Em entrevista ao Portal Catarinas, a indígena Aymara fala sobre a criação do projeto político feminista comunitário antipatriarcal frente às violências contra os povos e as mulheres indígenas na Bolívia.
Autonomia, autogestão, auto-organização: poder decidir sobre os seus corpos e suas comunidades. Esses conceitos e ações práticas estão no cerne do projeto político do feminismo comunitário antipatriarcal. Para Adriana Guzmán, mulher indígena Aymara da Bolívia, lésbica, feminista comunitária antipatriarcal, reconhecida pelo movimento indígena e pelos movimentos feministas latino-americanos, é fundamental que se considere os diferentes modos de vida que existem nos territórios para que, unidos, defendam sua cultura pela organização local, comunitária.
Nesta segunda publicação da série produzida com trechos da entrevista concedida por Adriana Guzmán ao Portal Catarinas, a feminista indígena reflete sobre a ideia de autonomia. É um convite à reflexão, uma vez que buscamos referências que contribuam para fortalecer a caminhada contra as opressões e as violências contra as mulheres e em direção à construção de um novo mundo.
Leia a primeira parte da entrevista aqui:
PORTAL CATARINAS – Você dizia anteriormente sobre a importância da autonomia para o projeto político do Feminismo Comunitário Antipatriarcal. Poderias explicar como vocês entendem a questão da autonomia?
ADRIANA GUZMÁN – É uma das coisas principais para nós para pensar na comunidade como uma forma de organização de vida pelas mãos das feministas comunitárias e pensar em comunidade de comunidades como uma forma de organização do mundo, mais além dos Estados. Porque a nós o Estado não serve. Os Estados, inclusive o Estado plurinacional, se bem tem sido um projeto político construído pelo povo, os Estados sempre administram o sistema.
Os Estado e os governos têm que ser também para os ricos. Os governos não são somente para os pobres, os governos têm que administrar os interesses e as ganhos dos ricos. E para ter estabilidade, os Estados deixam os ricos tranquilos e dão um pouco para os pobres, para que não façamos insurreições. Então, não queremos um Estado assim. Não é possível o equilíbrio, não é possível um governo dos povos se seguimos vivendo nesse desequilíbrio, onde os ricos têm poder econômico e político, e nossas irmãs e irmãos somos pobres.
Por isso, a comunidade é autonomia, é autogoverno, quer rotação do poder, quer o poder como um serviço, o cargo de autoridade na comunidade roda, hoje sou eu, amanhã és tu, todos vamos ser autoridade. Ninguém fica 20 anos no poder.
Por isso, a comunidade nos parece tão importante. Além disso, é possível no sentido de que, como pode, no caso da Bolívia, uma pessoa governar para 12 milhões de pessoas? Como? Em um sentido comum é impossível. Por outro lado, na comunidade, nós nos organizamos e resolvemos os nossos problemas, enfrentamos, coordenamos junto com a nossa comunidade, nós trocamos o que necessitamos. É possível. Mil, duas mil, quinhentas pessoas podem se organizar. Mas milhões de pessoas depender de uma só, isso nos parece fora do sentido comum.
Então, na comunidade temos aprendido a lógica da autonomia. A autonomia no sentido de resolver, enfrentar nossos problemas, nossas dificuldades, nossa organização para a comida. A autonomia alimentar. Decidimos o que comemos, como, como nos organizamos.
Na pandemia, por exemplo, se retomou e se aprofundou as comunidades. Para evitar o contágio, se fecharam, e começaram a diversificar sua produção. Antes só se produzia cebola, batatas, agora se produz tudo, para não ter que sair da comunidade.
Essa é a autonomia fundamental. Quando, como povos, podemos produzir o que comemos, não vamos depender do sistema. Não vamos alimentar o sistema e não vamos reproduzir a lógica colonial e racista de que produzam os pobres, produzam as campesinas e produzam os indígenas para que possamos continuar vivendo em meio a todas as comodidades. Então, a autonomia é isso, a possibilidade de definir sua alimentação, sua organização, de resolver seus problemas e de resolver os conflitos. Também está a justiça dentro das comunidades como parte dessa autonomia. A autodeterminação está ligada a isso no sentido de não depender do Estado. Como povos, sobretudo na Bolívia, temos uma longa memória de não depender do Estado, de haver existido à margem do Estado.
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Foi com o Estado plurinacional que nos aproximamos mais do Estado, que começamos a definir que tipo de educação queremos, que saúde queremos, isso tem resultado em vários benefícios, mas também tem tido custo, que é nossa autonomia, que é depender do sistema de saúde. Porque foram criados hospitais, centros de saúde dentro das comunidades e em lugares distantes, mas isso faz com que se esqueça os conhecimentos ancestrais, por exemplo, da medicina ancestral, e que não se resolva os problemas de saúde em comunidade, em seu próprio corpo, com a capacidade de dialogar com o seu corpo, de dialogar com as doenças, que é o que nos ensinou as nossas avós. O que fazem é que tomemos comprimidos, e que se resolva o problema.
Tem seu custo construir um Estado diferente. Para nós, o principal é a autonomia, quando os povos podemos produzir o que comemos e ter ferramentas para enfrentar nossa saúde. Porque parte da alimentação é a saúde. As avós dizem que a comida é o nosso remédio, e nosso remédio é a nossa comida.
Na Bolívia, por exemplo, as mortes por Covid-19 estão concentradas nas cidades e não nas comunidades. E nas comunidades nem sequer estão usando máscara, muitas vezes não há álcool para estarem lavando as mãos o tempo todo. Então, qual é a resposta ali? É esse conhecimento ancestral, é essa comida e essa forma de se alimentar.
Então, tudo tem a ver com a autonomia e com a autodeterminação. E essa autonomia passa, principalmente, pela autonomia dos Estados. Porque se vamos depender dos Estados, se vamos estar sempre nessa discussão política chamada democracia, temos que estar entregando nossas decisões, nossos sonhos, temos que estar cedendo ao mal menor ou lutando pelo menos pior, quando poderíamos estar nos auto-organizando e resolvendo os nossos problemas.
Essa lógica da direita, da esquerda, da democracia, de que não devemos criticar os processos, não devemos criticar os referentes, não se pode falar mal de Lula, não se pode falar mal de Evo, não se pode questionar ninguém porque a direita vai se utilizar, isso não nos parece prática com fundamento. A direita sempre vai tentar submeter os povos, independente do que falamos. Mas a nossa responsabilidade é dizer que queremos irmãos que acompanhem os povos, não queremos caudilhos, porque isso está debilitando os processos. Porque se fazem algo a Lula se cai tudo. Se fazem algo a Evo se cai tudo. Então como é possível que não sejamos responsáveis por sustentar processos mais sólidos a partir dos povos? Então, a autonomia tem a ver com autonomia do Estado.
A partir daí, nós temos começado a discutir a autonomia de nossos corpos. Como é possível que os povos lutem por sua própria justiça e sua própria educação e não nos deixem lutar por nossas próprias decisões sobre nossos próprios corpos? E não somente desde essa autonomia liberal de que “é meu corpo, é minha decisão”, porque nossos corpos não são tampouco propriedade privada. Vamos racionalizar desde a lógica capitalista, não é?
Meu corpo faz parte do corpo político, do corpo comunitário de Pacha¹, mas nossas avós nos ensinaram a decidir quando são tempos de gestar, quando são tempos de parir. E há tempos que não são para parir!
Nesses tempos difíceis, com crise econômica, com pandemia, as mulheres grávidas morrem na porta dos hospitais porque não as atendem, porque não há teste de Covid, porque a prioridade é Covid. As mulheres nunca fomos prioridade. Nunca. Então, é nossa decisão quando é tempo de parir. Abortar é parte da autonomia. Estamos falando de uma autonomia estrutural.
¹ Pacha, é o todo, o tempo, o território, o ar, as estrelas, tudo. Diferente da palavra Pachamama, Adriana Guzmán usa o termo “Pacha”, e explica: “mama é mulher adulta, não é mamá, não é mãe. Pachamama é a terra, a natureza, de cima do ar, daqui da terra, os rios, as montanhas, e de baixo, a água, o gás, os recursos todos. Não é ‘madre tierra’ (mãe terra), essa é uma tradução machista que se usa há uns 15 anos, sobretudo desde que o ex-presidente Evo Morales falou dos direitos da ‘madre tierra’. Mas não é ‘madre’ (mãe). Para nós, é importante dizer isso para denunciar o machismo, mas também o conceito de mãe que se impõe à natureza desde a perspectiva patriarcal – mãe, útero que reproduz e alimenta. Todo o mundo fala de ‘madre tierra’ e não é assim nas cosmovisões dos povos, nem aymara nem outros em México também. É uma feminização e, portanto, uma dominação da natureza”.
Continue lendo a série:
* Esta série é resultado de uma entrevista realizada com a Adriana Guzmán, mulher indígena lésbica Aymara da Bolívia. Dividida em quatro partes, apresentamos suas reflexões sobre a formação do Feminismo Comunitário Antipatriarcal na Bolívia, a importância da autonomia, o lugar da luta pela descriminalização do aborto, a discussão política sobre os fundamentalismos religiosos que tentam subjugar os povos indígenas e o exemplo de mulheres indígenas que lutaram contra o poder colonial até os dias atuais. É um convite à reflexão a partir de uma das referências latino-americanas na luta contra as opressões e as violências contra as mulheres.