A infância da indígena Bororo, Majur Harachell, 33 anos, a primeira cacica trans do Brasil, foi marcada por longas caminhadas atrás de água. À época, a aldeia Apidu Paru, no território indígena Tadarimana, em Rondonópolis, no Mato Grosso, não tinha acesso à água potável encanada.

Essa era a razão pela qual Majur, desde os cinco anos, teve que se unir aos pais e irmãos em caminhadas de dois quilômetros cada para ajudar a buscar água em galões de 20 litros. A família percorria seis quilômetros por dia em três caminhadas de dois quilômetros cada, distribuídas ao longo do período da manhã. Eram, ao todo, seis horas de caminhadas diárias. “Não tinha energia, não tinha estrada, não tinha nada, mas a gente tinha que caminhar, porque [água] é saúde né,” relembra.

A falta de acesso à água potável fazia com que o risco de contrair doenças infecto-parasitárias fosse iminente. Na aldeia Apidu Paru vivem 16 famílias ou aproximadamente 80 pessoas. Para se ter uma ideia, em 2018, foram registrados 73 casos de doenças de veiculação hídrica. A realidade da família de Majur e de toda população local começou a mudar, em 2019, quando a comunidade recebeu um poço artesiano.

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A água é bombeada do poço para a caixa de água por uma bomba movida a energia solar | Crédito: Arquivo pessoal Majur Harachell.

Essa tecnologia tem a capacidade de acessar água nos lençóis freáticos a centenas de metros de profundidade. Há alguns tipos de poços artesianos que dispensam o uso de bomba. No caso das tecnologias instaladas na aldeia, a bomba é usada para levar a água até os reservatórios de onde o líquido segue para as torneiras das casas da comunidade. A água é bombeada até a superfície e distribuída para os reservatórios de onde é distribuída às torneiras.

Esse primeiro poço foi instalado na comunidade pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Ele possui 60 metros de profundidade e um reservatório de 3 mil litros.

“[A vida das famílias] mudou muito, porque cada um tinha as suas torneiras em casa e a água chegava sem precisar buscar na mina. Fez bastante diferença porque água é essencial para a vida”, avalia Majur.

A instalação do poço não oferecia vazão e reservatório suficientes para suprir toda demanda da comunidade. “Esse poço ajudou muito, mas ainda tinha pouca água para atender a todos”, avalia. Assim, Majur, que já havia se tornado cacica, uniu-se aos líderes das outras oito aldeias para reivindicar na prefeitura a instalação de novos poços.

O território Tadarimana possui 604 habitantes da etnia Boe bororo, distribuída entre as aldeias Pobore, Apido Paru, Praião, Pobo Jari, Jurige, Areme Ewororo, Jokurea e Divisa. Como resultado das reuniões, a prefeitura de Rondonópolis instalou quatro poços artesianos de 400 metros de profundidade, com bomba de sucção, movida a energia solar, reservatórios de 15 mil litros e sistema de distribuição da água até as torneiras.

Os poços artesianos podem garantir entre 500 L/h e 4.000 L/h, dependendo da vazão do lençol freático. De acordo com o chefe Substituto de Atenção à Saúde Indígena do Distrito Sanitário de Saúde Indígena de Cuiabá (Dsei Cuiabá), Alírio Guimarães, a água captada pelos poços passa por análises periódicas. “São realizados testes de potabilidade com periodicidade de 30 a 45 dias pelo Programa de Monitoramento da Qualidade da Água”, informa. Segundo ele, sempre que são feitas melhorias no saneamento básico, “há redução de doenças de veiculação hídrica, a exemplo da diarreia”, complementa

Os poços artesianos livraram as famílias das longas e árduas caminhadas atrás de água, assim como reduziu o número de doenças de veiculação hídrica, como comprovam dados enviados pela assessoria de imprensa do Ministério da Saúde ao Sebrae. Por meio de nota, o órgão informou que, em 2019, no mesmo ano da instalação dos poços artesianos, a aldeia Tadarimana registrou 52 casos de doenças de veiculação hídrica.

Em 2023, até o dia 22 de dezembro, haviam sido registrados nove casos, o que representa uma redução significativa. Ainda de acordo com a nota, são exemplos de doenças causadas por consumo de água contaminada cólera, amebíase, diarreia, febre tifoide, hepatite aguda A.

Nós solicitamos dados sobre os testes realizados na água fornecida à aldeia nos anos anteriores e posteriores à instalação dos poços artesianos. A assessoria informou que só foram encontrados relatórios de análise da água referentes ao ano de 2022.

Segundo o documento foram identificadas as seguintes bactérias na água Coliforme total e Escherichia Coli, o que fez com que a água não atendesse aos padrões microbiológicos, conforme a portaria 2.914/12/2011/Ministério da Saúde.

A nota informa que, diante do diagnóstico, a Sesai adotou “medidas imediatas como lavagem de caixa de água e reparo na rede hidráulica”. O órgão observa que “por conta da pandemia, em 2020 e 2021, houve comprometimento das necessárias ações de prevenção, por limitação do acesso às aldeias.”

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Antes, Majur ao lado da família e outros membros da aldeia, caminhava 6km por dia para buscar água, agora, o líquido está mais perto, na torneira das casas das famílias da aldeia Tadarimana | Crédito: Arquivo pessoal Majur Harachell.

Testes comprovam a eficiência dos poços

Até que os poços artesianos chegassem, Majur e os demais membros da aldeia já não contavam mais com a mina para buscar água. Eles acessavam água por duas fontes. Usando um barco, eles buscavam água na casa de um ribeirinho, que morava próximo à área urbana. “A gente dava três viagens de barco, cada uma levava 40 minutos”, recorda Majur.

Para complementar a aldeia central, nome dado à aldeia Tadarimana, enviava carros pipa para abastecer a comunidade. “O nosso telefone ficava sempre carregado para quando faltasse água, avisar lá na [aldeia] central e eles mandarem o carro pipa”, informa.

Ambas as fontes não ofereciam regularidade e exigiam bastante esforço. Por exemplo, se faltasse combustível ou o barco quebrasse, não era possível buscar água na casa do vizinho. Da mesma forma, havendo qualquer dificuldade de comunicação com a aldeia central, o carro pipa demoraria a chegar.

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Majur Traytowu é a primeira cacica trans do Brasil | Crédito: arquivo pessoal Majur Traytowu.

Muito trabalho pela frente

Majur avalia que a necessidade de água dos moradores está suprida, porém a aldeia ainda possui necessidades básicas as quais ela afirma estar priorizando como cacica. Para isso, ela conta que largou o cargo de agente comunitária de saúde para se dedicar exclusivamente à liderança do povo.

“A gente ainda precisa de casa. Na saúde, faltam medicamentos no posto da Central, remédios básicos para dor, tosse, pressão alta”, afirma

Fizemos contato com o Ministério da Saúde para saber sobre a falta de medicamentos no Pólo-Base de Rondonópolis citado por Majur. Segundo a assessoria de imprensa do órgão, “houveram atrasos no processo licitatório que comprometeram o estoque de medicamentos destinados à etnia, nos últimos dias.”

A assessoria também informou que “uma nova licitação foi concluída no dia 17 de novembro, pelo Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Cuiabá para aquisição de medicamentos. Com isso, os estoques serão normalizados em breve”, diz a nota.

A cacica divide o trabalho em prol de melhorias para a comunidade com o enfrentamento ao processo de adaptação dos indígenas e ao preconceito dos não indígenas, presentes em reuniões e seminários os quais frequenta. Em muitos rituais e atividades coletivas da comunidade, mulheres e homens se separam ou cumprem papéis diferentes. 

“Nos rituais fúnebres da aldeia, mulheres e homens se separam em grupos. Eu fico com a minha mãe, mas esperavam que eu ficasse com os homens.” Para muitos membros da aldeia, Majur, que até o ano de 2015, se identificava como homem cis, deveria ficar em meio aos guerreiros, como são chamados os homens da etnia.

Os desafios na aldeia se estendem à militância em prol de mudanças para os parentes, ou seja, membros da etnia. “Às vezes, o pessoal recebe um convite para um evento só com mulheres da comunidade e esquecem de me chamar. Fico triste, pois fazem isso porque ainda não se acostumaram com o fato de que sou mulher,” afirma Majur.

Revendo séculos de costumes e tradições, Majur vem sensibilizando o povo sobre o seu novo gênero. Ela reconhece os avanços que o acolhimento prestado pelos parentes representa, mas sabe que há um longo caminho de adaptação a ser percorrido. Em meio aos desafios, a jovem cacica vem lutando ativamente pelos interesses da comunidade. “Eu me sinto mal porque ainda não existe um debate [sobre transexualidade] muito comum na aldeia”, desabafa.

Entre os não indígenas, a indígena esbarra na intolerância, o que torna a busca por melhorias para a comunidade ainda mais árdua.

“Quando eu me apresento na reunião, as pessoas se espantam, ficam olhando paradas, sem entender. Eu costumo dizer que a gente sofre preconceito duplo: como pessoa trans e como indígena”, destaca.

Majur diz não se abalar com as reações do público e já conquistou diversos benefícios para a comunidade. “Já conseguimos acesso ao Vale Gás e quero conseguir muito mais [para aldeia]”, relata.

Ela conta que ainda arruma fôlego para auxiliar outras indígenas transexuais, que ainda se sentem inseguras em expor o gênero com o qual se identificam. “Eu converso com muitas meninas, incentivando elas a se assumirem, botar a cara no mundo. A gente tem que lutar e mostrar que a gente existe e resiste”, afirma.

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  • Adriana Amâncio

    Jornalista, com mestrado profissional em marketing digital. Possui 15 anos de experiência em assessoria de imprensa e re...

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