Sobre destroços
Neste agosto de 2018 uma nova etapa da luta contra a descriminalização e legalização do aborto ganha novos contornos no país. Com o movimento organizado das mulheres na Argentina dando um empurrão na América Latina, cresce a movimentação para discutir este tema tão importante através de argumentos baseados em pesquisas científicas, legislação e experiências de outros países que já trilharam este caminho e um debate mais profundo sobre saúde pública.
Aliás, um debate mais profundo é tudo o que não estamos conseguindo. Mergulhados em uma espécie de obscurantismo digno da Idade Média, a discussão fica em torno de clichês e dogmas religiosos, disputas de poder e agressividades gratuitas. Legisladores, administradores públicos e população em geral se debatem em argumentos sem embasamento, alimentados por discursos de ódio e um medo irracional de que a liberação do aborto significaria o símbolo de que perdemos nossa humanidade permitindo matar fetos indefesos país afora. Um candidato à presidência da República defender o armamento da população ou a execução de homossexuais não choca ninguém. Mas uma mulher poder decidir sobre o próprio corpo, choca. E muito.
Tudo retorna a um ponto nevrálgico em nossa sociedade: a educação. Em um momento histórico em que o governo federal protagoniza um verdadeiro desmonte da educação pública no país, em prol de uma mentalidade voltada à educação como mercado de lucro e dividendos, cada vez mais se faz necessário pensar em como a escola (seja ela da educação infantil à universidade) é um local fundamental para o desenvolvimento de uma sociedade. Pode criticar a vontade: dizer que a escola deseduca, ensina a decorar, é arena de preconceitos e bullying, etc. Mas, ainda, é o ambiente onde todos e todas nós, sem exceção, vivemos nossa maior experiência de socialização e expansão de mundos possíveis.
Querendo ou não, é na escola que aprendemos coisas básicas, como, por exemplo, que não pode morder o coleguinha ou é feio bater na amiga para conseguir um lugar melhor na fila da cantina. Não são apenas conhecimentos acadêmicos que os ambientes de ensino promovem: eles promovem um convívio com pessoas diversas, de faixas etárias diferentes, com histórias e referências completamente divergentes das nossas. Um lugar em que nosso desejo não é soberano, e que aprendemos que, para conviver em sociedade, precisamos domar certos ímpetos e desejos e aprender a viver juntos. Traumática ou não, essa experiência é muito valiosa.
Porém recentemente foi aprovada uma reforma do ensino médio que permite que a educação de jovens e adultos, por exemplo, possa ser feita mais de 50 % através de ensino a distância, online. Em entrevista recente o candidato absurdo à presidência, Jair Bolsonaro, defendeu a educação à distância desde o ensino infantil. Ou seja, a troca humana, o convívio, o aprendizado das diferenças, o entendimento do tamanho e medida do mundo vai se dar através de um professor virtual em uma tela. Sem hora do recreio, sem melhores amigos, sem briga na saída. Sem experiência, sem vivência, sem vida. Fábricas de emitir diplomas. Seres humanos que não passarão pela experiência básica de aprender a conversar, a fazer amigos, a se relacionar em comunidade. Em famílias cada vez menores, em cidades cada vez menos comunitárias, uma multidão de seres isolados que acreditarão piamente que a sua visão é a única forma de ver os assuntos da vida.
Por que a digressão sobre a escola, se o texto começa no tema do aborto? Porque está tudo interligado. O empobrecimento da experiência educativa e acadêmica, a fragilização do acesso à população ao estudo científico e ao convívio com a diferença, tudo isso contribui para que voltemos a uma espécie de obscurantismo supersticioso típico da Idade Média. Momento da história em que, não sendo acessível o conhecimento a todos, a população ficava a mercê da catequização através da religião e seus dogmas, passível de ser conduzida por discursos rigidamente controlados por uma moral dominante. O conhecimento não é só uma questão de acesso, você não educa simplesmente dando um livro a uma criança. Educa quando ensina a ler, ensina a interpretar o que aquelas palavras dizem, ensina a comparar a sua leitura com a dos colegas. Ensina que o mundo é maior que nós, que possui possibilidades infinitas, que podemos olhar para as estrelas mais distantes no espaço e para dentro da célula mais ínfima do corpo humano. Ensina qual o nosso devido tamanho dentro do planeta e da coletividade.
Quando se debate sobre o aborto, tal discussão deveria estar sendo feita através de pesquisas que comprovam a eficácia dos métodos, o impacto na saúde pública, análise de um comportamento histórico de controle do corpo da mulher, pesando a economia de recursos do Estado e analisando dados concretos de países que já adotaram essa legislação. Não uma conversa através de discursos religiosos inflamados, argumentos baseados em versículos da Bíblia conduzidos por políticos oportunistas querendo angariar eleitores por se mostrarem defensores da moral e dos bons costumes. Que a educação precisa ser revista em nosso país, isso é fato. Porém não perguntaram aos especialistas em educação, aos professores e alunos o que deveria ser feito. Perguntaram aos grandes conglomerados que promovem a educação como um grande business o que eles queriam para ganhar mais dividendos e passaram a entregar o destino de um país nas mãos de pessoas que só querem vender diplomas.
Talvez exatamente por isso não aprovemos a legalização do aborto. Talvez daqui a vinte anos, o resultado dessa educação que estamos vendo despontar em nossa sociedade produza debates ainda mais absurdos, ainda mais tacanhos e ainda mais dogmáticos. Por isso se você vê ao redor mulheres raivosas, brigando com unhas e dentes por poderem decidir sobre o próprio corpo ou o direito de não ser criminalizada, não revire os olhos, mas sim busque argumentos válidos, pesquisas coerentes e informações corretas que possam ajudar a tornar o debate ainda mais frutífero e não o usual show de ignorância que se vê nas mídias.