Coletivização dos afetos
Bárbara Li Sarti reflete sobre a necessidade de andarmos na contramão da monogamia para criarmos coletivos de parceria e cuidado
É costume acreditar que uma parceria romântica é a maior segurança que podemos encontrar na vida adulta. A partir de um vínculo que se estabelece e se diferencia pelo sexo, organizamos toda a vida prática, direcionando a ele grande parte do nosso tempo e energia. No paradigma relacional vigente, essa relação passa a centralizar não só o sexo, mas também tudo o que vem a reboque dele: intimidade, apoio material e segurança emocional. É a pessoa com quem vamos coabitar, dividir gastos e tarefas de casa. É a pessoa com quem contamos para nos cuidar quando adoecemos. Na sociedade capitalista e competitiva, as relações afetivossexuais assumem o papel principal, e muitas vezes único, de segurança e apoio – uma espécie de proteção contra “a vida dura lá de fora”. Mas este porto, muitas vezes, se mostra tão frágil quanto uma casa sustentada por uma só viga. Frequentemente, quando o sexo acaba, todo o restante da relação se desfaz e caímos em total desamparo em meio a pessoas com as quais não nos importamos e que não se importam conosco.
Na medida em que centralizamos a afetividade no núcleo familiar (ou no projeto dele, como é o namoro), esvaziamos a coletividade de afeto e, por isso, é tão ameaçador perder essa relação e ver-se sozinho no árido campo coletivo.
Do imaginário romântico, a noção de completude e de exclusividade revestem os encontros amorosos com ar de raridade, ao passo que constroem um cenário de escassez de relações íntimas e profundas. No lado oposto desse mesmo sistema, existem as pessoas solteiras, as quais consideramos, e muitas vezes estão, sozinhas (no sentido prático e também profundo da palavra). O sistema monogâmico não determina apenas as relações vigentes, mas também as não relações – a solidão. Na via contrária desse tipo de organização do afeto, estar seguro é construir uma rede de relações de apoio, acolhimento e intimidade em que o sexo não seja condição determinante.
Há casais que sobrevivem ao término da relação sexual, mas às custas de enterrarem essa parte de suas vidas, quando não escolhem a via das relações extraconjugais, numa configuração pouco sustentável e, costumeiramente, cheia de sofrimentos. Não digo que o sexo não seja importante, pelo contrário, é capaz de nos mobilizar fortemente e, justamente, algo de natureza tão efervescente e instável, não deveria ser tão determinante de aspectos relacionais da ordem da estabilidade. A centralização de aspectos relacionais que poderiam não estar colados, nem co-dependentes, acontece, pelo menos em parte, devido à hierarquia relacional inventada no sistema monogâmico. O casal romântico tem o poder da exclusividade de não partilhar o que tem entre si com outras pessoas – e isso não se limita ao sexo. Nesse paradigma, é considerado um absurdo ou, no mínimo, estranho, dar mais atenção, tempo, carinho ou cuidado para uma relação que não seja a central romântica/sexual.
As relações no sistema monogâmico seguem a lógica capitalista porque foram concebidas em engrenagem a ele: da mesma maneira que meu carro, minha casa e meu posto de trabalho são mais valiosos na medida em que os demais não podem possuir, também o é meu parceiro afetivo.
O valor do casal romântico se constrói pela diferença e pela exclusão, não só porque o ideal romântico se sustenta na noção de completude, mas também porque o status relacional é tão maior quanto maior for a distância entre o que se tem nessa relação em comparação às demais. Não distante disso, um trisal nuclear também vai girar em torno dessa diferenciação. Reforço, então, a necessidade de falarmos em uma não monogamia política, que coloca em pauta o impacto social da forma com que nos relacionamos.
Quatro das minhas tias-avós nunca se casaram e viveram a vida toda juntas, na mesma casa. Da juventude à velhice, compartilharam cuidados que, estatisticamente, seria bastante improvável que conseguissem se estivessem separadas por casamentos, especialmente com homens cishéteros. Apoio financeiro, divisão de tarefas de casa e infinitas trocas de fraldas e curativos, tudo na dedicação e retidão da mulheridade preta. Não por acaso, todas elas eram negras de pele retinta. A monogamia não é para todos, e essa exclusão é mais um motivo que reforça a importância da coletivização dos afetos e de um cuidado que não seja pago com sexo, exclusividade e posse. A despeito do imenso apoio que minhas tias trocaram entre si, suas vidas afetivas não recebem o mesmo status que casamentos monogâmicos, nem a mesma proteção jurídica e direitos legais, pelo contrário, no imaginário monogâmico, ironicamente, são consideradas mulheres sozinhas.
Ainda para quem se encaixa no ideal do casamento perfeito, em que vem à cabeça um homem e uma mulher cis e brancos no altar, seguidos por uma festa nada barata, ainda para eles, especialmente para ela, o cuidado e a proteção estão longe de estar assegurados, mesmo durante a vigência da relação.
Vejo exemplos inspiradores na não monogamia que não dizem respeito a aumentar o número de pessoas com quem se transa: pessoas e grupos que se aliam na criação de filhes, sem haver vínculo sexual ou, quando existe, não fica como pré-condição para todos os outros aspectos de parceria.
Mães e cuidadores de crianças têm a fralda para trocar agora, o almoço de hoje para fazer, e estar em um vínculo tradicional é, muitas vezes, sua única fonte de apoio possível. Pensar em coletivizar os afetos é desafiador porque significa construir redes em um sistema que se sustenta pelo individualismo, mas é, certamente, um horizonte para o qual vale a pena caminhar. Nosso modo de amar e distribuir afeto também pode ser revisto, já que esse é um fator tão determinante para a forma com que nos organizamos socialmente. Nem a posse do afeto alheio, nem o pensamento de que “eu só cuido do que é meu”, são compatíveis quando queremos construir um coletivo saudável.