No ano de 1929, o dramaturgo alemão Bertolt Brecht escreveu a “Ballade Zum Paragraph 218”, que pode ser traduzida como “Canção do Parágrafo 218”. É uma parceria de Brecht com o compositor Hans Eisler. Na canção é encenada uma consulta médica: a paciente, uma mulher pobre, e o médico, um homem conservador e autoritário, conversam no consultório. Ela explica que não tem alimento para os filhos que já estão em casa e seu marido está desempregado. Ele rebate que a nação precisa de novos indivíduos para operarem as máquinas e irem para as guerras, que ela seria uma linda mãezinha e deveria estar feliz por isso. 

A canção nasce em um contexto de grande movimentação política na Alemanha, durante a República de Weimar, no qual acontecem discussões amplamente difundidas na sociedade sobre a regulamentação do aborto, o famoso Parágrafo 218. Este foi um contexto social de grandes movimentos pelas lutas dos direitos civis das mulheres e da população LGBTQIA+, principalmente. 

O Parágrafo 218 foi incluído no sistema penal alemão em 1871 e, inicialmente, punia a mulher que cometesse aborto com prisão em campo de trabalhos forçados de 5 até 10 anos. O site alemão do Gunda Werner Institute – feminism and gender democracy conta a história dos 150 anos de regulamentação jurídica do aborto na Alemanha. 

As autoras explicam que uma forte  “oposição ao parágrafo 218 surgiu logo após sua criação. Os movimentos das mulheres alemãs surgiram antes de 1900, mas às mulheres não era permitido se organizarem em associações até o ano de 1908”. 

“Em 1913, logo antes da eclosão da guerra, os movimentos das mulheres proletárias resistiram a essa exploração da fertilidade das mulheres pelo Estado e pelos militares e chamaram para uma Gebärstreik, ou greve de nascimentos”, explica o Gunda Werner Institute. Em 1926 as mulheres conquistaram uma diminuição da severidade da pena, passando o aborto de crime para contravenção. 

Em 1927 foi regulamentado o aborto por motivos médicos como um direito das cidadãs. Obviamente os passos conquistados regrediram totalmente com a entrada do partido nazista no poder, em 1933. 

Para o nacional-socialismo de Hitler, o aborto não seria considerado um homicídio, mas sim uma “injúria à nossa saudável e sagrada raça”. Claro que isso era interpretado dessa forma somente se você fosse uma mulher alemã. 

Os nazistas realizaram amplamente abortos como uma “medida de saúde pública” contra mulheres consideradas impuras para o ideal de raça propagado pelo partido: mulheres judias, ciganas das etnias Sinti e Romani e mulheres com deficiência eram submetidas forçadamente ao procedimento de forma totalmente legal e sem grandes problemas morais. 

Não tenho ideia de quem cantou essa canção no ano de 1929 ou nos anos seguintes. Gostaria muito de saber quais mulheres ou homens emprestaram a voz para essa denúncia. Imagino que deveria ser um grande escândalo tratar desse tema em público, ainda mais da forma crítica e ácida como Brecht e Eisler retratam. 

O médico, claramente sem considerar a mulher (que mal fala, pois é interrompida o tempo todo), faz um discurso sobre a beleza da maternidade e a culpa da mulher por ter ficado grávida. A canção, mesmo sendo de 1929, é de uma lastimável atualidade. Brecht e Eisler estavam interessados nas questões de classe da Alemanha e defendiam que o aborto era uma questão enfrentada de forma mais dramática pelas mulheres de baixa renda: algo que não é em nada diferente do Brasil de 2023. 

Partitura da “Ballade Zum Paragraph 218”, de Bertolt Brecht.

Fuçando no YouTube encontrei uma produção incrível de “Canção do Parágrafo 218”, que em inglês ganha o nome de “Abortion is Illegal“, realizada pela artista estadunidense Jenny Lee Mitchell, misturando cinema, teatro e música. Para conferir a canção em sua versão em inglês, criada e produzida por Mad Jenny, clique aqui.

Quase cem anos depois do surgimento dessa canção, o aborto é legalizado na Alemanha, mas como muitas restrições. No Brasil, a decisão só é considerada, sob obstáculos, em caso de estupro, anencefalia fetal e risco de morte. Mesmo após um século de discussões sobre o direito das mulheres de tomarem as decisões sobre o seu próprio corpo, ainda nos deparamos com a lentidão de resposta dos sistemas judiciários e políticos aos avanços das pesquisas sobre o tema nas mais diversas áreas, como saúde pública, direitos das mulheres, ciências sociais, feminismos e gênero. Enquanto isso, a caricatura do médico da canção de Brecht segue mais atual do que nunca. Ele termina dizendo: você vai ter o bebê, e isso é tudo.

*Para ouvir a canção ao vivo e em uma versão em português, em breve sai um repertório novo com essa e outras canções incríveis do século XX na cidade de Florianópolis. Para acompanhar a divulgação siga @barbara.biscaro no Instagram.

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  • Barbara Biscaro

    Barbara Biscaro é atriz/cantora e pesquisadora nas áreas do teatro e da música. É Doutora em Teatro pela UDESC e coorden...

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