Crônica da incontingência da clausura (18) – ou dos discursos religiosos sobre os corpos das mulheres
Domingo, doze de julho de dois mil e vinte. Hoje faz sete dias que voltei para meu lugar de afetos! É a segunda vez que vou e volto depois que o grudento seboso nos tem amedrontado. Estava em Florianópolis, onde fiquei isolada até ter certeza de que estava imune do vírus: só fui ao dentista, com todos os protocolos de cuidados. Desta vez voltei mais preparada para o cotidiano na casa de minha mãe. A recepção de seu abraço quentinho e os olhos verdes do Guevara e do Tchê me certificam que este é o melhor lugar para estar bem e escrever.
Choveu muito nesta semana e fez frio de avermelhar o nariz. O vento forte espalhou mais folhas e o chão coberto de tons marrons devido ao ciclone da semana anterior ficou ainda mais macio. Os abacates caíram às pencas com o vento. Os limões amadurecem e enchem o solo de bolotas amarelo-laranja. As galinhas parecem gostar do frio cruento, se acotovelam em lugares mais altos e, quietas, se apoiam por horas numa só perna: são atletas do galinheiro!
Alfaces e outras verduras cresceram compondo um cenário bucólico cujas folhas terminarão em travessas. Acariciam-me os olhos os tantos tons de verde que revigoram depois das chuvas e, mesmo no inverno, compondo nossas refeições. Flores desabrocham em pétalas de tantas formas e cores que parecem arco-íris. Então, as fotografo com o prazer de captar a beleza e eternizá-las na imagem. Sempre gostei de fotografar e não resisto em registrar as imagens do cotidiano.
Depois da chuva torrencial e ventos de vergarem árvores, o sol me permitiu calçar as botas e palmilhar o entorno da casa. A enxada e a foice são parceiras que meu irmão esmerilhou. Estão com o gume tinindo, prontas para podar, eliminar ervas daninhas e sulcar canteiros para outras mudas e sementes.
Não fosse o turbulento tempo de incertezas e cuidados extremos para passar ao largo de um vírus invisível e maldito, diria que este lugar é o paraíso. Somado a esse medo do contágio, vivemos o que era impensável até poucos anos: a ascensão de governos totalitários e fascistas como estes que se apoderaram do poder no país.
Nesta semana e sob provas incontestáveis foram reveladas estratégias malignas que burlaram as eleições presidenciais no Brasil através de fake news. Já sabíamos, mas as forças repugnantes as tentavam esconder. O cavernoso ferrabrás se escapuliu de depor na Polícia Federal, como também o fez com a facada. A História dirá. Imbecis continuam na defesa do inepto governante fascista em pleno século vinte e um, o que é de doer nas artérias.
Na casa da mãe os acontecimentos parecem mais lentos. Todavia, as notícias dão conta dos impropérios e do desmonte do país, incluindo as mortes pela Covid-19 que já somam setenta mil pessoas. Está em curso um genocídio, exalando a crueldade racista e aporofóbica (aversão às pessoas pobres) deste governo, numa perfeita explicação para o que vivemos no pós golpe de 2016. Um exemplo deste descaso aparece na reportagem: “Epidemia de execuções: PM catarinense mata 85% a mais no isolamento social”, publicada pelo Portal Catarinas. É o Estado promovendo carnificinas.
O tempo que dedico à minha mãe é precioso. Conversamos sobre diferentes assuntos e sua memória, embora falhe quando é sobre o tempo imediato, lembra coisas do passado com lucidez e detalhes. Comentei sobre a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos – a da goiabeira. Perante o Conselho dos Direitos Humanos, Damares propôs excluir termos como intersecção, igualdade de gênero, direitos reprodutivos e saúde sexual para as mulheres, planejamento familiar, métodos de contracepção e educação sexual do texto norteador naquele Conselho.
Essa mesma ministra se alia aos países islâmicos e contra tudo o que os movimentos feministas têm de mais caro em suas lutas: a liberdade das mulheres de fazer escolhas e buscar equidade de gênero. O governo nos envergonha diante da ONU e do mundo.
Este fato constitui um paradoxo. Em abril deste ano os ministros do STF abriram jurisprudência e doravante nenhum incauto se atreverá a burlar a Constituição com projeto como aquele odioso chamado ‘escola sem partido’. A decisão garante que temas como gênero, sexualidades e diversidades sejam mantidos nos planos escolares.
Minha mãe exclama: “Mas essa ministra é religiosa!!”, expressando seu espanto. “Então como pode achar que uma mulher não tem direitos?” , pergunta. O assunto versou sobre dores, as nossas e as outras. Expliquei que, por conta de seu sexo e as interdições e prescrições devido ao seu gênero, as mulheres sempre foram inferiorizadas e sofrem muito. Sua memória do tempo longo lembrou de que, quando teve seu sexto filho, passou muito mal e, no hospital, a freira que a atendia disse:
“Não reclama! Fazer foi bom, e soubeste fazer. Agora aguenta a dor e desce daí”.
Abertas as cicatrizes, minha mãe falou que, depois desse parto e com o períneo dilatado, sofreu terríveis dores e desconfortos, fato que atribui a ter que descer da mesa do parto sem que pudesse se refazer. Em muitos casos, era assim que tratavam as mulheres parturientes. “Freiras nojentas aquelas, não tinham dó das mulheres”, completa minha mãe.
Uma educação religiosa que atribuía e ainda atribui dores físicas para purgar pecados e alcançar o céu eram reproduzidas, como ainda o são, em discursos dos padres, lições de casa nos almanaques católicos e livros religiosos. Quais pecados tem uma mulher parturiente para purgar? Parir uma vida deve ser com dor e sofrimento? Retomo o dogma prescrito na bíblia católica no livro de Gênesis, capítulo três versículo dezesseis, segundo o qual deus deu o veredicto à mulher:
“Multiplicarei grandemente o seu sofrimento na gravidez; com sofrimento você dará à luz filhos. Seu desejo será para o seu marido, e ele a dominará”.
Por vários milênios este discurso ecoa maltratando mulheres. Mas, se existe um deus que dizem ser de misericórdia e benevolência, ele não descontaria fúrias nos corpos das mulheres e em qualquer pessoa que fosse. Paradoxos.
Minha mãe perguntou “Então, se era para ter os filhos com dor, porque os homens não sentem nada?”. É, mãezinha, há homens que sequer se preocupam. Um fato narrado por meu irmão elucida: conhecidos seus, assim que as esposas iam para o hospital para um parto, passavam aquele dia e noite na zona (casas de prostituição). “Minha mulher foi ter filho, então hoje posso fazer uma festa na zona, que beleza!”, diziam. Uma amiga enfermeira contou que presenciou por diversas vezes o marido bêbado buscar a pós-parturiente no hospital, visivelmente incomodado por esta tarefa, e a tratava com aspereza. Lastimável.
Quais poderes tinham os homens para escreveram um livro de condutas? O que pensava das mulheres aquele que escreveu esse curto versículo que nos castra vontades? Essa frase maldita condenou nossos corpos à servidão. Construída e repetida até se tornar uma representação da verdade, até hoje faz sangrar. Se há algum pecado, está na condenação à expiação pela maternidade e ao domínio patriarcal norteador dos nossos comportamentos.
Nesta conversa sobre religião, minha mãe explicou porque não frequenta prédicas nem vai à missa, embora se sinta católica. Quando casou e saiu da casa paterna, rompeu com as rezas diárias e terços numa prática que, quando menina, a obrigavam mesmo que sentisse sono e dores nos joelhos.
Para as mulheres após um parto, exigia-se que se confessassem do pecado da carne e só então poderiam voltar a frequentar a igreja e comungar: um pecado original por terem feito o ato sexual. Para os dogmas religiosos, o sexo constitui pecado a ser perdoado com a confissão. Mesmo a criança, depois que nasce, ou é batizada ou será indigna de ser cristã por carregar o mesmo pecado de origem, ou seja, ter nascido como consequência de um coito. Quando menina, lembro que no cemitério havia um espaço para os natimortos sem batismo – ali era o limbo, a escuridão eterna para crianças que deveriam ser esquecidas. Eu imaginava corpos minúsculos debaixo da terra sendo carcomidos por minhocas.
Ora, os homens que escreveram a bíblia sabiam que sexuar era prazeroso. Porque então submeteram as mulheres ao sexo somente para procriação, renegando os prazeres da carne? O historiador Georges Duby, na obra Damas do século 12, empreendeu uma detalhada pesquisa sobre a vida das mulheres medievais: na sociedade de então, clerical, militarizada e masculina, prescreviam-se modelos de conduta rígidos e lições de moral na educação das mulheres.
As mulheres eram vistas como seres nocivos e responsáveis pelo pecado original, e que deviam ser temidos e constantemente vigiados. Segundo os critérios daqueles homens, elas deviam ser dóceis, submissas, de poucas virtudes e muitos pecados.
Assim, a sociedade medieval abre brechas para o que viria a ser a sociedade burguesa: manter as esposas sob a tutela dos maridos, as filhas sob o rígido controle dos pais e as viúvas renegadas a claustros.
Expliquei para minha mãe que, e isso faz uns trezentos anos, um filósofo iluminista chamado J. J. Rousseau construiu uma teoria de inferioridade das mulheres. Para ele, aos homens era conferida a igualdade e a liberdade, o espaço da rua, do público, da política, enquanto que para as mulheres, o destino de sujeitas ao poder masculino e totalmente excluídas da possibilidade de participação nos espaços públicos e na política. Segundo esse filósofo, os homens são inteiros, racionais; as mulheres destinadas ao lar por serem metade, frágeis e se deixarem levar pela emoção.
Dessas explicações, minha mãe traz para o tempo presente: “Então por isso também tiraram a presidenta Dilma do governo”, disse ela. Ligamos àquele capítulo e versículo que diziam da obediência ao marido, a um homem, a um pai…. Quais os discursos de hoje? Foram muitas as lutas para que as mulheres conquistassem espaços públicos e políticos.
Elas propuseram leis que criminalizam agressores e feminicidas, mas ainda temos muitas mortes e violências. Sim, os discursos religiosos condenaram-nas ao padecimento e ao pátrio poder. Posteriormente, também a filosofia e a medicina teceram argumentos para a exclusão das mulheres dos espaços de representação e do poder, por portarem um útero e serem mulheres.
“Eu fiz tudo quase sozinha na vida! Como não tenho força? Se não fosse pelas mulheres, a gente estava muito mal, muito mal mesmo”, concluiu minha mãe. Concordo e assino. Elas sempre estiveram presentes, com suas palavras, gestos e trabalho dando conta da reprodução da vida, sabemos bem.
Sei que me repito quando falo das mulheres. Acontece que minhas lutas, escritas e ações têm sido para denunciar violências e, faz muito tempo, proponho insurgências e militância contra estas desqualificações e preconceitos. As mulheres marcham faz tempo, porém, na última década, tomaram as ruas contra o que lhes agride, silencia, explora, violenta.
As marchas, nos últimos anos, têm pautas importantes, todas juntas pedindo justiça, cidadania, direito ao corpo, direitos sociais e trabalhistas e, iradas, denunciam as violências sexuais, de classe, raça, gênero, geração.
Esse passado que não passa ainda borbulha. Mas estamos construindo outros discursos, outras falas sobre tudo o que nos cerca no cotidiano dos devires. E essa juventude ávida por liberdade fará a revolução! Quero estar junto delas e dizer: vocês nos representam e sigam. Somos a retaguarda, e estamos juntas.
Marlene de Fáveri, 12 de julho de 2020. Turvo, SC.