A minha primeira tentativa de concluir um curso superior foi em engenharia civil, e, neste âmbito predominantemente masculino, ouvi histórias das namoradas que ficaram esperando os namorados concluírem o curso e retornarem  para sua cidade de origem. Foi neste período que  comecei a estabelecer associações entre a ação de esperar e o feminino. Esta situação ficou latente em meus pensamentos por um tempo até perceber que esta era também a história de minha mãe, que viu meu pai partir para cursar engenharia e aguardou até que ele se formasse  para que se casassem. Logo, a presença de Sinhá Olympia[1], uma jovem moradora da cidade histórica de Ouro Preto que enamorou-se de um rapaz mas, que por imposição familiar nunca viveu o romance, esperou e ocupou as ruas contando histórias e outros casos românticos[2].  Ainda há Florbela Espanca, poetisa que guardou nas mãos o beijo que sonhou para sua boca.

A mulher sente o verbo esperar. Ela o conjuga na carne e no presente do indicativo quando se vê grávida. Ao acompanhar o crescimento de uma filha ou um filho, conjuga o verbo esperar em todos os tempos perfeitos e imperfeitos. Ela espera o tempo da filha, e só quando vê na criança certa autonomia retorna ao mercado de trabalho, à sua vida e as suas escolhas.

Como desassociar um do outro?
Ao assistir, junto com minha filha, o espetáculo Guerreiras Donzelas: elas mudaram o rumo da história, comecei a reconstruir esta associação vendo em cena atrizes que representam mulheres que não esperaram o destino que lhes era aguardado. Elas, de peito aberto e coração saltitante, fizeram como minha filha após o espetáculo: questionaram, refletiram e com isso mudaram o rumo da história.  Elas são muitas de nós, são mulheres que precisam ser contadas, revistas, visitadas. Elas são minha mãe e minha filha, sou eu, que ainda oscilamos entre a mudança e a espera.

Foto: Mhirley Lopes

Mulan e Joana d’Arc reverberaram por duas semanas nos pensamentos e nos diálogos da minha filha. Neste período, sem que eu tocasse no assunto, a pequena indagou questões sociais dela e familiares a partir da construção do espetáculo (“Por que os homens ficam sem camisa e mulheres não neste calor?” “Por que meu avô não lava a louça?” “Porque minha tia precisar ir rápido para casa para fazer almoço se o marido dela está em casa?”). O espetáculo é pensado para crianças mas cabe como uma luva para adultos: abre espaço para construção crítica e reflexiva sobre os feminismos ampliando espaços de fala e escuta sobre nossos papéis sociais. Mas, além disso, nos convida a não esperar mais tempo, a começar agora a refletir e debater sobre a libertação feminina e nossos espaços ao longo da história.

No século passado houve avanços quanto às políticas públicas de proteção às crianças,  porém, neste momento, passamos por um período de retrocessos onde a retirada destes direitos expõe as crianças à morte prematura e ao trabalho. As meninas são as que mais sofrem na ausência dos seus direitos e da possibilidade de refletir sobre eles pois assumem ou colaboram ativamente nas tarefas de casa para dar suporte aos adultos que precisam se dedicar ao trabalho. Ao produzir arte para crianças precisamos saber para qual infância estamos produzindo nossa arte. Em Guerreiras Donzelas elas souberam e destinaram o seu teatro a seu público alvo, às meninas, estas esquecidas tantas vezes pela história e pelas estatísticas mas muito lembradas pelo mercado capitalista das lojas de laçarotes, bonecas e acessórios muitas vezes desnecessários. A cena acontece sem voltas ou o didatismo característicos do teatro infantil, de forma a ressoar na ânima das crianças e transbordar nos diálogos com a pessoa que a levou ao teatro. Dessa esperamos a lucidez e a clareza de conduzir, aconchegar, fortalecer e esclarecer, quando necessário, as inquietações que surgem após esta vivência frente ao teatro feminista para crianças.

Espetáculo Guerreiras Donzelas
Concepção e dramaturgia: Luane Pedroso e Jussyanne Emidio.
Direção: Brígida Miranda.
Direção Musical: Massashi Murahara.
Elenco: Luane Pedroso, Jussyanne Emídio e Massashi Murahara.
Produção: Bapho Cultural.

Paula Gotelip mãe da Julia, filha da Geni, neta da Dedê, irmã da Michele, tia da Maria, da Olga e da Antonela; cunhada de Lara. Mestranda no Programa de Pós Graduação em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina pesquisando teatro para crianças. Graduada em Bacharelado em Direção Teatral pela Universidade Federal de Ouro Preto e Licenciada em Teatro pela Universidade Paulista de São José. Gestora e produtora cultural.

[1] Informações sobre Sinhá Olympia podem ser acessadas no site https://tccolympia.wordpress.com/

[2] A versão que menciono faz parte da história oral que ouvi quando estava estudando em Ouro Preto.

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