Por Camila Lazzari Trentini

No dia 30 de setembro foi promulgado o Decreto Federal 10.502 que institui a política nacional de educação especial, trazendo a velha novidade das “escolas especializadas”, abrindo brecha para um grande retrocesso nas políticas de educação inclusiva que estavam apenas engatinhando. Com a possibilidade de escolas especiais, os investimentos que deveriam ser destinados às escolas públicas e particulares da rede regular de ensino, para se adequarem aos processos e políticas de inclusão, serão pulverizados para outras instituições, sabotando décadas de lutas de pais e educadores.

Aqui peço licença para usar as palavras da querida Lígia Moreiras, parafraseando o título do livro de Silvia Federici, quando diz que o “ponto – 1 da revolução” será a revolução das crianças. Instigo a avançar e imaginar qual vulto tomaria uma revolução das crianças deficientes!

Mas quem dará voz a elas?

Para poder falar de voz, de futuro possível, de sociedade inclusiva para qualquer pessoa, preciso falar do luto que vivi pelo meu filho idealizado, e a minha ignorância por nunca antes ter convivido com nenhuma pessoa diferente na minha vida.

Por que tiraram esse direito deles? Por que negaram a mim esse direito? E trago mais uma pergunta: Será que meu luto, que foi muito mais longo do que eu gosto de admitir, teria sequer existido se eu tivesse tido na escola o privilégio de estudar com pessoas diferentes de mim?

Para pais de crianças deficientes é comum ouvir que se sai do luto à luta. Hoje entendo bem porque precisamos lutar, mas logo saltou aos meus olhos que havia também diferenças entre os lutadores dentro das famílias. Pouquíssimos pais se encontram nos grupos de lutadores mais aguerridos. O que mais se evidenciam são mães sobrecarregadas, muitas vezes doentes ou abandonadas, lutando como podem para dar aos seus filhos uma voz, uma chance.

Pela minha experiência, em casa e nos grupos, percebi que uma possibilidade de educação não violenta e inclusiva só poderá existir se houver meios de educar homens para que assumam de forma saudável e amorosa seus postos de pais. Também para que esse homem quando na sua vida pública assumir qualquer cargo de poder, possa ter empatia e a capacidade de enxergar mais do que números. Para que todos nós possamos, mas especialmente homens no comando, vislumbrar a escola como um lugar que eduque pessoas para além de serem peças produtivas de um sistema, para além de uma pessoa de que “se dê bem na vida”. E aqui cabe mais uma pergunta: o que é uma pessoa de sucesso?

Outros valores precisam urgentemente entrar nesse jogo para que possamos avançar coletivamente como sociedade, ou melhor para que possamos ter alguma chance de futuro.

De fato, para quem está desse lado, fica bem claro que vivemos uma crise de cuidado. Não só mães, mas todos temos sofrido com as precarizações na vida e no trabalho. A nossa aldeia precisa ser restaurada, e nossas escolas também! E será que aqui não cabe ao menos a dúvida se não sou eu, nós, que estamos deficientes? Quais são as deficiências que trago dentro de mim convenientemente escondidas? Deficiências da alma não seriam as que realmente deveríamos segregar e curar? Como vamos desenvolver ensino empático e amoroso, como vamos aprender a lidar com as dificuldades e limitações de cada um se todos são iguais e fazem birra por futilidades?

Será que não temos nada mesmo a aprender com as crianças deficientes?

Trago aqui instigações, mas vale notar que essas ideias não são nenhuma novidade. Mais do que tratar de qualquer deficiência física ou intelectual de nossas crianças, esse retrocesso aponta para uma deficiência de nossa sociedade em viver em comunhão com diferentes. Contudo, não deveria haver nada de novo, para sociedades que se dizem cristãs, no dever de acolher necessitados, de não julgar pela aparência, ou de que os pais devam viver a vida comum do lar.

No entanto, mais de dois mil anos depois, ainda precisamos ensinar, ouvir e refletir sobre esses preciosos ensinamentos. Quantas oportunidades ainda vamos perder?

 

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