(Impressões imprecisas de uma cena do espetáculo OUTROS, do Grupo Galpão, Teatro Ademir Rosa – Florianópolis, setembro de 2019).

Estava eu sentada em uma plateia lotada. LO TA DA. Na fila Q. Esquecera os binóculos, mas estava satisfeita, apesar do palco torto em relação ao meu campo de visão. O centro apontava para o outro lado, e não que a cadeira estivesse beeem no canto. Mas era mais pro canto. Tinha a sensação de estar em uma ópera assistida por leigos da música lírica, muitos outros silenciosos e cheios de expectativa. Mas o que tocava era uma banda de atores, ou músicos que atuavam. Ou atores músicos que a toda hora trocavam de instrumentos – o baixista tomava o lugar da baterista que começava a cantar louca e lindamente algo que parecia – mas não era – Pink Floyd. O baixo foi parar nas mãos de outra atrizmusicista, que logo abandonou o instrumento para dançar. O palco tinha fundo e chão branco, com uma parte redonda que podia ter sido tirada de uma pista de skate, mas para mim era um estúdio de fotografia, onde recortaram o fundo e fizeram um palco acima do palco. O da banda de músicosatores. Ou atoresmúsicos.

Literalmente, a banda aos poucos, lentamente, cai rolando palco adentro. Lindo. Agora atores, entre diálogos precisos – um jogando pro flautista que responde ao baixistabateristacantor que sai correndo e joga uma fala sem noção pra cantorabateristadançarina, que de repente… As falas vão se repetindo entre sins e nãos, pode ser, é necessário saber dizer não.

Uau. Dizer não. Silêncio.

A baixistadançarinacantoraatriz revela ao público todos os nãos e suas sutilezas, todos os nãos e seus diferentes significados, alguns nãos são incisivos, outros nãos tendem ao talvez, e não para, e se reiventa em nãos nunca repetidos, com caretas, mãos indicativas e corpo inquieto.

E o público esperou. Esperou. Esperou. Esperava um desfecho que não aparecia, que não vinha, e aquilo de tantos nãos começou a apertar a garganta, a cadeira apertada, as pernas sem espaço, a vida minguando de recursos, arte sendo demonizada, as pessoas ouvindo nãos, os sem salário – ouvindo nãos, as crushes e os maridos dizendo nãos. O dia e a chuva e a tempestade de nãos, que sorrateiros, impedem a vida de acontecer.

Como um murmúrio, uma onda se levantando devagar, a plateia começa a dizer não, e na crista da onda, antes de quebrar, explode do alto do desconforto uma voz potente, feminina:

“ELE NÃO!”

E a onda quebrou e o público, ainda que sentado, em todos os timbres, tons, sussurros, gritos e aos berros e num conjunto sem simetria foi dizendo: não. 900 pessoas expressando seus nãos. Para todas as intolerâncias, ressentimentos, humilhações, repressões. Não à falta de amor, de generosidade e abundância. Não, não, não, não à autoridade não consentida, à prepotência revestida de popularidade. Não ao profundo desrespeito às minorias políticas que nos são necessárias, legitimam nossas idiossincrasias, protegem nossos corpos, nossa natureza. Não aos armários entreabertos, ao beijo que deseja e rejeita. Não a tudo que devora sonhos e faz parar de rir.

Foi tão forte essa catarse que, nem a pau lembro como tanta gana… A onda foi baixando, ficando pequeninha e mansa até chegar na beira da praia, e quando se recolhe…

O silêncio refeito estava repleto de nãos ecoando pelas paredes e tetos e cadeiras e ouvidos e mentes e olhos e palmas.

Obrigada, Galpão.

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  • Chris Mayer

    Chris Mayer é fotógrafa, jornalista, escritora e palhaça. Dedica-se à fotografia de palco, dramaturgia cômica, crônicas...

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