A promotora Fabiana Dal´Mas Paes é nossa entrevistada sobre o caso do médico que estuprava mulheres durante o trabalho de parto, após aplicar anestesia em excesso nas pacientes.

O caso do anestesista Giovanni Quintella Bezerra, filmado enquanto estuprava uma mulher sob trabalho de parto no Hospital da Mulher Heloneida Studart, na Baixada Fluminense (RJ), escancarou realidades que se entrelaçam e afetam diretamente a vida das mulheres brasileiras: a cultura do estupro e a violência obstétrica. O médico aplicava anestesia em excesso e violava as vítimas enquanto o parto acontecia e outros membros da equipe médica estavam na sala. Foram as enfermeiras que estranharam o comportamento de Giovanni e gravaram o crime.

Após o flagrante no último domingo (10 de julho), outras três mulheres se apresentaram à delegacia para denunciar o anestesista. A primeira mulher atendida nesse dia quer processar o hospital por negligência e por não ter interrompido o ato. A Polícia Civil do Rio de Janeiro anunciou que irá investigar 30 partos em que Giovanni participou. 

O espetáculo de misoginia, que ocorreu em hospital público ao lado da equipe médica e provavelmente replicado em dezenas de vítimas, pode ser explicado pelas desigualdades de gênero e pelas relações assimétricas entre médicos e pacientes mulheres. O fato de parte da categoria médica negar a existência da violência obstétrica — ainda não tipificada pelo Código Penal — explica o quão desproporcional é essa relação.

Para compreender as implicações legais e consensos no campo dos direitos humanos sobre o combo das violências obstétrica e sexual, conversamos com Fabiana Dal´Mas Paes, promotora de justiça do núcleo central do Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento À Violência Doméstica (GEVID), de São Paulo. Paes tem uma longa carreira relacionada às violências de gênero na sociedade. É mestre em Direitos Humanos e Justiça Social pela University of New South Wales, na Austrália. Presidente da Associação Brasileira Das Mulheres De Carreira Jurídica de São Paulo (ABMCJ SP) e da Comissão de Saúde Reprodutiva da International Federation of Women in Juridical Career (FIFCJ).

Confira a entrevista:

Catarinas: Quais crimes podemos citar que foram cometidos nesse caso?

Fabiana: O investigado praticou o crime de estupro de vulnerável. Também praticou diversos atos que caracterizam a violência obstétrica, como o afastamento do bebê em relação ao contato com a mãe, o afastamento do acompanhante, como é um direito dela estar acompanhada durante todo o tempo em que está recebendo essa assistência no parto. Além disso, o excesso de anestesia, que foi informado pela imprensa, também caracteriza uma violência obstétrica. Quanto a tipificação desses atos de violência obstétrica, ainda se deve depender do depoimento das testemunhas e da realização de exame pericial para eventualmente ser possível a tipificação como efetivamente um crime ou uma contravenção penal. De qualquer forma, todos esses elementos servem para agravar a pena do investigado em razão dessas circunstâncias graves que trazem consequências nefastas, não apenas na vida dessa gestante, dessa vítima, mas na vida de toda a família.

Catarinas: A violência obstétrica em si não é considerada um crime no código penal brasileiro. Como ela pode ser tipificada dentro de um processo em um caso como esse?

Fabiana: A violência obstétrica consiste na ação ou na omissão direcionada à mulher durante o pré-natal, o parto, o puerpério ou até mesmo em processo de abortamento, que cause dor, dano, sofrimento desnecessário à mulher, praticado sem o seu consentimento explícito ou em desrespeito a sua autonomia, a sua integridade física e mental, aos seus sentimentos e preferências. A expressão engloba não apenas as condutas praticadas por médicos, mas também por todos os prestadores de serviço na área da saúde. 

No meu entendimento, a violência obstétrica é um termo relativamente novo para descrever problemas antigos, que acontecem há muitos anos e que se relacionam com três aspectos importantes: os direitos de gênero, o direito à saúde e os Direitos Humanos.

Nesse caso concreto do médico, é preciso ainda ouvir as testemunhas, analisar as provas pra verificar a eventual possibilidade de tipificação em algum outro crime além do crime de estupro de vulnerável. Pode-se caracterizar diversas formas de violência obstétrica. Nesse caso, verifica-se que esse excesso de anestesia, que foi mencionado na imprensa, precisa ser investigado para verificar se causou algum dano ao bebê ou à gestante e como isso aconteceu.

Também, nós precisamos avançar ao exemplo de outros países, como Argentina e México, que já possuem uma legislação específica tipificando a conduta da violência obstétrica, se esse não seria um caminho necessário aqui na nossa legislação, porque realmente de forma específica o código penal não contempla essa violência.

Nos termos do protocolo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de julgamento com perspectiva de gênero, destaca-se o seguinte, “ainda que o Brasil não tipifique como crime autônomo a violência obstétrica, além de tratados e documentos internacionais, a Constituição Federal, a legislação infraconstitucional e os regulamentos técnicos funcionam para os devidos fins de responsabilização criminal, inclusive quando tais violações aos direitos humanos de mulheres e meninas são praticadas quando da prestação de serviços essencial e emergencial às parturientes”. Então, de acordo com o protocolo que foi lançado recentemente pelo CNJ, é uma obrigação do Estado brasileiro coibir crimes de violência obstétrica, tanto em razão dos fundamentos dos tratados internacionais, como Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), a Convenção De Belém Do Pará, a Convenção de Istambul, tanto em razão da legislação infraconstitucional e da Constituição Federal, o nosso país tem a obrigação de coibir esta forma de violência contra as mulheres.

Catarinas: Após a divulgação do caso, outras mulheres se apresentaram para denunciar o médico, quase como um efeito dominó. Quais os motivos que podem ter impedido essas mulheres de terem denunciado o crime antes do caso ganhar notoriedade? 

Fabiana: Realmente nós verificamos que as mulheres apenas tiveram coragem de denunciar outros casos de violência que sofreram e foram praticadas por esse investigado após o caso vir a público e isso tem uma relação muito profunda com o que nós chamamos de cultura do estupro.

É uma cultura que menospreza a mulher diante da sua condição, ele faz com que se tolere a violência contra a mulher, sempre enaltecendo os homens e diminuindo a palavra da mulher.

É uma cultura que muitas vezes faz com que na expressão da mídia nós tenhamos diversos atos que objetificam a mulher, como um excesso de pornografia violenta que justamente faz com que se incite a prática de violência sexual contra as mulheres. Então toda essa cultura faz com que as mulheres pensem que se elas procurarem as autoridades, elas não vão ser acreditadas. Pelo contrário, elas podem ser desmerecidas, pode não ser dada a credibilidade da palavra delas. Por isso, existe a falta de coragem para denunciar. Mas precisamos quebrar esse ciclo. É muito importante que as mulheres entendam que nós sempre precisamos denunciar. Inclusive, quanto mais rápido, melhor. Até mesmo para conter a ação de pessoas como esse agressor.

Catarinas: Mesmo no caso que comprovou o que acontecia, as enfermeiras precisaram gravar um vídeo para levar a denúncia adiante. Quais as dificuldades que mulheres enfrentam para provar que existe um crime e terem a denunciada levada a sério?

Fabiana: As dificuldades das mulheres no acesso, tanto aos equipamentos de saúde, quanto ao sistema de justiça, são muitas. Nós sabemos que há muita dificuldade em diversas situações, não existe o acolhimento da forma como as mulheres deveriam ser acolhidas. Todas essas barreiras muitas vezes fazem com que uma mulher tolere a violência durante muito tempo antes de procurar as autoridades policiais ou até mesmo o setor de saúde. Então são barreiras realmente que existem no sistema.

E como nós quebramos essa barreira? Através do binômio da prevenção e da punição.

Dentro da prevenção, nós já temos vários equipamentos importantes, como por exemplo a Delegacia da Mulher, que tem profissionais mulheres treinadas com sensibilidade de gênero para acolher as vítimas. Mas nós temos, além de trabalhar a quantidade de delegacias da mulher no Brasil todo, que trabalhar a qualidade desse atendimento, porque ainda há muitas reclamações de que os atendimentos não são da forma como as mulheres brasileiras merecem.

Catarinas: A polícia investiga o estupro de 30 mulheres que tiveram o parto com a presença de Giovanni na equipe médica. O médico se formou há cinco anos e desde abril atua como anestesista, já tendo passado por pelo menos 10 hospitais. O contexto de denúncias coletivas, evidenciando o modus operandi, pode contribuir diante da ausência de provas nos outros casos?

Fabiana: Sim, é importante que se investigue cada um desses estupros. Por trás das denúncias, existem as vidas das mulheres, vidas de famílias inteiras. O fato de não haver vídeos certamente deverá ser contemplado com a questão de que a palavra da vítima tem valor e tem que ser dada à devida credibilidade para esta palavra. Além disso, é possível termos outros elementos de provas, como fotografias, mensagens, provas testemunhais que viram, que ouviram, que conversaram com a vítima. Essas provas podem ser podem ser diretas ou indiretas. É possível que se tenha uma prova pericial. Também que a vítima que tenha passado por um trauma em relação a esse investigado tenha procurado uma psicóloga, existindo um laudo psicológico. Existem diversos elementos de provas para além da filmagem.

O fato de haver várias mulheres fazendo o mesmo relato em relação ao mesmo investigado demonstra a personalidade do agente e o modus operandi, então certamente esse coletivo tem uma força por si só. 

Catarinas: Giovanni irá responder por estupro de vulnerável, cuja pena varia de 8 a 15 anos de reclusão. Em casos em que há múltiplas vítimas, como ocorre o julgamento e condenação do acusado? 

Fabiana: Ele será investigado por todos os fatos criminosos por ele praticados. Haverá uma decisão da autoridade policial e dos promotores que conduzem o caso se essa apuração vai ser feita de forma individual ou com ou de forma coletiva. É uma estratégia que deve ser traçada pelos profissionais que estão com atribuição para trabalhar nesse caso. Tudo vai depender da análise e da complexidade desse caso, que só é possível de concluir a respeito disso após essa apuração e essa decisão dos profissionais que estão incumbidos de fazer a investigação.

Catarinas: O parto nos hospitais é um dos momentos de maior vulnerabilidade que uma pessoa que gesta poderia vivenciar. Nele, a equipe médica assume uma posição de poder e controle. Como as relações de poder subscritas em nossa sociedade impactam para que crimes como esse ocorram?

Fabiana: Existe um descompasso, uma desigualdade, entre o médico e a paciente. O médico está exatamente numa situação superior. E a paciente numa situação de total vulnerabilidade. Porque nesse momento tão importante, tão delicado e tão mágico, a vida e a integridade física e psicológica dela estão nas mãos deste médico, deste profissional de saúde. Isso acontece em várias áreas da sociedade porque nós estamos falando do nosso país. 

O Brasil ainda precisa evoluir muito para que não seja um uma cultura que enfatiza tanto o patriarcado e discriminações raciais. Para que seja uma cultura que respeite os direitos das mulheres. Como diz a Michelle Bachelet, a igualdade de gênero deve ser uma realidade vivida. No Brasil nós não vivemos essa realidade infelizmente.

Catarinas: O caso foi denunciado por enfermeiras mulheres. O crime é investigado em uma Delegacia de Atendimento à Mulher. Qual a importância de termos mulheres atuando diretamente em situações que envolvem estupro?

Fabiana: É muito importante nós enaltecermos a equipe de enfermagem que fez a denúncia. Nós sabemos que além de mulheres, a equipe de enfermagem estaria supostamente em uma posição de hierarquicamente inferior ao médico. Então isso poderia causar problemas para elas nessa estrutura de poder que é um hospital. E sim, é fundamental que casos de violência sexual contra mulheres sejam investigados e processados por agentes de justiça, seja na delegacia de polícia, seja no Ministério Público, seja no judiciário, com uma intensa participação das mulheres.

Mas não basta ser mulher, é muito importante que essas profissionais tenham também um treinamento, uma capacitação, uma sensibilidade de gênero, para compreender no que consiste a violência contra a mulher, no que consiste a desigualdade de gênero, quais são as consequências do ciclo de violência.

Então uma formação profunda de direitos humanos é essencial. Acredito que os homens possam também fazer esse atendimento no sistema de justiça, desde que haja essa sensibilização, essa capacitação e essa formação contínua para compreensão do fenômeno.

Catarinas: Até mesmo nos casos de crianças, em que sabemos que se trata de estupro perante a lei, levanta-se dúvidas sobre o caráter de violência, como no caso da menina de 11 anos que teve o aborto legal inicialmente negado. De que forma essa desconfiança generalizada impede meninas e mulheres de levar adiante uma denúncia? 

Fabiana: É verdade, o estupro infelizmente é um dos crimes mais subnotificados, em que há um tabu, um medo de se denunciar. Mas é importante que nós façamos esse trabalho de conscientização, de divulgação de ideias e canais de denúncia, porque as meninas precisam ser encorajadas a denunciarem. O que a sociedade precisa compreender? Que o estupro é um crime contra a dignidade sexual da vítima. Seja ela uma criança, seja ela uma mulher. No caso da criança é presumida a violência. No caso da mulher, se houver ou um estado inconsciente, como no caso desse crime investigado, também caracteriza o estupro de vulnerável. Além disso, se houver violência ou grave ameaça e não houver consentimento da mulher, configura-se o crime. Se a vítima estava no baile funk, se ela está vestida com saia curta, com top, a forma como ela se comporta, nada disso tem relação se ela não consentiu com a prática do ato sexual. O sistema de justiça também precisa começar a respeitar e dar uma maior credibilidade à palavra das vítimas. O estupro é um crime gravíssimo. As consequências para as vítimas permanecem para o resto da vida. 

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