Como é o acesso e a qualidade dos serviços de saúde oferecidos às mulheres no estado brasileiro em que elas tem maior longevidade? O que é preciso aprimorar para que estas vidas longas sejam vividas também com qualidade por todas as mulheres? Estas foram algumas das perguntas que a 1ª Conferência Estadual de Saúde das Mulheres de Santa Catarina (1ª CESMU) procurou responder através dos debates feitos pelas próprias interessadas: mulheres – e alguns homens – que usam e prestam os serviços de saúde no Estado.
No total, 1.080 inscritas/os, entre delegadas/os e convidadas/os, participaram da 1ª CESMU no Centro de Convivência e Eventos da UFSC nos dias 13 e 14 de junho. Sob o tema “ Saúde das Mulheres: Desafios para a Integralidade com Equidade”, a etapa estadual da Conferência Nacional de Saúde das Mulheres avaliou e votou as propostas de aperfeiçoamento do SUS, formuladas durante as cerca de 45 conferências municipais, regionais e livres, envolvendo usuárias, gestoras e profissionais de saúde de mais de 280 cidades. As proposições foram geradas sob quatro eixos temáticos: “O papel do Estado no desenvolvimento socioeconômico e ambiental e seus reflexos na vida e na saúde das mulheres”; “O mundo do trabalho e suas consequências na vida e na saúde das mulheres”; “Vulnerabilidades e equidade na vida e na saúde das mulheres”; e “Políticas públicas para as mulheres e a participação social”.
Longevidade para todas
As mulheres catarinenses tem a expectativa de chegar aos 82,1 anos, mais de quatro anos em relação aos homens (75,4 anos) e sete a mais do que a média brasileira (75,5), segundo o estudo Tábua Completa de Mortalidade para o Brasil, divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no ano passado. Mas a longevidade registrada nos índices do IBGE não abrange todas as populações. Entre as mulheres trans, por exemplo, a expectativa de vida chega a menos da metade: 35 anos, segundo a Associação Nacional de Transexuais e Travestis do Brasil (Antra). E se na região sul as mulheres negras são minoria – 20,3%, segundo a PNAD/IBGE 2011 -, elas formam um considerável contingente entre as 3,4 milhões de pessoas pobres e que mais necessitam dos serviços públicos de saúde no Estado.
Representar as demandas a partir destas realidades é um desafio, em geral, assumido pelas representantes dos movimentos sociais dentro das conferências. Como em qualquer espaço múltiplo, as disputas aparecem e as propostas geram intensas controvérsias. Mulheres lésbicas e negras passam trabalho explicando à maioria branca por que merecem maior representatividade. Mulheres trans e travestis recebem olhares curiosos e denunciam transmisoginia. Homens assumem o microfone e a voz de comando no decisivo momento da eleição das delegadas para a fase nacional. Religiosos defendem, nos grupos, propostas conservadoras, como a defesa da “família tradicional”. Nas rodas de café, participantes cansadas da maratona das longas horas de apreciação das propostas tecem seus próprios comentários sobre os temas em debate.
“O plenário se mostrou extremamente conservador em alguns momentos. Porém, com muito embate, conseguimos aprovar propostas de atenção especialmente as mulheres em situação de vulnerabilidade social, LBTs e em situação de rua”, conta a ativista LBT da região de Chapecó, Carol Listone. Entre as propostas, a ampliação dos ambulatórios para o atendimento específico da população trans. “A conferência demonstrou o quanto ainda é necessário lutar por reconhecimento e por políticas públicas”, argumenta a ativista.
A participação organizada das mulheres negras rendeu a aprovação de diversas propostas com recorte étnico-racial. “Algumas propostas foram rejeitadas mas eu me sinto contemplada pelas que passaram”, afirma a coordenadora da União dos Negros pela Igualdade (Unegro/SC), Kaionara dos Santos.
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Era preciso eleger 48 delegadas/os: 24 representantes do segmento de usuárias, 12 de profissionais de saúde e outras 12 de gestores/as. Mariana Franco, delegada de Jaraguá do Sul e ativista travesti, foi uma das eleitas para representar o segmento de usuárias na Conferência Nacional. Dividida entre o choque do clima conservador e a satisfação em compor o corpo de delegadas/os catarinenses, ela conta que voltou para casa abalada com as situações de transmisoginia e racismo que presenciou. “O nível de preconceito foi assustador. Se eu passei por isso em um espaço como este, imagine as pessoas LBTs que procuram os postos de saúde pelo Estado”, afirmou. Entretanto, elogiou o nível das palestras do primeiro dia do evento e se diz orgulhosa por representar Santa Catarina na fase nacional. “Foi gratificante ter participado e será uma honra representar o estado. Que haja mais conferências como esta, especialmente para atualização das profissionais de saúde”, afirmou.
Para a presidenta do Conselho Estadual dos Direitos das Mulheres (Cedim), Sheila Sabag, a conferência deixou evidente que falta debate sobre as necessidades específicas das mulheres nos serviços locais de saúde, como atendimento aos casos de violência sexual ou aborto legal. “As propostas vindas dos municípios mostram que as informações referente aos direitos das mulheres não estão chegando nos municípios”, observou. Apesar disso, a conferência foi exitosa, na opinião da presidenta do Cedim, considerando a ampla participação e o envolvimento das secretarias e dos conselhos de saúde e de direitos da mulher na organização do evento.
Empoderamento e resistência são saldo da conferência
O processo de debate das políticas de saúde pelas próprias mulheres também surte dois efeitos imediatos: o aprendizado a partir do contato com realidades diversas e o empoderamento das mulheres. Na mesma sala, 1080 mulheres e homens – cerca de 650 delxs, delegadxs – agricultoras, negras, trans, lésbicas e tantas outras têm oportunidade de falar das barreiras que encontram no atendimento pleno das suas necessidades de saúde.
A participação direta na conferência também transforma o trabalho de quem promove a atenção à saúde, acredita Carmem, que também é enfermeira e coordenadora em Santa Catarina do programa de atenção humanizada às gestantes Rede Cegonha, do Ministério da Saúde. “É muito rico para a nossa prática profissional acompanhar as diferentes percepções das usuárias, conhecer com quem nós trabalhamos, saber quem é esta mulher que mora em Santa Catarina, que necessidades ela tem e como nós, gestores e profissionais de saúde, podemos trabalhar para que sejam atendidas”, afirma. “Às vezes, nós, da saúde, pecamos por nos envolver demais no cotidiano e não ouvir as pessoas. Valorizo a construção de espaços para discussão porque é um dos maiores instrumentos de escuta. Assim, teremos noção da real necessidade das pessoas”, concorda a enfermeira e assessora da coordenação da política nacional de humanização da Secretaria de Estado de Santa Catarina, Ledronete Silvestre, que integrou a relatoria da 1ª CESMU.
A 2ª Conferência Nacional de Saúde da Mulher é uma promoção do Conselho Nacional de Saúde com o apoio dos conselhos de controle social e secretarias estaduais e municipais .