Essa escrita é um desabafo, uma denúncia, um grito, uma provocação, uma fissura. Desde tempos estamos na luta pelo aborto legal, pela descriminalização do aborto, por um aborto trans-lesbo-bi-feminista, e por conta da atual discussão sobre a ADPF 442 as mobilizações estão sendo mais intensas. Tenho acompanhado como pesquisadore, mas também como ativista os movimentos e discussões sobre essas lutas e meu incômodo continua o mesmo: a invisibilidade nas pautas e das pautas, das demandas e cuidados em torno das transmasculinidades e das não binariedades.  

Discutir sobre saúde sexual e (não) reprodutiva ainda hoje está atrelado a uma narrativa cis-hetero-normativa. A transfobia e o binarismo estrutural e institucional se traduz numa sistematização de dados sobre saúde sexual e (não) reprodutiva que não considera outras corpas ou identidades possíveis para além de mulher cis e presumidamente heterossexual. Isto faz com que, por exemplo, se tenham pouco ou nada de dados relacionados sobre homens trans, pessoas transmasculinas e/ou não binárias.

Como consequência disso, homens trans, pessoas transmasculinas e/ou não binárias se tornam sujeitos não possíveis dentro das narrativas e imaginários de pessoas que abortam e/ou que são usuárias dos serviços de aborto legal.

O Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (Ibrat), tem sido uma das poucas organizações que no 2023, fruto de uma parceria com a Revista Estudos Transviades, publicou no dossiê intitulado “Gravidez, Aborto e Parentalidades nas Transmasculinidades”, um estudo que apontou que dentre as pessoas que gestaram, 10 (31,25%) já abortaram, e duas (6,25%) relataram ter sofrido violências em relação ao aborto. Das 10 pessoas que abortaram, nenhuma recebeu algum acompanhamento profissional pós-aborto (PFEIL et al, 2023).

Se formos olhar para a América Latina os dados que se tem são produzidos pelos movimentos sociais de homens trans, pessoas transmasculinas e/ou não binárias e relatam as mesmas invisibilidades e violências ditas aqui.

Se temos um sistema institucional que nos invisibiliza, como é possível criar números sobre nós? Quantos desses números sobre mortalidade materna, sobre aborto clandestino, e afins não são de pessoas trans que devido ao cissexismo e/ou à transfobia foram desrespeitadas ou invisibilizadas nas suas identidades?

Este texto também é um convite de ampliação, de pluralização, de descolonizar o nosso imaginário, para que as políticas públicas pelas quais lutamos sejam abrangentes e não excludentes, que a linguagem seja viva e não branco colonial.

Nota: A gente não quer apagar a categoria de mulher [cis], o que a gente quer é pluralizar, ampliar, nomear outros possíveis.

Referências e Inspirações 

PFEIL, Cello Latini et al. Gravidez, Aborto e Parentalidade nas Transmasculinidades: um estudo de caso das políticas, práticas e experiências discursivas. Revista Brasileira de Estudos de Homocultura (Rebeh), [s. l], v. 6, n. 19, p. 7-31, abr. 2023.

Asociación Profamilia y Alianza Trans Masculina Abortera de Colombia (ATAC). Acceso al aborto seguro para hombres trans y personas no binarias: un estudio exploratorio en Colombia. Asociación Profamilia: Bogotá D.C. 2020.

Radi, Blas & Elichiry, Marina. Manual de Servicios de Aborto Trans-inclusivos: políticas y prácticas, Argentina. Cátedra Libre de Estudios Trans. Adapted from Lowik, A., Trans-Inclusive Abortion Care: A Manual for Operationalizing Trans-Inclusive Policies and Practices in an Abortion Setting. 2021.

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  • Ale Mujica Rodriguez

    Ativista, transfeminista e anticolonial. Luta pela despatologização das identidades trans/travestis e das corpas gordes....

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