Vadia sem coração: reflexões sobre a não monogamia
Escritora inaugura coluna no Catarinas para falar sobre não monogamia e a autonomia de saber escolher.
Uma vadia sem coração era como me viam. Nunca queria namorar e, quando namorava, era porque essa era a única opção para continuar com a pessoa que eu amava. Nestas ocasiões, topava conviver com a sensação de estar presa. Até que encontrei o primeiro parceiro que me falou em “amor livre”. Me senti sortuda. Finalmente, não teria que abdicar da minha liberdade para viver em intimidade e profundidade com alguém.
Seguimos juntos preservando a possibilidade de estarmos com outras pessoas. Mas, desafortunadamente, preservamos também a perspectiva monogâmica centrada no casal: quanto mais nos sentíamos ameaçados pelas outras relações que surgiam pelo caminho, mais levantávamos barreiras de proteção ao redor da nossa. E a principal delas foi a presença constante na vida um do outro, justificando que nos amávamos muito e, ao mesmo tempo, encobrindo a intenção de não abrirmos brechas para que outras pessoas ocupassem espaço demais. Fixar os finais de semana só para nós já era uma solicitação antiga dele e, num momento de fragilidade, por medo de perder a relação, eu cedi. Eu trabalhava de segunda a sexta e o final de semana era, até ali, o momento quando, enfim, eu podia escolher fazer o que quisesse. Escolher.
A velha conhecida sensação de sufocamento estava de volta. Estávamos vivendo a tradicional convenção de que quando se entra num relacionamento você assina um contrato imaginário que divide a posse da sua agenda e corpo com outra pessoa.
Passar seu tempo livre, ou pelo menos a maior parte dele, com e parceire amorose é algo mais que esperado para a maioria de nós: é um dever. Foi aí que entendi que a liberdade que eu precisava não se restringia a ter sexo e afeto com outras pessoas, mas sobre a gerência das minhas prioridades.
Foi a partir daí que entendi que a monogamia é um sistema de regras que vai muito além da exclusividade sexual. Muitos tópicos fazem parte da cartilha: o casamento e a coabitação como único destino legítimo do que seria considerado um amor verdadeiro; a prioridade da relação sexoafetiva sobre relacionamentos de outra natureza, de maneira que, comumente, as amizades perdem espaço em nossas vidas e, às vezes, até são descartadas; o dever de compartilhar grande parte da privacidade e vida individual; o poder de vetar atividades e pessoas que ameaçam o casal; o dever da presença constante, ainda que virtualmente; a necessidade de sermos amades pele parceire mais do que qualquer outra pessoa do seu presente, passado ou futuro, para que consideremos esse amor digno e suficiente; e por aí vai. A monogamia diz que tudo isso é natural quando se ama verdadeiramente alguém, mas não acredito que seja uma questão de desamor o fato de ser tão comum não nos encaixarmos em todas estas regras. Mais plausível é que a regra não encaixe em nós e, desde que tenhamos condições para enxergar a convenção como tal e não como natureza inegável, podemos nos dar a possibilidade de repensá-la quando não faz sentido para nós. E enxergar não é assim tão simples, porque não se trata de uma tradição formada por mera força do hábito, mas de um sistema de controle a favor do patriarcado e, portanto, agenciado na cultura.
Junto à sensação de sufocamento, crescia também a dependência emocional, afinal, como ser independente se, na prática, minha vida estava centralizada em torno de uma pessoa? Alguns podem pensar que isso é coisa de relacionamento tóxico; eu digo que isso é o sistema monogâmico. Não estou afirmando que a multiplicidade de parcerias sexoafetixas seja uma obrigatoriedade para ser emocionalmente autônomo – relembre de quão ampla é a definição de monogamia a que estou me referindo -, mas sim, sustentar-se a partir de um conjunto de relações, não necessariamente sexuais, onde haja apoio mútuo, bem como encontrar motivos para viver que não dependam direta e especificamente de uma pessoa.
Dizemos “mulher, empodere-se, não deixe que um relacionamento retire sua individualidade”, como se essa fosse uma questão puramente de esforço pessoal, como se seu sucesso afetivo estivesse à sorte de encontrar boas parcerias ou, enquanto não as encontra, resistir na aridez afetiva da solteirice. Não estamos dando a devida importância para o fato de que todes, até as melhores intencionades, estamos sob a influência de normas relacionais que não colaboram para isso, pelo contrário.
Que compromisso é esse no qual é necessário um esforço tão grande para manter a individualidade? Alguns vão dizer que existem pessoas felizes na monogamia, mas, como diria Geni Nuñez, ao invés de dizer que são felizes por conta da monogamia, não seria mais apropriado dizer que o são apesar dela?
A monogamia é talvez um dos sistemas normativos mais naturalizados atualmente. É este sistema que, mesmo numa relação sexualmente não exclusiva, deu total legitimidade e autoridade ao pedido de meu namorado para que os fins de semana fossem nossos, para que eu concordasse com isso e, imagino, para que uma parcela leitora tenha pensado “ora, eles são namorados, não é pedir demais”. Eu não digo que esse tipo de agenda relacional, em si, é questionável, mas sua imperatividade. Cada pessoa tem suas preferências, mas a questão é que se estas preferências desviarem da normalidade monogâmica, sim, vai ser pedir demais. Nas discussões sobre liberdade e empoderamento de mulheres, precisamos falar da reprodução de padrões relacionais que não correspondem aos nossos desejos; precisamos falar dos desejos que nos foram incutidos por estes padrões e que não nos beneficiam.
Liberdade para ter múltiplos parceiros sexuais já é possível na solteirice do sistema monogâmico, ou mesmo nas relações extraconjugais sobre as quais as estimativas e o olho nu apontam mais como regra do que como exceção. Não monogamia se trata de retomar as condições para fazer escolhas conscientes, que estejam a favor de nossa autonomia, inclusive, quando se trata de escolher estar apenas com uma pessoa. Escolher.
Os termos “relacionamento aberto”, “poliamor” e “não monogamia” vem sendo cada vez mais comentados, e é importante diferenciarmos que este último não se trata de certos formatos relacionais, mas de um horizonte ético, teórico e político. Talvez a exclusividade sexual seja, em geral, a regra de maior peso na monogamia, que provoca mais inflamações e em torno da qual criou-se muitos tabus. Casais que têm o desejo de mais liberdade, geralmente, começam por aí. Mas, a exemplo da minha história, é muito comum que, com isso, iniciem uma jornada de dores e inseguranças sem aparente solução e, paulatinamente, percebam que não estavam presos apenas à exclusividade sexual, mas a muitas outras estruturas que enrijecem sua forma de amar e são diretamente responsáveis pela produção de muitas de suas dores. Enquanto não souberem identificar estas estruturas, suas escolhas na poliafetividade continuarão trazendo problemas insolúveis. Saber escolher.
Falar em não monogamia é falar sobre a autonomia de saber escolher. Agradeço ao Portal Catarinas pelo espaço que inauguro hoje para trazer este tema, e espero conseguir contribuir.