Por Vandreza Amante e Morgani Guzzo

Em entrevista ao Portal Catarinas, Adriana Guzmán fala sobre a criação do projeto político feminista comunitário antipatriarcal frente às violências contra os povos e as mulheres indígenas na Bolívia.

A autonomia necessária para a existência plena em comunidade, como propõe o Feminismo Comunitário Antipatriarcal, depende, também, do resgate de nossos próprios corpos e de nosso desejo. Isso perpassa pelo resgate do saber ancestral, que nos permite decidir sobre a hora de gestar, a hora de parir e a hora de abortar.

Para Adriana Guzmán, mulher indígena Aymara da Bolívia, lésbica, feminista comunitária antipatriarcal, reconhecida pelo movimento indígena e pelos movimentos feministas latino-americanos, a legalização do aborto na Argentina foi importante, mas para as feministas comunitárias, o avanço na legislação só tem sentido se vier acompanhado da autonomia das mulheres decidirem como abortar, conectando-se com suas práticas ancestrais compartilhadas em comunidade.

Nesta terceira publicação da série produzida com trechos da entrevista concedida por Adriana Guzmán ao Portal Catarinas, a feminista indígena continua sua reflexão sobre a autonomia, abordando a questão da despenalização do aborto atrelado ao reconhecimento e ao resgate dos saberes ancestrais. “Nossos corpos sabem como parir, nosso corpos sabem como abortar”, declara.

É um convite à reflexão, uma vez que buscamos referências que contribuam para fortalecer a caminhada em direção à uma existência plena, em que possamos decidir sobre nossos corpos e nossas vidas.

Leia também a segunda publicação da série, sobre a questão da autonomia.

PORTAL CATARINAS – No final do ano passado, a Argentina legalizou o aborto até a 14ª semana, resultado de uma luta histórica das mulheres e de articulações muito amplas entre vários setores na Argentina. Para o Feminismo Comunitário Antipatriarcal, alcançar a autonomia perpassa por uma mudança na legislação, por dentro do Estado?

ADRIANA GUZMÁN – Bem, há que se fazer várias lutas ao mesmo tempo. Nós queremos ser autônomas do Estado mas, com isso, o Estado não desaparece, o Estado existe. Então, precisamos recuperar nossa autonomia em termos de alimentação, em termos de saúde, em termos de organização, porque quem te garante os direitos? Realmente, se o Estado garantisse os direitos, mas ele tem mostrado que não pode e nem lhe interessa garantir que as mulheres não sejam mortas todos os dias. Quem pode garantir é a tua comunidade, tua organização, a organização entre mulheres.

O Estado existe e temos que lutar e exigir do Estado que cumpra sua responsabilidade. E para nós, quando temos pensado no estado plurinacional, tem sido para construir um Estado distinto, que seria possível construir um estado distinto. Não temos alcançado isso completamente, mas, sim, temos construído um Estado diferente: plurinacional, que reconheça todos os povos, de base comunitária, descolonizador, despatriarcalizador. Esses termos da legislação, essa legislação feita desde os povos, é o que nos assegura.

Então, se exigimos educação, que deixem de nos falar desde uma educação colonial, que deixem de nos dizer que aqui a história começa com a Revolução Francesa, que deixem de impor a nós a literatura que querem.

Podem nos chamar de “andino-cêntricos”, ou que queremos “inverter a tortilha” e oprimir os brancos e todas essas coisas que não têm sentido. Mas, essa legislação que vem dos povos, de ter posicionado esses conceitos de plurinacional, comunitário, descolonização, despatriarcalização, nos serve para ir fortalecendo nossa autonomia como povos e ir diminuindo o poder do Estado, ir limitando o poder o Estado. Porque o assunto é que se não colocamos essas coisas com nossas lutas, alimentamos um Estado que, chame-se “socialista” ou como se chame, segue beneficiando os ricos, as oligarquias, os que detém as terras, os grupos de poder que seguem detendo o poder, e nós vamos seguir pobres.

Nesse marco de descolonização e despatriarcalização, nós temos feito a discussão de que abortar é memória ancestral. Diferente da Argentina, que nos parece muito importante o que conseguiram por suas características e por sua legislação, mas diferente delas, para nós, é importante apagar do Código Penal a punição ao aborto. Excluir. Por que discutir? Não tem porquê discutir sobre aborto, sobre parir. É uma discussão que vamos fazer as mulheres, e vamos fazer em nossas comunidades.

Então, em nossa lógica, mais que legalizar o aborto passa pela despenalização, porque nessa lógica da descolonização, reconhecemos que nossas avós têm abortado ancestralmente, que há plantas medicinais que têm sido utilizadas para o aborto e, sobretudo, reconhecemos que somos parte da natureza, que somos parte da Pacha, que não somos superiores a nenhuma das espécies, e que todas as espécies, as fêmeas de outras espécies, abortam.

A feminista comunitária antipatriarcal, Adriana Guzmán/ Foto: arquivo pessoal

As lhamas, aqui nas montanhas, abortam no período gelado, as ovelhas abortam, as porcas abortam, porque sabem que não irão chegar ao fim dessa gestação porque é frio, porque o seu corpo não irá resistir, e esses produtos do aborto utilizamos em cerimônias para devolve-los à Pacha. Então, como alguém vai dizer que não, que abortar está mal, se todas as espécies o fazem? Se é uma discussão sobre a vida.

Há mais coisas que queremos fazer: que se despenalize e que se recupere essa memória ancestral. Porque com essa memória ancestral, vamos poder fazê-lo autonomamente. Não queremos deixar nossos corpos nos hospitais para que os médicos decidam como abortamos. Já sabemos o que nos passa quando parimos, todo o maltrato, a violência que recebemos, violência machista, misógina quando parimos. Não queremos nos expor a mesma lógica dentro do aborto. Nossos corpos sabem como parir, nosso corpos sabem como abortar.

Atualmente, a medicina ancestral para abortar também está desaparecendo. Porque nossos irmãos também têm feito desaparecer para que sigamos parindo filhos e sigamos fechadas dentro das casas. Então, temos que recuperar nossa medicina ancestral. Há irmãos e irmãs que são curandeiras e utilizam, por exemplo, remédio ancestral e misoprostol, porque nem todos os remédios, hoje, estão à mão, então têm aprendido a combinar essas duas coisas. Enquanto vamos recuperando nossa medicina, temos que usar o que é necessário.

Para nós, abortar está dentro da despatriarcalização e da descolonização, assim como nos reconhecer como lésbicas, como quewa (em aymara)¹, porque em nossa cosmovisão não existe somente feminino, masculino e nem obrigação de ser heterossexual, mas a imposição colonial e a igreja nos ensina isso.

A Constituição na Bolívia diz que não há discriminação por orientação sexual. Então, temos alcançado colocar na legislação, sim, mas só a legislação não é suficiente. Temos que discutir em nossas comunidades, em nossa cosmovisão também, de que temos tias lésbicas, temos tios homossexuais, e ninguém está controlando na comunidade a sexualidade.

Porque a reprodução da força de trabalho não interessa à comunidade, porque a comunidade não quer acumulação. Ao Estado, sim, interessa. Por isso o Estado nos controla.

Então, é isso, em termos de legislação sobre os corpos, sobre a autonomia dos nossos corpos. Falar desde a comunidade não quer dizer que a comunidade vai nos obrigar a parir, obrigar a ser heterossexual ou obrigar a casar. A comunidade hoje existe sem essas obrigações. Na comunidade de minha mãe há mulheres lésbicas, e não é graças à luta LGBT. Faz parte da memória da existência da comunidade.

¹ Em idioma aymara, a palavra quewa se utiliza para nomear os homens homossexuais. No entanto, segundo Adriana, as mulheres lésbicas aymara recuperaram o termo para se auto nomearem pois, segundo elas, antes da colonização, se utilizava para nomear todas as pessoas não heterossexuais. “Quewa não é lésbica em si, porque não existe tradução, mas é o não heterossexual, se quiser. Assim que eu me identifico: quewa. E a palavra é a prova de que a heteronorma não era e não é obrigatória nos povos”.

* Esta série é resultado de uma entrevista realizada com a Adriana Guzmán, mulher indígena lésbica Aymara da Bolívia. Dividida em quatro partes, apresentamos suas reflexões sobre a formação do Feminismo Comunitário Antipatriarcal na Bolívia, a importância da autonomia, o lugar da luta pela descriminalização do aborto, a discussão política sobre os fundamentalismos religiosos que tentam subjugar os povos indígenas e o exemplo de mulheres indígenas que lutaram contra o poder colonial até os dias atuais. É um convite à reflexão a partir de uma das referências latino-americanas na luta contra as opressões e as violências contra as mulheres.

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