Em Pílulas de Discernimento, Joanna Burigo, mestra em Gênero Mídia e Cultura (LSE), conselheira editorial do Portal Catarinas e coordenadora Emancipa Mulher, traz pequenas notas informativas e analíticas sobre temas do cotidiano social e político que estão em debate nos fóruns das redes sociais.

Boneca

Eu queria mesmo entender por que mulheres querem tanto e gostam tanto de se parecer com bonecas que chegam a se elogiar mutuamente chamando umas às outras assim quando querem exaltar aparência.

Objetificação é o que o patriarcado mais faz com mulheres, e sucumbir é o que é esperado da gente. É daí que volta e meia lembro mulheres que colocar fogo no patriarcado obviamente tem um elemento de imolação. Mas este incêndio é tão saudável quanto libertador, e é também inofensivo para nós, pois é puramente simbólico.

É uma questão de escolher insistir na humanidade de nossos corpos em vez de se render à fetichização de nossa imagem.

Queria muito conseguir explicar, sem deixar dúvidas, o quão detrimental esse afã auto-objetificante é para nós todas, o quão fácil e urgente é se desapegar dele, e o quão poderoso é o resultado de insistir na nossa integridade.

A falha das ciências políticas

As ciências políticas vêm pecando em não incorporar, em suas análises e com o rigor devido, o backlash masculinista em resposta ao feminismo. Onde bradávamos “se cuida seu machista/a América Latina vai ser toda feminista”, responderam com Jack Donovanovismo. Há tanto trabalho pela frente…

Blá blá blá romântico

Torço o nariz pra qualquer blá blá blá poliamor-do-tesão porque a lógica casamenteira é a lógica do cuidado ofertado por mulheres. Enquanto não desfizermos esta lógica, toda e qualquer discussão sobre não-monogamia é cosmética.

Vejo muita gatinha gastando latim tentando ensinar sobre tesão e afeto nesse registro da não-monogamia, e me dá vontade de pôr no colo e dizer “deixa de ser tonta, amadinha”.

Afeto a gente exercita na vivência e na interação uns com os outros, e, internamente, com ou sem ajuda psicológica. Já discrepâncias de poder a gente resolve com consciência de classe e luta.

E monogamia é relação de poder para aquém e além e antes e depois de ser uma relação de afeto.

Menos baboseira pra acomodar o já onipresente desejo dos homens cis, e mais feminismo pra expandir o nosso direito de ser e existir e desejar sem que continuemos sendo sobrecarregadas com trabalho reprodutivo.

Lembrem da minha definição de patriarcado: um sistema multifacetado de dispositivos de proteção de homens cis. Fogo no patriarcado.

Fetiche

O patriarcado (supremacista branco e cisheteronormativo, ênfase em supremacista e  normativo…), como estrutura, se consolida por práticas fetichizantes. Reparem como os jovens místicos, o homem desconstruidão e a objetificação pela feminilidade enfatizada são fetiches, respectivamente, do mistério, da consciência de classe e do desejo.

Escolhas

Se talento fosse algo que a gente pudesse escolher, eu certamente teria escolhido o talento de fazer música e alegrar as pessoas, e não o de gerar desconforto ao revelar obviedades, historicamente eclipsadas por poder patriarcal, pela via da exasperação feminista com a força  hegemônica do entendimento de mundo que se escora neste sistema multifacetado de dispositivos de proteção de homens cis.

Monogamia e trabalho reprodutivo

Quando eu falo que a monogamia nunca valeu para os homens, me refiro obviamente às restrições da monogamia, e a homens cis em relacionamentos cishétero-centrados.

A monogamia, em si, sempre funcionou muito bem para os homens cis em relacionamentos com mulheres cis, sempre funcionou melhor para estes homens do que qualquer outro acordo e/ou contrato.

Estes homens sempre se privilegiaram da monogamia justamente porque as restrições da monogamia nunca se aplicaram de fato a eles, mas suas vantagens sim.

Quais restrições? Uai, exclusividade sexual. Quais vantagens? Uai, casa, comida e roupa lavada, cuidado e mais cuidado, para com eles, seus filhos e idosos e enfermos, e toda a estrutura emocional e familiar esperada de mulheres cishétero em acordos monogâmicos.

É daí que insisto: discutir não monogamia sem, ao mesmo tempo e com o mesmo peso, discutir divisão de trabalho reprodutivo… é RASO. Lidem aí.

Discernimento e feminismo, povo. 

Homens e trabalho reprodutivo

“(…) os números validam a tese de que as meninas são precocemente responsabilizadas pelo cuidado com o lar e com as pessoas. Assim, elas têm menos tempo para os estudos, lazer e atividades de desenvolvimento para a vida.” 

O trecho acima é de uma matéria do Estadão sobre uma pesquisa da Plan Internacional que comprova – como já o fizeram antes IBGE e PNAD – que meninas brasileiras realizam o dobro de trabalho doméstico em relação aos meninos. 

Homens que querem ser revolucionários deveriam largar mão da pantalona vermelha (referência àquele vídeo patético e autoindulgente do Tiago Iorc), do blá blá blá poliamor-do-meu-tesão, do orgulho ridículo pelo emprego da feminilidade (ênfase no orgulho ridículo), e passar a lavar mais louças e roupas, fazer mais comida, cuidar das crianças, idosos e enfermos.

Menos performance de desconstruído e mais ação de cuidado: este é o lugar do homem no feminismo, esta é a revolução mais ao alcance de cada sujeito individualmente.

Fórmula 1

No capacete do Sebastian Vettel no Grand Prix da Arábia Saudita deste domingo 05 de dezembro estava escrito #raceforwomen (em tradução livre, corra pelas mulheres).

O capacete do Lewis Hamilton, mais uma vez, levou as cores do arco-íris da bandeira LGBTI+, mas essa é a primeira vez que vejo um piloto introduzindo mulheres nos seus discursos ativistas.

Ham The Man vem sacudindo a cisheteronormatividade supremacista branca na F1 há anos, e é sempre um alívio tão gostoso ver homens cis, em qualquer lugar, demonstrando aliança com afinco e usando a força de seus privilégios para reverter este injusto estado de coisas.

(Principalmente quando Max Verstappen continua agindo como o boy cis branco mimado tão típico deste que é o mais patriarcal dos esportes… Quando eu digo que o patriarcado é um sistema multifacetado de dispositivos de proteção de homens cis brancos, me refiro a coisas como a anuência da FIA com o papelão que esse garoto está fazendo esse ano).

The Economist

A revista inglesa The Economist  ao final de 2021 passou um pano fortíssimo na transfobia do comediante estadunidense Dave Chapelle, dizendo que a visão “realista” de gênero dele é mais conectada com o senso comum do que a visão científica sobre gênero. 

De realista o entendimento dele sobre gênero, bem como o entendimento corrente do senso comum, não têm muita coisa.

Essa perspectiva furada e atrasada só denota uma coisa real: o desejo narcísico de pessoas cis por um mundo onde seguimos sendo referência de normalidade.

O entendimento de gênero do Chapelle, e o do senso comum, são hegemonicamente patriarcais, não cientificamente corretos, muito menos inclusivos. É exatamente por isso que me dedico tanto a falar tanto, e infelizmente para mim, muitas vezes de graça, sobre isso. Houve um momento em que o entendimento do senso comum era que Sol girava ao redor da Terra, e não o contrário como cientificamente se comprovou já há bastante tempo, e que a escravidão era aceitável por ser legalizada, até que o ativismo de lutas ferrenhas de pessoas negras escravizadas mudou este estado de coisas.

Não contente com esse desserviço ao jornalismo e aos direitos humanos, agora a revista deu para culpar os impedimentos ao progresso verde nos ativistas sociais ambientalistas, sugerindo que os alertas e alarmes soados por esse pessoal, que genuinamente se dedica à produção e disseminação rigorosas do único conhecimento que potencialmente nos possibilitará continuar vivos como espécie neste planeta, é exagero.

O planeta Terra vai sobreviver muito bem sem a humanidade, e a humanidade, em toda nossa maravilhosa diversidade, viveria bem melhor sem essa revista, que um dia, talvez por ingenuidade, respeitei.

Plim plim

Tenho chamado de Padrão Globo de Intelectualidade o tanto de baboseira com verniz de modernidade, retórica da moda e estética de Instagram que leio pelas redes sociais.

Veneno anti misoginia

Esses dias estava xeretando o Instagram de uma celebridade internacional muito inteligente e bem sucedida e bonita, e me assustou a naturalidade com que ela disse que apesar de estar deprimida, com ansiedade paralisante e transtorno dissociativo, ao menos sua pele não precisava ser submetida a três filtros antes que ela pudesse postar uma foto de si mesma.

Não revelo quem ela é porque isso é realmente irrelevante; meus comentários e críticas (quase) nunca são sobre como cada mulher, individualmente, decide viver sua vida, e desejo às pessoas saúde, felicidades e longevidade, de coração.

Mas, como a feminista investida em desvelar o caráter patriarcal da feminilidade que sou, não deveria surpreender ninguém que seja sobre falas e ações daquelas/es que de alguma forma inscrevem feminilidades em seus corpos que vou tecer comentários.

Os desdobramentos do assombro que suscitou esta postagem são no mínimo dois.

Um, a relação cada vez mais intensamente fugaz entre imagem e materialidade – potencializada pelo amplo e financeiramente rentável business que sempre foi a reificação* da imagética de corpos femininos como fetichismo de mercadoria – sobretudo no Instagram. O outro, as linguagens que patentemente denotam submissão, e como elas são exatamente o que compõe muito do que naturalizamos como feminilidade.

Que mulheres naturalizem a exaltação da própria aparência em detrimento da própria saúde mental é um sintoma medonho da força hegemônica da objetificação patriarcal. Cada vez mais minha escrita é um apelo à nossa urgente humanização.

Não é que o patriarcado nos queira bonitas. Ele nos quer submissas e fracas, e a beleza vem sendo um caminho potente para esta misoginia. 

Desejo a nós muita sapiência e atenção, e muito amor por mulheres, essa coisa nada misteriosa que é tão positivamente e pragmaticamente articulada e ofertada pelo feminismo. 

* no sentido luckacsiano, para quem quiser entender melhor de onde parto

Proteção contra o patriarcado

Talvez algumas mulheres sucumbam à feminilidade enfatizada por usá-la como armadura de proteção contra a violência que emana da masculinidade hegemônica.

É um engano, no entanto, pensar que parecer mais palatável para o patriarcado nos protege. Não há proteção contra o patriarcado.

Há o feminismo, e outros venenos anti-misoginia, com que podemos derrubá-lo. A aprovação dos homens não nos confere nada, muito menos agência e autonomia. Mas o amor pelas mulheres — portanto, por nós mesmas, e não pelas imagens em que esperam que caibamos — nos fortalece na direção de alcançar as duas coisas.

All I want for Christmas

Tô igual ao John Cleese no Natal de 2005 (ou 2006, pouco importa):

querendo de presente este ano que todas as pessoas entendam que a ciência não é um sistema de crença, mas sim um método investigativo. 

Não é preciso nem desejável “acreditar na ciência”; mais vale confiar na eficácia ou veracidade daquilo que pode ser comprovado estatisticamente com rigor metodológico.

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  • Joanna Burigo

    Joanna Burigo é natural de Criciúma, SC e autora de "Patriarcado Gênero Feminismo" (Editora Zouk, 2022). Formada pela PU...

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