“Tu gosta mesmo é de pau”, disse uma amiga enquanto eu desabafava sobre a minha relação com a mulher com quem divido a vida há dois anos. Embora eu estivesse chorando as pitangas de uma rotina desajustada pelo estresse, e dos nossos exames que vão de mal a pior com os hábitos que adquirimos em companhia, à minha amiga esses pareceram dados secundários, irrelevantes diante da heteronorma. Com a franqueza que só a intimidade nos dá, ela se sentiu autorizada a verbalizar o que muita gente pensa quando uma mulher bissexual se relaciona com outra mulher: daqui a pouco ela vai se dar conta de que precisa de um homem.

Prazer, eu me chamo Jess Carvalho, sou bissexual e feminista. Atuo como editora e estrategista digital no Portal Catarinas e, na academia, pesquiso as parcas representações da bissexualidade em jornais brasileiros. Neste espaço, vou falar de como até mesmo os veículos mais progressistas do país operam de modo a invisibilizar identidades não monossexuais como a minha, mas hoje eu vim de cara limpa para te contar que não é fácil andar na contramão da mononorma e te convidar para um passeio pela história da humanidade.

Antes de mais nada, precisamos combinar que a bissexualidade não é a identidade sexual da moda. Práticas bissexuais são relatadas desde a antiguidade, e nunca passaram ilesas pelo patriarcado. Na Roma antiga, o caráter libidinoso dos homens era favorecido, de modo que eles se viam autorizados a se relacionar também entre si, mas as mulheres tinham de se amar às escondidas. Na Grécia antiga, a bissexualidade também era normalizada – vide o mito do amor de Apolo por Dafne e Jacinto – mas até mesmo as relações entre homens e mulheres eram mal vistas, pois havia a crença de que as mulheres eram doentes e incapazes de manter o equilíbrio diante do amor, e por isso deveriam se tornar alvo de desconfiança masculina.

Nos primeiros séculos depois de Cristo, com a ascensão da Igreja Católica, a matriz heterossexual, emprestando o conceito de Judith Butler, começou a se solidificar e a correspondência sexo-sexualidade, presente no imaginário popular até a contemporaneidade, ganhou ares de legitimidade. O terceiro Concílio de Latrão, de 1179, passou a condenar o “sexo não procriador”, discurso largamente endossado pela ciência nos séculos seguintes.

O resultado da chamada diferença biológica dos sexos foi o reforço dos papéis de gênero e de vivência da sexualidade: esperava-se que pessoas com vagina fossem mulheres cisheterossexuais e pessoas com pênis fossem homens cisheterossexuais. Ainda se espera, e a serviço dos mesmos ideais cristãos, patriarcais e capitalistas: a manutenção da família tradicional, onde as mulheres são subalternizadas e instrumentalizadas para a reprodução.

É a partir desse contexto sócio-histórico que, no século 20, o termo bissexualidade começa a ser utilizado por ninguém menos que Sigmund Freud, o pai da psicanálise, para quem as mulheres estavam fadadas à inveja do falo, resumidas a uma vida de histeria após a descoberta da “castração”. Em seus estudos, nasce a falácia da bissexualidade como estado de dúvida, uma prematuridade que culminaria em uma decisão monossexual ao longo da vida.

É desta fonte que bebem os haters da bissexualidade, sempre dispostos a apontar suas réguas monossexuais para as nossas vivências, produzindo violência a partir de termos aparentemente inocentes e engraçadinhos como “bi festinha”. Cabe destacar que entre os propagadores da bifobia também estão gays e lésbicas, e que nem sempre encontramos acolhimento dentro da comunidade LGBT, o que é triste e solitário demais.

O não-lugar da bissexualidade

Tempos atrás, enquanto entrevistava Paula Silveira-Barbosa, pesquisadora da imprensa lésbica brasileira, perguntei se ela havia encontrado menção à bissexualidade nos periódicos dos anos 80 e 90 que estudou. Sua resposta foi afirmativa, e o contexto nos dá pistas do limbo ao qual as bissexualidades foram historicamente relegadas. Ela disse que algumas publicações tinham sessões de cartas das leitoras, e que nessas páginas a bissexualidade aparecia a partir de duas perspectivas: a do desconhecimento e a discriminatória.

Ao dar uma breve zapeada no Tinder, você certamente irá se deparar com a versão contemporânea do discurso de Freud. Gays e lésbicas avisando de antemão que não estão dispostos a se relacionar com pessoas bissexuais, pois as veem como potenciais ameaças, como se fossem bombas-relógio prestes a explodir em uma inevitável escolha heterossexual.

Não à toa, pessoas bissexuais se veem impelidas a negar seu histórico sexual e afetivo quando estão em relacionamentos, como se a monossexualidade fosse o único caminho possível para garantir segurança ao seu par. Assim, muitos de nós moldam suas identidades para caber nos limites do amor romântico, sem jamais se livrar do fantasma da monossexualidade: assim que surge a primeira crise, reaparecem as dúvidas sobre a genuinidade de nossos afetos e desejos.

(Nota: não estou inferindo que todas as pessoas heterossexuais, gays ou lésbicas são intrinsecamente bifóbicas. Estou dizendo que a bifobia, como outras formas de preconceito, também é estrutural. Além disso, reconheço que a falta de responsabilidade afetiva pode gerar desconfiança, mas há de se questionar por que essa desconfiança reverbera em bifobia. O meu desejo é que possamos estreitar nossos laços de empatia, cooperação e solidariedade).

Eu sou bissexual. Quando me relacionava com um homem, ainda que para ele a minha identidade sexual soasse como um convite ao threesome, não me furtava de dizer que sou bissexual. Agora que me relaciono com uma mulher, percebo que meu relacionamento é assombrado pelo medo da heteronormatividade compulsória, mas não abro mão de dizer que sou bissexual – não porque a minha identidade sexual é rígida, mas porque não é negociável.

Eu sou bissexual e posso usar um vestido sem que isso interfira na minha sexualidade. Eu sou bissexual e posso discutir com a minha namorada porque estamos pedindo deliverys demais sem que isso invalide a minha sexualidade. Eu sou bissexual e tenho direito à dúvida e ao desejo. O que a bifobia quer é nos roubar a humanidade, mas eu sou bissexual e existo.

O jornalismo independente e de causa precisa do seu apoio!


Fazer uma matéria como essa exige muito tempo e dinheiro, por isso precisamos da sua contribuição para continuar oferecendo serviço de informação de acesso aberto e gratuito. Apoie o Catarinas hoje a realizar o que fazemos todos os dias!

Contribua com qualquer valor no pix [email protected]

ou

FAÇA UMA CONTRIBUIÇÃO MENSAL!

  • Jess Carvalho

    Jess Carvalho é jornalista e pesquisadora da bissexualidade. Atua como editora, repórter e colunista no Portal Catarinas...

Últimas