A saúde psicológica das advogadas defensoras de mulheres vítimas de violência psicológica é colocada à prova diariamente, devido à complexidade dos casos e à carga emocional que carregam. Muitas vezes, essas profissionais são desumanizadas, como se o fato de estarem no exercício de suas funções profissionais anulasse o impacto emocional da situação concreta. No entanto, atuar na defesa de mulheres vítimas de violência é uma escolha penosa, sobretudo quando se considera que, na maioria das vezes, o poder econômico está nas mãos do abusador. 

Esse desequilíbrio de poder intensifica as dificuldades enfrentadas pelas advogadas. Além disso, as vítimas que passaram por um longo processo de invalidação e sofrimento, veem nessas profissionais sua última esperança, como se fossem suas salvadoras. Esse é um lugar muito delicado de ocupar, que gera uma imensa pressão sobre as profissionais.

A advogada tem o papel de acreditar, de escutar e de oferecer suporte concreto para uma pessoa que, muitas vezes, teve sua história negligenciada. A violência psicológica sofrida pelas vítimas, ao gerar importantes demandas por atenção e validação, faz das advogadas uma fonte de suporte emocional e psicológico, além do jurídico. 

Além disso, as dificuldades no exercício profissional são incontáveis, a começar com o registro do boletim de ocorrência por violência psicológica, pois, mesmo tendo sido tipificado como crime em 2021, as delegacias ainda resistem em registrar esse tipo de ocorrência.

Quando o fazem, muitas vezes desencorajam a vítima, afirmando que “não vai dar em nada”, o que reflete os preconceitos em torno da saúde mental e os estereótipos que rotulam mulheres como exageradas, histéricas ou ressentidas. Essa falta de validação também ocorre no âmbito cível, o que recai diretamente sobre o trabalho da advogada, que precisa não apenas instruir o processo adequadamente, mas também convencer o judiciário a reconhecer questões já previstas em lei ou sedimentadas jurisprudencialmente. 

O processo judicial pode ser um espaço de intensificação da fragilidade das vítimas, em função da necessidade de reviver o trauma. Para a advogada, esse impacto chega direta e pessoalmente, sobretudo quando a advocacia praticada envolve escuta ativa, acolhimento e uma abordagem humanizada. O desafio psicológico inicial reside aí: como manter a empatia e a conexão com a cliente sem se envolver emocionalmente a ponto de prejudicar sua própria saúde mental? 

Os desafios se tornam ainda maiores quando observamos que advogadas da área são frequentemente vítimas de ameaças, tanto explícitas quanto veladas. Há inúmeros relatos de profissionais que tiveram seus escritórios vandalizados, pneus estourados, e que receberam ameaças de morte ou violência sexual contra si ou seus familiares. 

Além disso, os advogados da parte contrária, rotineiramente, utilizam o processo não como um meio para solucionar a questão jurídica, mas como uma forma de vingança. Para isso, recorrem a estereótipos machistas e misóginos, tachando a profissional de exagerada, e reproduzindo discursos de que esta “odeia homens” e que se remunera “arrancando dinheiro de homens”. Essas estratégias são usadas para manter o controle sobre a vítima e enfraquecer a defesa. 

Outro fator que agrava o impacto psicológico na advocacia feminina é o uso abusivo do judiciário como forma de retaliação. Advogadas são frequentemente alvo de processos infundados, movidos pelos abusadores ou seus defensores, com o claro objetivo de intimidá-las e desgastá-las emocional e financeiramente. Alegações falsas, questionamentos à moralidade e a saúde mental da advogada e a interposição de recursos de má-fé são comuns, prolongando o processo de forma desnecessária e estressante. 

A violência contra as advogadas também vem de dentro do próprio sistema. O judiciário, reflexo de uma sociedade discriminatória (machista, lgbtfóbica, racista, capacitista, entre outros), frequentemente ignora ou desrespeita as diretrizes estabelecidas para garantir uma justiça equitativa, como é o caso do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero.

Quando uma advogada solicita a aplicação dessas diretrizes, muitas vezes é ignorada ou rotulada negativamente, não se permitindo, assim, que a advogada exerça seu trabalho de forma plena. O descaso é evidente mesmo com a Resolução CNJ nº 492/2023, que torna obrigatória a aplicação dessas diretrizes. 

Além disso, muitas advogadas são processadas por se posicionarem publicamente contra práticas abusivas, seja nas ações, na vida pessoal ou nas redes sociais. Elas enfrentam processos movidos por juízes, promotores, delegados, entidades de classe e até por colegas de profissão, numa evidente tentativa de silenciar suas vozes.

Esse uso abusivo do judiciário e de instâncias disciplinares têm um impacto devastador, tanto psicológico quanto financeiro, e desestimula denúncias legítimas, perpetuando a impunidade e fortalecendo a cultura do silêncio e do medo. 

Em um contexto em que as advogadas ainda lutam por paridade dentro do seu órgão de classe, essas ameaças e ataques se tornam uma tentativa de deslegitimar suas pautas e impedir que questões importantes, como o combate à violência contra as mulheres, sejam levantadas. O desgaste psicológico é profundo, e o sistema, além de não apoiar as profissionais, frequentemente as silencia.


Este texto faz parte da Cartilha Violência Psicológica Contra a Mulher, produzida pelas organizações da Aliança Pelas Mulheres (APM).

Sobre a APM 

Aliança Pelas Mulheres (APM) é uma coalizão de organizações que atua na promoção dos direitos das mulheres através de advocacy, eventos, pesquisas e a promoção de conscientização sobre violência de gênero.

A coalizão nasce do entendimento que as violências contra as mulheres e a estrutura patriarcal da qual elas nascem, sempre atreladas às estruturas racistas e classistas, são um problema complexo e que, portanto, depende de múltiplas soluções.

Ainda, a coalizão entende que a diversidade do Brasil, com suas múltiplas regiões, costumes e desigualdades, também deve ser observada ao construírem-se ações coletivas que visem a promoção dos direitos das mulheres, usando da interseccionalidade como método para pensar ações e estratégias de educação, prevenção e enfrentamento à todas as formas de violência contra as mulheres. 

Formada por organizações e consultoras residentes nas 5 regiões brasileiras, com atuações nas áreas do direito, assistência social, comunicação, educação em direitos humanos, pesquisa e psicologia, a APM traz um olhar sobre gênero multiprofissional e com foco nas interseccionalidades entre raça, classe, gênero, origens geográficas e outros marcadores sociais.

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  • Camila Rufato Duarte

    Advogada formada pela Universidade Federal de Viçosa, especialista em Direitos das Mulheres e em Direito do trabalho; Id...

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    Advogada civilista, Doutoranda e Mestre em Ciências Sociais pela UFJF, especialista em Direito Civil pela PUC-MG, Integr...

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