Com frequência, ouço denúncias de que há mulheres aceitando relações afetivossexuais não exclusivas por pressão. “Ela só está fazendo isso para não perder a relação”. Sim, já vi casos em que não foi iniciativa ou desejo daquela mulher, em que ficava evidente seu sofrimento, se rasgando por dentro para atender os desejos do parceiro. Na medida em que novos formatos relacionais se difundem, precisamos olhar para estas situações e entender, primeiramente, que o problema não está na poliafetividade, mas na conservação de papéis de gênero.

Por mais distante que possa parecer para muitas pessoas, cá do meu núcleo social não monogâmico feminista e gênero dissidente, os encontros com estes casos são exceção. Mas, por que parecem ser a regra do ponto de vista de muitas pessoas que fazem essa denúncia? Quando estou com pessoas que não conhecem a não monogamia e lhes explico meu modo de me relacionar, elas frequentemente respondem: “eu não conseguiria!”. Tenho certeza de que do seu ponto de vista, eu também não conseguiria e que minha vivência não tem a ver com o que estão imaginando. Olho para muitas relações do meio liberal e penso “isso não é o que eu desejo e, se fosse, eu também não conseguiria”.

Em contrapartida, vem tomando cada vez mais proporção uma não monogamia que vai muito além de “abrir a relação”, tendo em vista tudo o mais é preciso para não reproduzir dinâmicas relacionais que carregam violência e opressão. Partir para a poliafetividade sem repensar questões de gênero, na minha visão, é a fórmula para o sofrimento que incide, principalmente, em pessoas de recortes menos privilegiados.

Como poderia ser possível uma vivência poliamorosa positiva para um casal heterocis, por exemplo, que conserva a mentalidade padrão de que o valor dela, enquanto mulher, se dá enquanto for mantida como única pelo parceiro, e o valor dele, de sua hombridade, é tão maior quanto mais mulheres transar? Ser a única é constitutivo da mulheridade padrão, assim como a virilidade é para a hombridade, e o resultado dessa combinação é algo desastroso na poliafetividade.

Não à toa, na medida em que avanço em minha experiência e entendimento sobre não monogamia, fica cada vez mais insustentável a relação com pessoas que não estejam comprometidas com a desconstrução dos padrões de gênero.

Para além de formato relacional, a não monogamia como um referencial ético e político, significa, inclusive, a perda de privilégios para a masculinidade tóxica, pois coloca o dever do consentimento e da igualdade a respeito de ter múltiplas relações. Muitos preferem continuar com suas relações extraconjugais veladas, tão comuns dentro do que chamamos de monogamia, em relação às quais a masculinidade ainda é bastante protegida pela naturalização da ideia de que “homem não consegue conter seus instintos”. A monogamia é, muitas vezes, o refúgio daquele que não quer se revelar porque terá que renunciar a seus privilégios e submeter suas escolhas ao consentimento das pessoas com quem se relaciona, assim como partilhar com elas o direito de ter outros relacionamentos.

Não monogamia é a possibilidade de fazer escolhas relacionais de forma autônoma, mas é um equívoco pensar que, do ponto em que estamos, tudo se resolve quando “cada um escolhe o que é melhor para si”. O passo é anterior porque, muitas vezes, essa autonomia não está dada. Atribuir a resolução ao âmbito individual é desamparar, por exemplo, mulheres que estão sujeitas a ceder suas escolhas em prol dos desejos de suas parcerias. A construção da monogamia, enquanto sistema social, se entrelaça na construção de que mulher ama doando-se, ainda que isso as prejudique, de que seu amor se demonstra por meio de atos de serviço. Viver a poliafetividade por outras pessoas, e não por si mesme, pode ser uma experiência dilaceradora.

Por outro lado, como pode alguém que só teve referências monogâmicas em sua vida, que nunca conviveu com outras experiências, ou mesmo que não tenha estudo sobre o tema, ter condições de concluir que a poliafetividade não é para si?

Entendo que muitas descartem essa opção. Em contrapartida, vejo algumas pessoas com dificuldade de conceber que isso não é unanimidade entre as mulheres, que não entendem que a poliafetividade pode ser um desejo genuíno das identidades femininas. É estranho que não consigam conceber que nossa satisfação afetiva pode não girar em torno de ser a escolha exclusiva de alguém. Também é uma realidade marcante as mulheres que têm receio de assumir, propor ou revelar seus desejos desviantes das regras monogâmicas. É a mesma pressão social que as impele a deixar seus desejos de lado para atender os desejos dos outros.

Não tenho a menor pretensão de converter ninguém à poliafetividade – de imposição já basta a monogamia -, este é apenas convite à reflexão sobre nossos condicionamentos. Monogamia tem a ver com a naturalização de um modelo de relacionamento compulsório. Se há mulheres vivendo relações abertas por pressão, isso é a perpetuação da falta de autonomia sobre nossas escolhas cavada pelo patriarcado em torno do qual o sistema monogâmico se sustenta. Não monogamia é precisamente o contrário. Considerar que uma mulher que prefere se relacionar apenas com uma pessoa não é não monogâmica é tão equivocado quanto dizer que uma mulher é menos feminista porque se depila. A questão não é o número de pessoas com quem transamos, casamos, namoramos, não é sobre o ato em si, mas sobre a qualidade da escolha por trás dele. É nos apropriar do que uma prática significa para nós e fazer nossas escolhas com congruência.

Devemos falar sobre não monogamia na sua dimensão política e ética, não para convencer mulheres a terem múltiplas parcerias, mas para apoiar suas escolhas legítimas, seja por ter uma, várias ou nenhuma relação afetivossexual.

Ademais, além da questão de preferência individual, a poliafetividade pode significar experiências bastante distintas entre mulher cis, mulheres trans, mães, mulheres brancas, mulheres pretas. Ou seja, não basta abrir a relação e esperar que se aprenda com a experiência a lidar com os problemas, é preciso entender como as situações te atravessam na perspectiva do seu recorte social e das pessoas com quem se relaciona. É preciso juntar-se com semelhantes, é preciso rede de apoio. Uma mulher isolada em sua vivência e que, muitas vezes, só tem como referência de poliafetividade uma pessoa parceira que reproduz machismo sem se questionar sobre isso, está sujeita a achar que a causa da sua inadequação e sofrimento é ela mesma, que ainda é insegura e possessiva demais e que deve continuar aguentando até se tornar “evoluída” o bastante.

O jornalismo independente e de causa precisa do seu apoio!


Fazer uma matéria como essa exige muito tempo e dinheiro, por isso precisamos da sua contribuição para continuar oferecendo serviço de informação de acesso aberto e gratuito. Apoie o Catarinas hoje a realizar o que fazemos todos os dias!

Contribua com qualquer valor no pix [email protected]

ou

FAÇA UMA CONTRIBUIÇÃO MENSAL!

  • Bárbara Li Sarti

    Autora do livro Relatos Não Mono, disponível na Amazon, escreve sobre não monogamia no Instagram @barbarali.zabele

Últimas