O ano legislativo começou e em Brasília parlamentares tomaram posse dos mandatos num Congresso em reabilitação pós-destruição dos atentados antidemocráticos da extrema direita. Entre as tantas as urgências a deliberar, há uma que toca o plano linguístico e apesar de mais silenciosa é uma emergência democratizadora inadiável. Trato da renomeação da constitucionalmente chamada Câmara dos Deputados para Câmara Federal ou Câmara das Deputadas e dos Deputados, tema de inclusão e equidade, entrelaçado ao simbolismo do Brasil real que subiu a rampa do Planalto inaugurando 2023, e por isso mesmo uma oportunidade histórica para esta legislatura.  

O tom androcêntrico e elitizado do topo da hierarquia política transborda em processos de exclusão e apagamento das mulheres e da pluralidade, suas agendas e experiências. A herança cultural que centra no homem o protagonismo narra o mundo no masculino, omitindo a presença feminina (especialmente das mulheres negras, indígenas, trans) e, no caso da Câmara, nega às parlamentares o direito à existência política.

No nome e na prática, o todo designado deputados captura a identidade das deputadas, incorporando-as sem menção. Como uma cena de filme que enquadra um rosto e desfoca os demais, as palavras também fixam o que deve ser notado.      

A linguagem é um dos instrumentos mais sutis e estáveis de legitimação de padrões e práticas sociais, por isso mesmo acompanha a assimetria de gênero/raça/diversidade nos espaços de decisão, impondo o masculino como norma na palavra, no conceito e no imaginário. É um camuflado obstáculo à atuação política feminina plural e se soma às barreiras do próprio sistema político e às multidimensionais, derivadas das desigualdades estruturais que as sobrecarregam, exaurindo a disponibilidade de tempo, de recursos, e de estímulo, num cenário agravado pelos estereótipos que as acompanham, pelo racismo e pelas tantas situações de violência política que vivenciam.

A forma como nomeamos a realidade altera a nós mesmas e ela própria, por isso disputar a linguagem é necessariamente disputar o poder. Passados 90 anos da conquista do direito inconcluso das mulheres a votar e serem votadas não é cabível a manutenção de um nome institucional excludente.

Ao menos não inocentemente. As palavras dão sentido e orientam a nossa compreensão sobre o mundo, interferindo diretamente nele, na medida em que preservam ou enfrentam opressões. 

O rebatismo exige alteração do artigo 44 da Constituição Federal que nomeia a composição do Congresso Nacional. Câmara Federal parece uma opção mais abrangente e conectada à nomenclatura do Senado Federal e das casas legislativas nas cidades, as Câmaras Municipais. Ainda assim, nominar Câmara das Deputadas e dos Deputados também é democrático, impulsiona direitos e repara prejuízos simbólicos. 

Independentemente da escolha, ela desagua numa renovação em cascata, desde a referência às parlamentares, via flexão de gênero e outros recursos linguísticos, em placas de identificação e sinalização, comunicações internas e externas, nos regimentos e normativos, até as relações interinstitucionais. Desafiará especificamente a imprensa corporativa a superar as resistências para adaptar-se(democratizar-se), num aprendizado que alcança toda a sociedade. Não se trata apenas da troca do nome, mas da ressignificação da imagem, da (auto)percepção sociopolítica.

Este avanço já está em curso na América Latina. Em 2021 o Chile reconheceu o trabalho das parlamentares e das mulheres que atuam na política e alterou o nome da Casa para Camara di Diputadas y di Diputados, onde elas ocupam 35% das cadeiras. O projeto nasceu na Comissão de Igualdade de Gênero da Câmara e após muitos debates resultou numa mudança ampla, com nova logomarca, registro nas redes sociais e em transição nos regimentos. Vitória superlativa, que só será dimensionada no médio prazo. 

O México atingiu a paridade de gênero na casa baixa em 2014 e desde 2019 reformou a constituição para aplicar a regra paritária também no executivo. O nome da casa ainda é no masculino, mas, diferentemente do Brasil, a designação deputadas é feita sempre ao lado (antes) do nome deputados no site institucional, nas redes sociais e no regimento interno na Casa, paritariamente. 

As colombianas se sentam em 28% das cadeiras da Câmara, que tem nome comum aos dois gêneros, a Camara di Representantes, embora as referências mais específicas tragam o artigo masculino: “los representantes”. Avanços virão impulsionados pela eleição da primeira vice-presidenta negra da história do país, Francia Márquez, que não por acaso se apresenta pelo cargo flexionado, e assim é chamada. O Peru caminha em estágio semelhante: a designação é inclusiva, Congressistas da República, mas as referências pendem ao masculino: “los congressistas”, ainda que as deputadas representem 40% dos assentos. 

No Brasil de 2023 as mulheres estão em apenas 17,5% das cadeiras e essa histórica sub-representação dificulta a ampliação de direitos. As deputadas federais Erika Kokay (PT/DF) e Gleise Hoffmann (PT/PR) apresentaram em 2021 um requerimento propondo alteração do nome da Câmara para Câmara Federal como aprimoramento da democracia e diretriz afirmativa para o avanço da participação das mulheres na política. O texto pontua o valor simbólico de usar a própria língua para desfazer a referência de discriminação, em favor de uma designação que expresse um lugar para todas as pessoas. Sem surpresas, o requerimento não foi aprovado.

Não estamos falando de uma vogal, de repetição, ou sobre banalidades, resumindo as desculpas campeãs para adiar o debate. Trata-se sim de gramática, não àquele livro intransigente que usamos na escola, mas dela como organizadora cognitiva, como parte relevante da nossa forma de pensar, articular ideias e enxergar a realidade.

Mas é, sobretudo, um assunto de direito amplo, de democracia, inclusão, reparação e de promoção da igualdade substantiva, que passa por equalizar as oportunidades desde nascença, com disposição para criação de um entorno que permita a obtenção de igualdade de resultados.  

A maior presença de mulheres verdadeiramente diversas na política ativa uma linguagem de mais equidade, que reflete e impulsiona a própria presença. As negras, indígenas, periféricas, brancas, LBTIs, com deficiência, mais velhas, mais novas, gordas, magras, das águas, dos campos, cada experiência enriquece o vocabulário e o repertório do fazer político. Não somente na Câmara, em todos os ambientes de poder.  

A língua não é sexista, racista, preconceituosa. O uso dela, sim. A língua é aberta, viva, pulsante e seguirá incorporando e assumindo as palavras que nomearão a realidade que queremos construir. 

*Juliana Romão pesquisa a interseção entre gênero/raça, linguagem e política. Consultora em comunicação política, jornalista e mestra em Comunicação (UnB). É cofundadora e cogestora do projeto-ação Meu Voto Será Feminista, integrante da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma Política e da Frente Pelo Avanço dos Direitos das Mulheres. [email protected]

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