Quinta-feira, doze de março de dois mil e vinte. Acordei cedo, juntei pertences para uma semana – roupas, medicamentos, um livro, computador, o caderno com manuscritos inacabados e poesias, carteira, óculos, celular e carregador, assim, como em toda viagem. No elevador, abracei a menina vizinha que estava de aniversário, e sua mãe; cumprimentei o zelador com aperto de mão. No posto, abasteci com tranquilidade, comprei água, e peguei a estrada. O plano era ficar uma semana em Turvo, e então voltar para reunião do Fazendo Gênero, outra com meu partido político (evidentemente, de esquerda), comparecer às milongas tangueias do final de semana; e namorar, porque eu mereço. Com bom transito, chegaria para o almoço com minha mãe e a senhora que a cuida. Viagem tranquila, uma parada no caminho, onde encontrei uma ex-aluno, bebemos café e compartilhamos caloroso abraço. Como sempre acontece, cheguei em casa da mãe e trocamos largos e longos apertos de braços; digo que ela está linda, e ela me diz coisas carinhosas… Almoçamos, nós três, na calmaria; embora a conversa rumou para riscos e medo da doença do vírus. Muito bom estar em casa de mami! Dia seguinte, brinquei com minha sobrinha amada, e até vimos um filme infantil e dormimos juntinhas; abraço meu irmão com o calor de sempre. Era sexta-feira.

No sábado, quatorze de março, bem como no domingo, dia quinze, almoçamos em família, colhemos limões, fizemos cafunés. Foi quando as notícias alarmantes nos preocupou com mais evidências – governos de Estados fechando fronteiras, ordenando isolamento social, em meio à vergonha da incompetência e dos absurdos ditos pelo mandatário que não me representa. Ficamos apreensivas, quase que incrédulas do que se avizinhava. Na segunda feira, dia dezesseis, a pandemia é global; nós, mortais e que temos medo da doença e da morte, vimos atônitos um muro sendo construído para impedir abraços. Na terça feira, dia dezessete, decretos passaram a gerir nossa mobilidade – mesmo assim, fui à manicure porque tinha horário marcado, e levei minha mãe para cortar os cabelos. Nesses dois lugares, o álcool em gel passou a fazer parte de nossas vidas. A cabeleireira nos recebeu com namastê à distância, e fez o trabalho com as mãos devidamente desinfetadas.

A redes sociais, as notícias e decretos davam conta que a capital do Estado estava sob controle, viagens canceladas, ajuntamento de pessoas proibido, comércio à portas fechadas; nem cinema, bailes, aulas, reuniões quaisquer que fossem… Sem nenhuma dúvida, adiei a viagem de volta para casa, e por tempo indeterminado…

Na quarta-feira, dia dezoito, os habitantes da pequena cidade do interior acordaram sem rumo… perplexos: naquele dia, e no dia seguinte, quinta-feira, dezenove, sabe-se lá com quais expressões e representações, fecharam as portas dos comércios, oficinas, salões de beleza, serviços públicos, serrarias, casas agropecuárias; e, obrigados por força de lei a se abster de festas, cultos, reuniões, bailes… Meus irmãos fecharam a oficina de conserto de elétrica de carros e, pela primeira vez nas suas vidas, passaram uma quinta-feira sem ir ao trabalho.

Minha mãe, nos seus oitenta e um anos e meio, preocupou-se sobremaneira com a possível escassez de alimentos e outros bens de consumo, como a comida das galinhas e dos gatos, material de higiene e limpeza; ela olhou tudo na despensa, na geladeira, vasculhou os armário, e fez uma lista de compras enorme; tanto repetiu que queria ir ao supermercado que tive que, pela primeira vez na vida, proibi-la veementemente de sair de casa. Eu fui, fiquei na fila da cooperativa que é supermercado, porque entravam cinco pessoas por vez, não sem antes se higienizar na porta, e uma funcionária passava álcool gel no carrinho; tive que pegar os alimentos com as mãos alcoolizadas, e pagar com cartão bêbado, e assim…

Hoje é dia 20 de março, sexta-feira. Os noticiários dão conta que o mundo está em pânico; e as projeções são de que óbitos e contaminados crescerão de forma geométrica. Eu e minha mãe, aqui no sul do Estado de Santa Catarina, numa pequena cidade de menos de treze mil habitantes (isso em todo o município), sitiadas dentre os muros e plantas e árvores, inventamos coisas para não pensar muito no que virá. Ninguém chega perto de nós, especialmente de minha mãe, octagenária.

Nos últimos oito dias de minha vida, passei de livre e feliz pessoa indo visitar a mãe no interior para a situação de sitiada, em quase clausura… sem abraços e sem fazer tranças na Laura.

Marlene de Fáveri, Turvo, SC. 20 de março de 2020.

Marlene de Fáveri

Marlene de Fáveri, natural de Santa Catarina, Historiadora, professora Aposentada do Departamento de História da UDESC. Membro do Laboratório de Relações de Gênero e Família (LABGEF), do Instituto de Estudos de Gênero (IEG), do GTGênero (ANPUH Brasil) e da Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil (AJEB). Autora de artigos, capítulos de livros e artigos de História, Gênero, Feminismo, Divórcio, Mercado do Sexo, Mídias. Foi processada em 2016 por ex aluna no teor da ‘escola da mordaça”, vencedora no processo. É feminista, poetisa, escritora e militante pelos Direitos Humanos e cidadania, com foco nos direitos das mulheres. Participa do Grupo de Poetas e Escritores Mario Quintana, fundado em Itajaí em 1988, com publicações em coletâneas e diversas premiações, como para o Off Flip 3023. É colunista no Portal Catarinas - jornalismo com perspectiva de Gênero. Em 2021, publicou dois (02) volumes de Crônicas da incontingência da clausura – cotidianos da pandemia (Letras Contemporâneas) uma série de 54 crônicas escritas no calor dos acontecimentos da pandemia, com foco no feminismo e nas fissuras de viver num tempo pandêmico. Em 2022, escreveu e organizou o livro O Ultrarrealismo na cena literária de Itajaí (Traços & Capturas), e o livro de poesias feministas: Se pulsa, arde e resiste (Infinitta Leitura).

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