Embora as estatísticas mostrem que a taxa de depressão entre mulheres cis casadas é significativamente maior do que entre as solteiras na mesma faixa etária, o casamento ainda é socialmente tido como marcador de sucesso de sua vida afetiva. Quantas vezes assistimos a amigas, ou a nós mesmas, recuperar a saúde emocional depois do rompimento de uma relação amorosa. Mas, mesmo não faltando evidências dessa realidade, grande parte das mulheres permanece engajada no sonho do casamento tradicional.

Ouvi o relato de uma moça solteira, 31 anos, cuja avó passou duas décadas sofrendo violência doméstica em seu casamento. Hoje, separada, a senhora diz que está em sua melhor fase e não quer “trazer homem pra dentro de casa, porque só dá dor de cabeça!”. Ainda assim, já declarou inúmeras vezes que a neta só vai receber suas louças caras e pratarias quando se casar. É o retrato de um Brasil onde 27% das mulheres cis já sofreram violência doméstica e 90% dos feminicídios são cometidos por maridos e ex-maridos, mas, ainda assim, onde permanece comum discurso de que só estaremos protegidas em companhia de um homem.

Abdicar da vida amorosa? Não agrada, nem parece possível. Não acredito que o equívoco está no afeto ou no apaixonamento, mas nas normas sociais que colonizam o significado do amor, mais precisamente o sistema monogâmico. Este sistema é mantido por ilusões e precisa delas porque somente o engano poderia sustentar tantas expectativas por algo que, na prática, não costuma ser assim tão vantajoso. A monogamia é a falsa promessa de felicidade, o amor romântico é a isca e o alvo é a mulher. Não estou questionando as duplas amorosas ou a escolha de estar apenas com uma pessoa, mas todo o significado que culturalmente protege e reforça este formato relacional, em detrimento de outras formas de organização das relações de afeto.

Foi construída e endereçada à mulheridade a ideia de que o núcleo familiar e o casal romântico cisheteronormativo a completariam e protegeriam totalmente, de maneira que nada mais seria necessário em sua vida afetiva. Assim, ela se isola da vida coletiva encerrando-se neste núcleo que é responsável por explorar seu trabalho, deprimi-la e violentá-la.

Quando não por ilusão, este sistema recruta pela coerção, vide a enorme pressão que sofremos quando ousamos negar o casamento, os filhos, ou a própria cisgeneridade e heterossexualidade.

Vale lembrar que a construção social monogâmica exclui pessoas trans e não bináries, bem como relações homoafetivas, uma vez que é destinada ao “núcleo reprodutivo”. Enquanto isso, mulheres trans lutam para sobreviver. Um dossiê do Ministério dos Direitos Humanos divulgou que mulheres trans e travestis têm até 38 vezes mais chance de serem assassinadas em relação aos homens trans e pessoas não binárias.

Quando digo monogamia, não falo das pessoas que escolhem a exclusividade sexual em suas parcerias, mas de uma instituição criada para assegurar o controle da propriedade privada, no qual a mulher também é posse. O cuidado doméstico e a reprodução são seus serviços não remunerados para manutenção da família, configurando a organização social necessária ao funcionamento do capitalismo. Na origem do sistema monogâmico, a exclusividade sexual foi uma norma imposta unilateralmente às mulheres para garantir a transferência da propriedade privada para os herdeiros “legítimos” do marido.

Com a luta feminista pela igualdade, a fidelidade começa a ser exigida também dos homens. Mas existe aí uma equação que não fecha. Quando o amor romântico diz “eu sou dele, e ele é meu”, parte de uma suposta isonomia entre os gêneros que, de fato, não existe. Dentro da normatividade binária de gênero, o “pertencemos um ao outro” jamais será possível porque, historicamente, o homem nunca foi propriedade da mulher e aquilo que o constitui enquanto sujeito homem aponta para o lado oposto.

Na realidade, “eu sou dele, mas ele não é meu – ele é da carreira, das conquistas, da secretária, da pelada de futebol no final de semana, da bebedeira no buteco com os amigos”.

O hipervalor do homem cishétero branco é também uma ilusão deste sistema: a figura autoconfiante e independente à qual, na construção da monogamia, foi atribuída a capacidade de prover tudo o que alguém precisa afetiva e materialmente. Entretanto, é visível um processo atual de desromantização deste personagem na medida em que avança a luta pela igualdade de gênero e começamos a nos colocar lado a lado e tornar possível nos avaliar sob os mesmos parâmetros, ao menos em parte. Esta figura já não é tão distante como era para a mulher encerrada na vida doméstica, para a qual foi absolutamente negado qualquer poder.

Se, por um lado, a mulher foi ensinada a ser iludida, ao homem foi ensinado o ilusionismo. Mas, por trás da performance de impenetrabilidade da masculinidade normativa, fica cada vez mais visível suas inseguranças, medos e seu característico despreparo emocional que aparece com evidência no relacionar. Não à toa, a falência do amor romântico acontece em concomitância à desromantização desta masculinidade, pois operam em associação.

As promessas monogâmicas são de fato muito tentadoras: a completude e o amor eterno e incondicional. Mas os meios que oferece não levam ao prometido. Como se completariam uma masculinidade que deseja poder e uma feminilidade que deseja afeto? Como seria possível a própria completude? Como poderíamos garantir amor, se a não obrigatoriedade é condição para que ele exista? Casamento é vendido como projeto de amor mas, na realidade, é projeto material, e o patriarcapitalismo tem um objetivo muito específico para ele.

O significado de amar para a construção social do ser mulher é a doação e o serviço, e a falácia da incondicionalidade do amor, tão eficientemente implantada pelo catolicismo, é aquilo que a impede de uma avaliação crítica nos relacionamentos.

Mas seria possível uma incondicionalidade unilateral? A indução ao amor abnegado retira sua possibilidade de fazer escolhas afetivas que também lhe sejam favoráveis.

A distância entre a expectativa criada pelo amor romântico sobre a vida amorosa das mulheres e a realidade estatística das uniões afetivosexuais na cisheteronorma, só mostra como a mentalidade vigente acerca dos relacionamentos opera como a própria narrativa gaslighting.

Obrigada aos meus afetos, Mar Marini e Lucas Fujisaka, que participaram e contribuíram muito para a construção desse texto.

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  • Bárbara Li Sarti

    Autora do livro Relatos Não Mono, disponível na Amazon, escreve sobre não monogamia no Instagram @barbarali.zabele

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