O Tribunal de Justiça de Santa Catarina inocentou o empresário em decisão divulgada nesta quarta-feira (9); Advogadas dizem que Mariana recebeu a notícia com muita indignação.

*Colaboração de Inara Fonseca

A equipe de advogados de Mariana Ferrer vai recorrer da decisão que absolve André de Camargo Aranha da acusação de estupro de vulnerável – caso em que a vítima não tem capacidade de consentir. A decisão emitida nesta quarta-feira (09) pelo juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, causou espanto e movimentou mais uma vez as redes sociais que voltaram a pedir #JustiçaPorMariFerrer. Aranha é acusado de estuprar a influenciadora digital em um beach club, em Jurerê Internacional, Florianópolis (SC), em dezembro de 2018.

A advogada de Mariana, Jackie Francielle Anacleto, conversou com a vítima logo após a decisão.

“O estado dela não tem nem como descrever. Imagina uma vítima que sofre o que ela sofreu e ter este tipo de resultado. Ela recebeu a notícia com indignação”, conta. 

Um dos questionamentos que mais ecoou na internet foi a alegação do magistrado sobre a ausência de “provas contundentes nos autos a corroborar a versão acusatória”. No processo, além do depoimento de Mariana, consta o resultado do exame pericial que confirma os traços genéticos com o do acusado, a presença de sangue e a ruptura do hímem indicando que até então Mariana era virgem. Há ainda anexado imagens da câmera de segurança no momento em que ambos sobem pela escadaria que dá acesso ao camarim onde a vítima teria sido violentada.  

“A decisão diz que Aranha poderia achar que ela não estava dopada e que queria a relação, diz que ele a estuprou sem intenção de estuprar, mas eles não levaram em consideração que o réu mente desde o primeiro depoimento. Primeiro ele negou à polícia que tinha tido contato com a Mariana, e no segundo momento ele disse que não teve conjunção carnal, mas como se tem vestígios? Os argumentos da decisão são muito frágeis“, afirma Jackie Anacleto

Roupas Caso Mariana Ferrer
Roupas usadas por Mariana Ferrer no dia do suposto estupro. (Foto: Divulgação)

Segundo o código penal, o conceito de estupro é amplo. Ele é classificado como o ato de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Quando o que se comete é o estupro de vulnerável, ou seja, sem que a vítima tivesse condições de se manifestar, a presunção de violência passa a ser, em tese, absoluta, e não mais relativa. Mesmo assim, em todos o casos leva-se em consideração a presunção de inocência, porém é inegável que a valoração da palavra da vítima deve ser maior. Por conta da cultura de estupro enraizada na sociedade em que se coloca o holofote na vítima (ou nas roupas da vítima, por exemplo) e não no acusado, os resultados de processos de estupro no Brasil não são levados a sério no Brasil. 

“A palavra da vítima tem que contar, às vezes é a única coisa que ela tem, no caso da Mariana tinham mais coisas. Tinham testemunhas, ela juntou quase tudo que era possível, ela foi atrás das imagens das câmeras de segurança, das roupas, das conversas de whatsapp. É diferente porque não foi só a palavra dela contra a dele, tem um compilado de coisas que ela recolheu, são muitos indícios e mais, uma pessoa se expondo dizendo o que aconteceu, se isso tudo não leva à condenação de um homem branco e rico, quais chances nós temos de alguém denunciar uma situação parecida na periferia, de denunciar o chefe, por exemplo?”, questiona Liliane Araújo, integrante do Coletivo Valente de mulheres do judiciário catarinense.

Na decisão o magistrado alega que “da análise das imagens, é possível perceber que a ofendida durante todo o percurso mantém uma postura firme, marcha normal, com excelente resposta psicomotora, cabelos e roupas alinhadas e, inclusive, mesmo calçando salto alto, consegue utilizar o aparelho telefônico durante o percurso”. Apesar do laudo toxicológico ter apontado a inexistência de álcool e substâncias químicas, Mariana relata ter  lacunas de memórias de uma parte da noite. 

“Sabemos que há uma infinidade de drogas que levam a esse tipo de apagamento/sedação. É fundamental saber qual exame foi feito, qual substância testada, a metodologia de teste. Inclusive, porque tem drogas que a característica é justamente desaparecer rápido do organismo. E ainda que não se tenha encontrado vestígios, não se pode descartar outros elementos comprobatórios”, afirma a advogada Isabela del Monde, integrante do Me too Brasil e da Rede Feminista de Juristas.

Caso Mariana Ferrer: Essa absolvição por ausência de provas é um deboche

Imagens Caso Mariana Ferrer
Imagem da câmera de segurança do beach club, Cafe de La Musique, em que Mariana e André aparecem subindo a escadaria que dá acesso ao camarim onde a vítima teria sido violentada. (Foto: Reprodução)

De acordo com a advogada de Mariana há uma testemunha fundamental que comprova que ela estava dopada.

“O depoimento do motorista do Uber coaduna com a gravação feita através do celular com a mãe da Mariana, ele diz que ela estava visivelmente dopada. Está muito claro que ela estava dopada, que não estava consciente. Não estamos falando de um furto, o delito de estupro é um delito que ocorre na surdina, então o depoimento da vítima tem que ter valor”, afirma Anacleto. 

O caso de Mariana Ferrer foi recheado de falhas na investigação e intimidações. O beach club possui 37 câmeras de segurança, mas só as imagens da escadaria foram anexadas aos autos, o inquérito policial demorou 7 meses para ser finalizado quando o prazo são 30 dias. “O antigo promotor do caso, Alexandre Piazza, deixou claro que os dois delegados que atenderam a Mariana primeiramente deveriam responder a um inquérito por má conduta das investigações. Um deles chegou a aparecer na casa de Mariana quando a mãe não estava no local”, conta a advogada de acusação. 

Outra questão que chama atenção é a tentativa de silenciamento da vítima. No dia 18 de agosto deste ano, uma decisão da justiça retirou do ar uma das redes sociais de Mariana onde ela postava detalhes do caso desde maio de 2019. No twitter, Mariana se revoltou com a decisão.

Parecer do MP a favor do réu causa estranhamento, dizem juristas

Leia mais

A decisão em inocentar o empresário André Aranha é respaldado pelo parecer do Ministério Público de Santa Catarina a favor da absolvição do réu ante a falta de provas. Apesar do MP ter o poder em pedir a absolvição do réu, o posicionamento pela inocência causou estranheza por parte de juristas.

“É complicado essa posição do MP, causa estranhamento que o próprio Ministério tenha achado que era tão óbvio a absolvição, é um absurdo, porque se tem uma chance da Mariana estar certa, o MP tem que fazer de tudo para que essa pessoa seja presa. Fico curiosa em relação à conduta. Da onde essas pessoas conseguem achar que é tão absurdo a possibilidade da Mariana ter sido estuprada?, questiona Liliane Araújo. 

De acordo com o promotor do caso, Thiago Carriço Oliveira, “após analisar todos os indícios e elementos de prova, não descarta a hipótese de inconsciência da vítima, já que esta é sua alegação. Todavia, os exames toxicológico e de alcoolemia testaram negativo no dia seguinte ao fato. Do mesmo modo, não foram constatados elementos que comprovem que o acusado tinha conhecimento da suposta inconsciência da vítima”.

“A tese usada pelo MP é que ela não estava dopada, tem testemunha que diz que ela estava normal, outras dizem que ela estava bêbada e outras dizem que ela estava drogada, considerando que não considero nenhuma delas como testemunha por terem relação com o Cafe de La Musique. Mesmo ela estando bêbada, ele não poderia ter tido relação sexual com ela”, ressalta Jackie Anacleto. 

Para a advogada Isabela Del Monde não dá pra descartar elementos de raça, gênero e classe presentes neste caso. “O Ministério Público pediu absolvição e ele tem a função de acusação. Quem estava acusando pediu absolvição, ignorando todos os demais elementos  de prova. A minha análise é de que a gente está diante, mais uma vez, de homens brancos com condições financeiras decidindo sobre a situação”, declara. 

E completa: “Fica clara a seletividade do Ministério Público com essa atuação. Nunca vi nenhum Ministério Público, por exemplo,  pedindo a absolvição de um garoto de 19 anos com um baseado de maconha. Nesses casos, ele é um grande traficante de altíssima periculosidade. O Ministério Público é contra o punitivismo do Estado em determinadas situações, com alguns determinados sujeitos e não são os sujeitos pretos e pobres da periferia. Este caso da Mariana Ferrer revela, na verdade, a seletividade do próprio sistema penal em si. Se você é um empresário, branco, rico, com poder de influência, ainda que existam inúmeros elementos probatórios, o Judiciário e o Ministério Público vão conseguir proteger o seu caso”. 

Imagem Caso Mariana Ferrer
Momento em que Mariana desce a escadaria do camarim. Logo depois o empresário também sai do local. (Foto: Reprodução)

“Melhor absolver cem culpados do que condenar um inocente”, trecho do juiz na decisão

Na decisão o juiz chega a citar o ditado, “melhor absolver cem culpados do que condenar um inocente”. O trecho foi rechaçado pelas advogadas entrevistadas. 

“Eu nunca vi um juiz falando isso para uma decisão que fosse de uma pessoa negra. Nós temos a terceira maior população carcerária do mundo, se o juiz falasse isso pra todos os casos a realidade brasileira seria diferente, certo? A questão é que há uma seletividade absurda no sistema penal brasileiro que fica claro no caso da Mariana Ferrer. O olhar de um promotor, de um juiz, de um policial não vê como bandido pessoas brancas que se parecem seus filhos, seus netos. No Brasil, homem branco não é bandido. É um reflexo claro do patriarcado e do racismo que coloca também as mulheres como seres de segunda categoria de cidadania”, afirma del Monde.

Para Liliane Araújo, do coletivo de mulheres do judiciário, a raiz do problema é o machismo enraizado na justiça brasileira. “O judiciário não é um ente a parte da sociedade, ele é contaminado pela sociedade. Se por um lado há um esforço de integrantes da justiça pelos direitos das mulheres, por outro o machismo ainda é muito forte lá dentro. Essa frase do juiz é um escárnio. Se esses cem culpados respondessem por estupro, então seriam cem, duzentas, trezentas vidas destruídas. Essa fala deixa claro que a vida da mulher não vale nada”, declara. 

A última audiência ocorrida no fim de julho deste ano foi um exemplo claro de como a cultura do estupro funciona. As roupas e a aparência física de Mariana foram usadas em meio a falas machistas da defesa com objetivo de desvalidar o caráter e a intenção da vítima. A estratégia trata de considerar Mariana como um objeto e não como uma pessoa. De acordo com a advogada de Mariana, a defesa usou fotos de trabalhos da modelo na tentativa de humilhá-la.

“O tempo todo o advogado de defesa vulgarizava a Mariana com as fotos, mostrava as imagens e falava “olha esse dedinho na boquinha”. Ele chegou a mostrar uma foto em que a Mariana está de cócoras vestida com uma camiseta e soltou “Essa tua pose ginecológica”. O promotor não se manifestou contra esses comentários, ficou calado o tempo todo”, conta Anacleto. 

A reportagem entrou em contato com a delegada Caroline Monavique Pedreira, da Dpcami (Delegacia de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso) da Capital, mas ela não quis se manifestar por o processo correr em segredo de justiça. O Ministério Público de SC se pronunciou através de nota presente na matéria. 

A Associação dos Magistrados Catarinenses (AMC) divulgou nota em que afirma estar de acordo com a sentença proferida pelo juiz. 

Nota da AMC

“A Associação dos Magistrados Catarinenses (AMC) vem a público manifestar-se a respeito da sentença proferida ontem (09/09/20) pelo juiz da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, cujo teor gerou manifestações nas redes sociais.

A sentença em questão, amplamente fundamentada pelo magistrado, dá conta da absolvição de réu denunciado pela suposta prática de estupro de vulnerável (art. 217-A, §1º, do Código Penal) com base nas provas produzidas nos autos e, também, em razão da manifestação do Ministério Público de Santa Catarina (MPSC), que considerou as provas do processo insuficientes para amparar condenação. Ao juiz cabe analisar as provas apresentadas e julgar nos termos da lei, sem descuidar de que sejam observados os direitos e garantias de todos os envolvidos no processo.

Eventual descontentamento com decisão judicial deve ser apresentado na forma legal, por meio dos recursos cabíveis que estão à disposição da vítima e de seus representantes legais.

Ao sistema judiciário e seus operadores exige-se respeito. Ofensas pessoais e ameaças ao magistrado, veiculadas principalmente nas redes sociais, serão devidamente apuradas e seus autores, responsabilizados nos termos da lei.

A AMC destaca o seu compromisso com a defesa das prerrogativas da magistratura, dentre as quais a independência de todas as juízas e juízes para julgar com a autonomia necessária para interpretarem a lei e as provas de cada processo.”

Linha do tempo do caso Mariana Ferrer

Linha do Tempo Caso Mariana Ferrer
Arte: Inara Fonseca / Portal Catarinas

O jornalismo independente e de causa precisa do seu apoio!


Fazer uma matéria como essa exige muito tempo e dinheiro, por isso precisamos da sua contribuição para continuar oferecendo serviço de informação de acesso aberto e gratuito. Apoie o Catarinas hoje a realizar o que fazemos todos os dias!

Contribua com qualquer valor no pix [email protected]

ou

FAÇA UMA CONTRIBUIÇÃO MENSAL!

Palavras-chave:

Últimas