fora da escola, para a comunidade. Nesse processo, o Odarah se torna uma plataforma de disseminação mesmo. De compartilhamento de uma perspectiva pela diversidade religiosa, pela inter-religiosidade, pelo ecumenismo e pela defesa irrestrita do direito à liberdade religiosa de toda e qualquer pessoa.

Por essa razão a gente se coloca muito frontalmente contra o racismo religioso e aí vocês conseguem imaginar que isso me trouxe muitas coisas incríveis, muita gente incrível, muita gente que não sabia onde estava e não se encaixava em lugar nenhum. E ao perceber que tem outras pessoas com outras expressões de espiritualidade elas perceberam que elas são legítimas também. Mas também atrai muita perseguição. 

Você trabalha com teologia negra ou outra teologia? Pode explicar como funciona esse diálogo inter-religioso? 

Sim. A teologia negra é a nossa principal fonte, porque é nela que a gente faz a discussão da ancestralidade. Esse lugar de reconhecimento daquilo que nos forja, daquilo que nos precede. Jogando luz sobre algumas perspectivas filosóficas africanas balizadoras do nosso pensamento. Como o Sankofa que diz respeito a gente construir uma caminhada para o futuro, fincado aqui no presente, mas tendo como referência aquilo que os nossos ancestrais construíram. O caminho que percorremos hoje é pavimentado por aqueles que vieram antes da gente, tanto pelos nossos contemporâneos quanto por aqueles que ainda virão.

A teologia negra também nos propõe refletir sobre Ubuntu, que virou hashtag, virou textão de internet, virou camiseta, tatuagem, mas nesse ambiente capitalista, violento e acirrador das individualidades, o Ubuntu não virou necessariamente uma atitude diária, uma vez que Ubuntu significa “eu sou porque nós somos”. Então, esses são um dos pilares que fazem a teologia negra ser uma teologia que dá conta de fazer essas reflexões acerca da inter-religiosidade, bem como a teologia mulherista que também tem me atravessado profundamente. Eu me organizo enquanto mulher preta a partir do mulherismo africano. Me posiciono ao lado das minhas irmãs feministas para pensar, para refletir, mas me localizo como mulherista.

Qual a diferença entre teologia feminista e mulherista?  

A principal diferença é que enquanto a teologia feminista está bastante centrada e organizada em torno do gênero, a teologia mulherista tem a comunidade no centro. E não necessariamente mulheres comandando a comunidade, mas a partir da sabedoria intrínseca dessa inteligência emocional de mulheres as comunidades se organizam. Então, se eu pudesse, irmã, de forma muito superficial trazer uma diferença nítida seria essa.

Enquanto as discussões de gênero estão bastante centradas nas discussões das minhas irmãs feministas, a teologia mulherista tem a comunidade no centro, a partir da dororidade, das experiências da mulher, da centralidade da gestação – e aqui eu não estou falando da gestação biológica. Eu estou falando dessa capacidade ancestral de mulheres negras de gerir o mundo. O primeiro útero do mundo foi o útero de uma mulher preta. Então, é nesse sentido. 

Por vezes a igreja e a comunidade evangélica não são espaços de acolhimento. Qual foi a sua principal motivação para ter seguido com a sua fé, apesar dos desafios que encontrou na sua trajetória religiosa? 

Foram duas coisas, minhas irmãs. Foi Jesus Cristo de Nazaré e o povo dele aqui na terra. Sem medo de ser piegas. Eu encontrei racismo religioso dentro do espaço evangélico, a Comunidade Batista em São Gonçalo não foi a primeira comunidade de fé na qual eu desenvolvi o meu mergulho na direção de Cristo. Eu vivi outras experiências religiosas que me apresentaram uma violência velada. Fui convidada, de forma sutil, a assumir a narrativa da ex-macumbeira que a gente sabe que vende no meio gospel. Muitas violências que acontecem nesse meio religioso, fundamentalista, são veladas e o moralismo é tão grande que todas as perversidades acontecem nos bastidores.

Só que Jesus não me chama pra penumbra. Jesus me chama pra luz. Então, primeiro foi Jesus e depois o seu povo. Fui chegando num lugar e aprendendo, fui chegando num outro lugar, aprendendo. Até que por causa da bondade do povo de Deus e por causa do amor de Jesus de Nazaré eu me encontro na comunidade de fé na qual estou hoje, que abriu mão do proselitismo. Uma comunidade de fé que abriu mão da religiosidade, que deixou os escritos do passado no passado. Não é cuspir na cara de ninguém, não é cuspir em teologia nenhuma, mas é reconhecer que são novos tempos e que a gente demanda novas respostas. Então, nós precisamos fazer novas buscas. 

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Descrição de imagem: Fabíola Oliveira junto com integrantes da Comunidade Batista de São Gonçalo, Rio de Janeiro. Homens e mulheres, em ambiente residencial, posam juntos e sorridentes para a foto.

Um estudo da Sensata descobriu que a ideia de impedir que outros cometam pecado tem impulsionado a rejeição das causas ligadas aos direitos humanos. Como dialogar com essa população evangélica que acredita estar salvando pessoas? Existiria uma outra noção de pecado que poderia ser trabalhada?

Irmã, a gente tem conversado muito, refletido muito lá na nossa comunidade de fé sobre uma característica e sobre um uma ideia que Jesus deu com muita tranquilidade e objetividade que é: “Estou à porta e bato. Se você abrir a porta, vou entrar e vou cear contigo. Vou ficar com você. Vou construir contigo. Se não, amém. Vou embora”. Jesus também fala que ele vai embora de alguns ambientes e que ele, inclusive, bate a poeira da sandália pra ele não levar nem a poeira. A gente fica refletindo sobre esses mecanismos que Jesus usa para comunicar coisas muito óbvias a partir dessas figuras.

Tenho refletido muito sobre esse nosso lugar de convencimento. Parece que a gente desacreditou do que as escrituras disseram, que quem convence é o Espírito Santo. Nosso papel de denúncia tem que continuar, nosso papel de apontar as mazelas precisa continuar.

Mas a vida com Jesus não é uma vida de digital influencer, é uma vida de reconhecimento da realidade e de assumir o risco que é viver a partir da denúncia dessa realidade. Tem pessoas que a gente não vai convencer.

Tem pessoas que desejam canalizar o seu ódio e colocar a desculpa na religião. A gente precisa falar sobre essas pessoas e sair do lugar dessa benevolência compulsória. 

Fabíola, a religião pode ser inclusiva, amorosa, libertária e aberta ao diálogo? Se você acha que não, o que precisa mudar para que isso aconteça?

Tem que mudar tudo irmã. Revisitar alguns textos, revisitar algumas atitudes nossas, inclusive, nós que estamos no espectro progressista. Olhar para Jesus e voltar ao primeiro amor. Enquanto pastora, enquanto serva de Jesus de Nazaré que tem colocado a minha vida no pé da cruz, eu não vejo outra solução. Temos que destruir essa branquitude, esse imaginário individualista e competitivo da nossa mente. E pensar nos caminhos práticos para isso.

Temos que começar orando. A igreja precisa voltar a ser uma igreja intercessora. A gente fala de luta, fala de roda de conversa, fala em caminhadas, em atos. E é sobre isso mesmo. Fazer correria. Jesus andava, não andava? Pra lá e pra cá. Igual um cabrito. Jesus vivia andando. É isso mesmo, é correria, é conhecer gente, se envolver com pessoas. Se reconhecer nas outras pessoas. Uma teologia que seja centrada nas pessoas, porque nós somos a menina dos olhos de Deus. 

Qual o futuro que você sonha pro Brasil?

Bom, o sonho que eu sonhe pro Brasil é que o Bolsonaro saia da presidência da república, em nome de Jesus. Que ele seja derrubado. Que essa política de morte seja destruída porque, infelizmente, a saída dele do poder não significa que essa política de morte vai desaparecer de uma hora pra outra. Óbvio que não. Mas que o bolsonarismo vá sendo eliminado todos os dias através das nossas práticas corajosas.

Eu também sonho com um país que se reconheça nas suas origens ancestrais e que o povo preto desse país seja liberto. Mas liberto principalmente na mente. Que haja uma mudança radical no povo preto, que o povo preto comece a reconhecer que não é à toa que a cada vinte e três minutos um jovem preto é assassinado. Que o Espírito Santo de Deus derrame sobre esse país uma libertação na mentalidade do nosso povo e que a gente reconheça que algumas das políticas que a gente vive hoje são políticas para matar o nosso povo.

Sonho também com um futuro em que os povos indígenas sejam respeitados e que esse genocídio que nunca parou de acontecer acabe. Que esse povo tenha dignidade e que a gente reconheça a centralidade dele nesse território brasileiro e que as igrejas evangélicas fundamentalistas sejam destruídas, em nome de Jesus.  E que as comunidades de fé que tem compromisso com Jesus Cristo de Nazaré sejam levantadas e tenham coragem, não se omitam. 

Este projeto faz parte de Narremos a Utopia, uma iniciativa do Inspiratorio.org para imaginar futuros feministas, interseccionais e inspiradores.

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  • Kelly Ribeiro

    Jornalista e assistente de roteiro, com experiência em cobertura de temas relacionados a cultura, gênero e raça. Pós-gra...

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