O caso de Alyne Pimentel é o primeiro caso individual levado a um órgão de direitos humanos da ONU, a Convenção para a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW). Alyne era uma jovem negra de 28 anos, moradora da Baixada Fluminense (RJ) que, em 2002, na 27ª semana de gestação, teve sua vida ceifada pela morte materna.

A história de Alyne Pimentel se insere no contexto de morte materna, desfecho que atinge, principalmente, mulheres jovens, negras, pobres, periféricas, de zona rural, das regiões norte e nordeste do Brasil. Em escala global, são as mulheres dos países do sul as mais atingidas por esta mortalidade.

Lembrando que a morte materna é evitável em 90% dos casos. Mas isso seria aplicado para sociedades racistas patriarcais que definem o viver e o morrer pela égide do genocídio antinegro? 

A morbidade e a mortalidade maternas evitáveis são um indicador de valorização da vida das mulheres. Nesse sentido, é grave a violação dos diretos humanos das mulheres, que as afeta e a suas famílias em todas as regiões e culturas, e que é acentuada por fatores como pobreza, gênero, desigualdade, idade e múltiplas formas de discriminação, bem como fatores como a falta de acesso a instalações e tecnologias de saúde adequadas e a infraestrutura.

A vida e morte de Alyne é semelhante às histórias de muitas mulheres negras que sofrem muitas barreiras individuais e institucionais na busca pelo atendimento no momento do parto ou para finalizar um aborto.

O que as mulheres negras sofrem é racismo obstétrico, de acordo com Dána-Ain Davis, Varner Cheyenne e Dill LeConté J, que é um mecanismo e práticas de subordinação, baseado nas histórias de racismo antinegro durante a gravidez, o pré-natal, o parto e o puerpério. Segundo as autoras, o racismo obstétrico apresenta sete dimensões: lapsos diagnósticos, negligência, descaso ou desrespeito, causar dor intencionalmente, coerção, cerimônias de degradação e abuso médico.

A história de Alyne se enquadra nessa experiência de racismo obstétrico, assim como a experiência de Naomi Musenga, 27 anos, que morreu porque suas chamadas no serviço de emergência ficaram sem resposta e, ainda, foram objeto de zombarias. Esse caso lança luz sobre a discriminação racista no território Frances, relato trazido por Françoise Vergès no livro Um Feminismo Decolonial, onde ela fala das desigualdades no acesso, dos maus tratos e da indiferença sofrida pelas mulheres racializadas no pré-natal, no parto e no pós-parto.

O caso Alyne Pimentel se tornou uma agenda de denúncia e de ação política por parte dos movimentos feministas e de mulheres negras, se transformando emblemático do ponto de vista do reconhecimento dos direitos reprodutivos no Brasil, na América Latina e no mundo, dando visibilidade às graves injustiças relativas à mortalidade materna, atentando para as violações dos direitos reprodutivos e para o racismo e a violência institucionais no acesso à atenção obstétrica no país.

Atuações consolidadas pelo movimento de mulheres negras na agenda dos direitos reprodutivos e contra a esterilização compulsória ao longo de mais de três décadas, forneceram subsídios para uma análise do caso Alyne Pimentel, que toma em conta a existência do racismo e suas manifestações na relação com outras formas de discriminações.

Os movimentos de mulheres negras têm uma atuação singular na luta pelos direitos reprodutivos, visto que a experiência de viver sobre a égide do racismo apresenta outras dinâmicas e demandas nas agendas dos direitos humanos.

Neste sentido, o movimento busca a justiça reprodutiva que emerge das experiências de mulheres negras que vivenciam um conjunto complexo de opressões e hierarquias reprodutivas. Baseia-se no entendimento de que os impactos das opressões de raça, classe, gênero e de orientação sexual não são aditivos, mas integrativos, produzindo esse paradigma de interseccionalidade.

A justiça reprodutiva amplia o olhar sobre os direitos reprodutivos porque apresenta conjuntamente os direitos humanos e a justiça social para o exercício pleno da saúde reprodutiva. E o caso de Alyne Pimentel apresenta múltiplas opressões e violências que se entrecruzam, dentre eles o racismo institucional, que é um determinante social e estrutural do processo de saúde-doença da população negra, comprometendo o acesso aos serviços de saúde reprodutiva das mulheres negras. 

A falta de acesso adequado à assistência obstétrica de emergência e as demoras injustificáveis na transferência e no tratamento ainda permanecem na atualidade da atenção às mulheres na saúde materna. As discriminações de diversas formas têm se apresentado como fator determinante à situação de vulnerabilidade, principalmente para as que vivem em situação de pobreza, de periferia ou zona rural, negras e jovens – perfil semelhantes ao de Alyne Pimentel.

As barreiras estruturais e institucionais na atenção obstétrica são determinantes e resultam nos altos números de óbitos maternos no Brasil. Alyne foi uma das vítimas destas barreiras que atuam de forma sincrônica e interseccional, no entrecruzamento de raça, gênero, geração e classe.

Após mais de 20 anos da morte de Alyne, o Estado brasileiro avançou lentamente na agenda dos direitos reprodutivos e na atenção integral à saúde sexual e reprodutiva.

Em momentos de retrocesso político e de crise sanitária, são as mulheres negras as principais vítimas de morte materna por Covid-19, chegando a 70% em um país que esteve no topo das mortes maternas ocasionadas pelo vírus.

A morte materna é evitável para corpos não racializados. Por isso, para que o alcance da saúde sexual e reprodutiva e de maternidades desejáveis seja pleno, é preciso promover justiça reprodutiva. Que o índice de 90% seja de casos em que se evitou efetivamente a morte materna de todas as mulheres e pessoas que gestam, e não de diagnóstico do que poderia ter sido feito e não foi.

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  • Emanuelle Goes

    Emanuelle Goes é doutora em Saúde Pública com concentração em Epidemiologia (ISC/UFBA). Realizou Doutorado Sanduíche na...

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