Em Pílulas de Discernimento, Joanna Burigo, mestra em Gênero Mídia e Cultura (LSE), conselheira editorial do Portal Catarinas e coordenadora Emancipa Mulher, traz pequenas notas informativas e analíticas sobre temas do cotidiano social e político que estão em debate nos fóruns das redes sociais.

Obituário do influencer

A definição do falecido Olavo de Carvalho como “guru intelectual do bolsonarismo” é engraçada.

A palavra “guru” significa “mestre” em sânscrito e, tanto na sua etimologia quanto nas tradições das regiões de onde termo e conceito são oriundos, o sujeito considerado guru é um sujeito que possui profundo entendimento de algum conhecimento, filosófico ou religioso.

O que Olavo de Carvalho possuía não era conhecimento profundo de coisa nenhuma, mas sim uma habilidade acima da média para o emprego de retórica sedutora com que emplacar sofismas.

No ocidente branco a palavra “guru” acabou sendo demovida de seu significado (como o ocidente branco tende a fazer com as palavras e conceitos vindos de qualquer outro lugar do planeta ou de sujeitos não brancos), e é utilizada para nomear líderes carismáticos, quaisquer sujeitos que tenham seguidores, inclusive e sobretudo pilantras arregimentadores de seita* que se auto-qualificam como oráculos.

Olavo foi esse tipo de “guru”.

Ele foi tão pioneiro dos influencers que até flerte com o caráter jovem-místico típico da nossa era ele teve: o pinta era astrólogo, lembram?

Seu talento máximo foi angariar o ressentimento, a raiva e os valores retrógrados existentes nos setores mais conservadores da sociedade brasileira e devolvê-los para as massas como cosplay de intelectualidade – ou seja, sob a forma de textos, mas a partir de pouco além de falácias e paralogismos. 

Essa acepção de “guru”, não como uma pessoa que dedicou anos de sua vida a estudar um tema de forma rigorosa a ponto de abraçar suas contradições, mas de quem se pensa superior e por isso no direito de insuflar audiências impressionáveis com platitudes proferidas sob a forma de conselhos, é perfeita para Olavo. Ele foi um embuste deveras eficiente na dissipação de engodo, um mestre da insidiosidade, um doutor da falcatrua.

Assim, chamá-lo de “guru do bolsonarismo” no sentido crítico da palavra “guru” é mesmo bastante acertado; ele foi um charlatão que manipulou massas na direção da eleição de um fanfarrão. Já a adição do termo “intelectual” nessa descrição me causa riso, pois o bolsonarismo é um efeito justamente da influência de picaretas que refutam o rigor da intelectualidade.

(É esse o meu obituário para a encarnação humana e piorada do personagem da TV Colosso, Malabi. Adeus, mala, bye.)

* Roubo essa descrição elegante do querido amigo Diogo Dias.

Matriz e força motriz

O patriarcado, sendo o sistema multifacetado de dispositivos de proteção de homens cis que factualmente é, é também a força motriz do capital, da supremacia branca, da cisheteronormatividade e do colonialismo, bem como matriz da maioria das instituições.

Aborto e transfobia

A criminalização* do aborto induzido é um impedimento crucial para qualquer possibilidade de equidade social para mulheres cis e homens trans. O feminismo que não tem como prioridade a luta pela descriminalização e regulamentação do aborto induzido é misógino e transfóbico. Misoginia e transfobia, notem, quase sempre andam juntes, visto que o patriarcado é um sistema multifacetado de dispositivos de proteção de homens cis.

* No Brasil o aborto induzido é crime com penas previstas de um a três anos de detenção para a pessoa gestante, e de um a quatro anos de reclusão para a pessoa que realize em outra pessoa o procedimento de retirada do feto. Em três situações específicas o aborto provocado não é punível pela Lei: (1) para salvar a vida da pessoa gestante; (2) quando a gestação é resultante de um estupro ou (3) se o feto for anencefálico.

Rigor metodológico > Slogans de redes sociais

Rigor metodológico consiste de, mas não apenas: pesquisa honesta que visa a obtenção de respostas factuais e não as que contemplam o desejo da pesquisadora, conhecimento acumulado com observação dos fatos e sistematizado com anotações minuciosas, evidências, revisão de pares. É demorado, e nem sempre popular.

Slogans de redes sociais são formados por, mas não só: disputas narrativas falaciosas, disputas etimológicas falsas, fetichizações e perversões do sagrado e teorias e práxis pautadas em identidade (raça, gênero, decolonialismo) e sofismas. Muitos sofismas. É o pior da cultura influencer, que sempre tem a popularidade como prioridade.

Nudez é empoderamento?

Nudez não é empoderamento. Mas também não é “desempoderamento”, por assim dizer.

A confluência entre liberdade e empoderamento é uma confusão que precisa ser desfeita, e abordada com muitos discernimentos, para aquém e além do moralismo sexual.

E como eu bem sei e muito expresso, discernimento é difícil de se fazer com a fragmentação do pensamento que se dá pela linguagem das redes sociais, que transforma tudo o tempo todo em dicotomia e disputa.

O que é empoderamento?

“Empoderamento” é um conceito bem elaborado e articulado pelo feminismo, particularmente pelo feminismo negro, mas que foi e continua sendo empregado tão levianamente como significante para tantos propósitos comerciais e políticos, e por tantas gentes e frentes diferentes, e para significar tantas coisas contraditórias, que ficou difícil articular qualquer crítica e comentário tangencial ao conceito sem, antes, estabelecer ao menos a resposta para a pergunta “mas o que é empoderamento?”.

Rainha Elizabeth

A Rainha Elizabeth é, acima de qualquer uma de suas muitas características positivas ou negativas, uma gênia da mídia.

Ela, afinal, assumiu o cargo mais importante de um reinado no momento de seu declínio, e mesmo com seu império ruindo e diminuindo exponencialmente, usou primeiro a BBC e depois toda a mídia britânica e global como plataformas para divulgar discursos cuidadosamente calculados em favor da manutenção da relevância de sua família, transformando-a na Família Real Oficial do Planeta Terra.

Repito: ela criou a maior mística da realeza da História nos mesmos anos em que este mesmo reinado entrou em decadência, e quanto mais decadente o reinado mais relevante ela tornou sua família. É impressionante.

Ligada nas evoluções do discurso social, ela participou ativamente de ações na Inglaterra em plena guerra contra o Nazismo, jantou com os Beatles, engoliu a popularidade da Princesa Diana, colocou mais de dez primeiros ministros para caminhar, revogou impedimentos para que os netos casassem com mulheres de fora da realeza (seu tio Edward teve que abdicar do trono para casar com a americana Wallis Simpson, o que fez de deu pai rei, e posteriormente, dela rainha), alegrou geral com sua entrada nas Olimpíadas de Londres numa esquete em que simulava pular de paraquedas com James Bond no estádio, e agora retirou de seu filho, Andrew, todos os títulos reais e militares após seu pedido de arquivamento de um processo civil que o acusa de abuso sexual ter sido negado por um juiz dos EUA.

Bethinha tem a mão firme no pulso da atualidade. A Inglaterra cada vez menor, e ela cada vez mais relevante. Admiro.

Isso faz dela uma feminista? Não. Ela está mais para influencer real, se pensar bem. Mas admiro gente talentosa. Discernimento, etc.

Educação não é propaganda

A quantidade de informações que empacoto nos meus textos e a variação léxica com que tento moldar minha retórica são meu jeitinho antipático de contrapor o vazio performático da cultura influencer, bem como o mau hábito midiático de limitar discursos evitando sinônimos e outros recursos que tanto contribuem para a redução da linguagem – o que tem por consequência a diluição da complexidade do próprio pensamento.

É uma boa estratégia? Não, se o objetivo é alçar voos rumo à popularidade.

Mas como meu maior interesse é oferecer educação emancipatória, e tendo em vista que não perco de vista que o desenvolvimento do pensamento crítico passa pelo confronto individual com ausências, faltas, falhas e desconhecimentos, e que essa inquietação propulsiona o buscar saber mais, insisto em pedagogias do desconforto.

Sofismas são feitos de manipulação retórica, e eu não aguento mais ver gente boa repercutindo falácias e nonsense sobre questões de identidade na esteira do emprego fetichista de termos dos estudos de gênero, raça e decolonialismo, que parecem importantes por serem apresentados com estética de gestão de marca, em cards criteriosamente formulados com paleta de cores e esquema de fonte reconhecíveis, mas que na melhor das hipóteses são paralogismos e, na pior e mais comum, não passam de marketing pessoal.

É importante lembrar que a redução da linguagem para facilitar entendimento não é uma função da educação, e sim da propaganda…

Assim, insistir no exercício da reflexão a partir da sede por conhecimento estimulada pelo levantamento de dúvidas é meu modo de combater a picaretagem pseudo-intelectual jovem-mística Instagramável Twitteira que cria, repete e performa slogans, se escorando em terminologias oriundas do pensamento feminista somente para pegar carona na temática da moda e fazer o texto parecer profundo, mas que não tem rigor, muito menos compromisso com a dura e indigesta tarefa de expor relações de exploração e poder — coisa que invariavelmente causa mal-estar, e não curtidas bem-quistas por algoritmos que significam retorno financeiro para os homens cis brancos que detém os meios de produção de conhecimento na era das redes sociais…

Pegar um dicionário para identificar uma palavra desconhecida, ler um texto sugerido para quebrar a cabeça tentando entender conceitos difíceis, enfrentar a própria ignorância, mudar de ideia, abrir o pensamento para contradições, tudo isso é desejável.

A gente vive um momento em que a repetição performática da expressão de outrem é considerado sucesso. Isso é literal no Tik Tok, por exemplo, onde prolifera essa prática, e é visível também nos desafios que volta e meia tomam as redes de assalto (são particularmente ofensivos e contraproducentes os “desafios” de sensualidade, visto que sensualidade, beleza e juventude não são conquistas, mas sim características de valores duvidosos frente ao desequilíbrio social causado pelo patriarcado…), e no compartilhamento viral de metafísica, fake news e teorias da conspiração, raramente equiparável ao alcance que têm os conteúdos produzidos com responsabilidade e critério.

Eu trabalhei com gestão de marca por dez anos, sei que é mais fácil, financeira e politicamente mais bem sucedido, criar conteúdo popular a partir de repetições. Mas isso só é inofensivo quando o objetivo único da tarefa é o entretenimento, como no programa infantil Teletubbies. Repetições simplistas para adultos quem faz muito bem é o cristianismo exploratório, os governos autoritários, os líderes de cultos, ou seja, aqueles que empregam táticas de propaganda para manter hipnotizado um público que os sustenta.

Combater o charlatanismo é fundamental em tempos de bolsonarismo e negacionismo, ambos cem por cento dependentes de sofismas, falácias, propaganda e públicos devotos.

Por redes feministas com menos “habalaxuria” viral e mais discernimento, conhecimento e coragem para tocar fogo no patriarcado.

Começou o BBB

Eu sou bem dessas que escreve “não assisto BBB mas…”. Odeio, e odeio desde o primeiro, então vou sim dizer que odeio BBB antes de odiar BBB ser modinha. 

Acho sem graça e roteirizado e editado para ser igual novela só que pior, acho infame, emburrecedor, chato, repetitivo, intrusivo, cafona, acho que tem o poder de dominar a pauta só com palavredo opinativo e ar quente sem oferecer nada interessante, acho predecessor dos aspectos que mais detesto nisso que chamo de cultura influencer, que sobrevaloriza carisma em detrimento de qualquer outra característica, e que vilaniza pessoas interessantes e heroiciza idiotas, que pasteuriza tudo e incomoda e atrapalha mais do que ajuda. 

O fato do Bial e do Leifert terem sido apresentadores por tanto tempo sintetiza o caráter sapatênis do sujeito universal que o programa reverencia. O BBB é o programa da Globo feito para a audiência do Quebrando o Tabu que assiste Globo.

O BBB é um produto elaborado por uma empresa privada que sabe como nenhuma outra se utilizar do discurso vigente para, como diz minha editora Paula Guimarães, “lucrar com ativo político”.

É um reality show e, como todo reality show, o prêmio é não só dinheiro, mas acima de tudo celebridade, e seus jogadores com sede de fortuna e fama são escolhidos a dedo para compor um elenco discursivamente contemporâneo, com potencial para mobilizar os afetos da audiência enquanto a convence de estar se engajando em debates relevantes.

Ainda sobre BBB

Em tempo: gostar ou não de BBB, assistir ou não BBB, comentar ou não BBB não faz de ninguém nem mais nem menos nada do que ninguém.

Inclusive se substituir BBB na frase acima por berinjela, Bach ou bailão cuiabano nota-se que gosto é gosto, e não critério de qualidade de humanidade.

A internet tem esse poder de fazer parecer uma boa ideia aglutinar as coisas para classificar a imensa gama de atividade humana em duas lógicas básicas que contém apenas dois termos e que encerram as pessoas nos dois polos destes termos. E isso de fazer de conta que só existem dois modos de qualquer coisa é imensamente mais chato do que o BBB.

É possível gostar das coisas e ser crítica delas ou não gostar das coisas e não ser crítica delas, é desejável não misturar gosto com capacidade de avaliação objetiva, e é especialmente tolo presumir que gosto e inteligência tenham relação de interdependência.

Expressão

Eu não prefiro nem escolho “escrever difícil”, muito menos escrevo na intenção de conferir complexidade ao que quero expressar. Se o que tenho para expressar parece complexo por escrito é porque o que tenho para expressar não é simplista antes mesmo de ser escrito. Meu esforço não vai na direção de dificultar textos sobre ideias simples; pelo contrário, me esforço para escrever o que possa facilitar entendimentos sobre fenômenos complexos.

A minha escrita serve à expressão de pensamentos que demandam, dela e de mim e da leitora, o exercício de reconhecimento de complexidade. Revelar nuances, confluências e confusões não é tarefa que possa ser feita sem mostrar essas nuances, confluências e confusões.

Ao escrever, não estou propositalmente tentando fazer com que meu texto pareça sofisticado, mas tampouco vou permitir que minha expressão se renda a simplismos que acabam por acachapar as nuances, confluências e confusões que estou tentando demonstrar. Fazer isso seria cancelar o propósito da minha escrita. Eu escrevo o que acredito que precisa ser expressado, e o faço da forma e com as linguagens que consigo.

Poemillennial

E para demonstrar que poemillennials são conteúdo de diário de adolescente, e não poesia, vou expressar meu bode fazendo um deles:

trocadalho do carilho
sente que mente?
senta: é de menta
sou prima da rima
e mostro minha plenitude
com platitude
em cosplays de atitude


É de cair o haiku da bunda.

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  • Joanna Burigo

    Joanna Burigo é natural de Criciúma, SC e autora de "Patriarcado Gênero Feminismo" (Editora Zouk, 2022). Formada pela PU...

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