Esta é uma retratação com Edna Dantas e Maria Gabrielly Dantas. Em 16 de março de 2025, o Catarinas publicou uma entrevista com elas que não refletia com precisão quem são e o que defendem. Este foi o caminho que encontramos para contar suas histórias de forma digna, valorizando suas trajetórias, respeitando seus posicionamentos e enaltecendo suas visões de mundo.
Uma revolução protagonizada por mulheres negras através da sustentabilidade. É assim que Edna Dantas, 55, e Maria Gabrielly Dantas, 27, mãe e filha, compreendem seu processo artístico e criativo de transformar materiais recicláveis em peças, soluções e tecnologias comprometidas com a defesa do meio ambiente. Tudo isso ancorado na vivência e na conexão que ambas nutrem com a própria ancestralidade.
Elas ganharam destaque na mídia ao construírem, em 2020, a Casa de Sal, uma residência feita com mais de oito mil garrafas recolhidas da Praia do Sossego, na Ilha de Itamaracá, região metropolitana do Recife (PE). O projeto representa uma reivindicação por moradia e ecologia popular e rapidamente chamou a atenção pelo caráter inovador, tornando-se a primeira casa de vidro do estado de Pernambuco e, possivelmente, a única casa de garrafas erguida na vertical no mundo.
A construção é um marco, mas representa apenas uma entre as diversas iniciativas sustentáveis que ambas vêm desenvolvendo ao longo dos anos, fruto de uma consciência ecológica herdada no ambiente familiar. Educadora socioambiental, Edna conta que aprendeu com seus pais, Pedro e Severina, a importância de reutilizar o que já existe, princípio que, anos depois, também guiaria a trajetória de sua filha, hoje designer de moda circular.
“Isso vem da minha infância. Para mim, é um modo de vida e uma maneira de ressignificar o que seria descartado. Carrego na minha história a memória dos meus pais. Minha mãe, hoje com 86 anos, é uma artista manual e nunca deixou de produzir suas peças sustentáveis”, lembra.
A moda como ferramenta de emancipação
O primeiro empreendimento foi a marca Cabrochas, criada em 2014, quando elas ainda moravam em Curitiba (PR). A mãe de Edna migrou para o Paraná ainda na juventude. Lá ela viveu a infância, a juventude e se tornou mãe (solo) dos dois filhos, Gabriel e Maria Gabrielly.
Naquele ano, ficou desempregada e, diante da necessidade de gerar renda, uniu seus principais conhecimentos: o empreendedorismo, artesanato e sua experiência com sustentabilidade, prestando assessoria a cooperativas de materiais recicláveis. “Sou formada em gestão pública, sou uma mulher que construiu toda a sua trajetória inspirada na própria família, mas que também carrega uma grande força de luta e organização dentro dos movimentos sociais”, destaca.
A palavra escolhida para nomear essa nova etapa traz o retrospecto dela e da filha. “Cabrocha” é um termo de múltiplos significados, associado principalmente a pessoas de origem miscigenada. Ao resgatá-las, elas reafirmam e celebram as raízes nordestina e afro-indígena e o gosto compartilhado pela costura.
“Eu já costurava, aprendi ainda menina com a minha mãe, naquelas máquinas de pedal. E antes mesmo de entrar na faculdade, minha filha também já tinha feito um curso de corte e costura”, conta Edna.
Inicialmente um brechó, a marca ganhou outras camadas com a entrada de Gabrielly. “Desde o começo, a gente traz a moda como forma de identidade e reafirmação. A Gaby fala muito isso: que, a partir do que ela veste, ela conta uma história. No começo, eu vendia de tudo, mas a Gaby chegou trazendo essa visão de identidade, de cultura, de jovem periférico que pode se vestir bem e afirmar sua identidade por meio da moda de segunda mão”, emenda.
Quando entrou na faculdade de moda, Gabrielly percebeu que os conceitos apresentados nas disciplinas, como upcycling — prática de transformar resíduos em peças com maior valor agregado — e moda sustentável, já faziam parte da história da sua família.
“Minhas primeiras referências são minha mãe e minha avó, mulheres artesãs. Não enxergo esse saber como algo distante, pertencente a grandes designers ou a uma hierarquia da moda. Foi aí que entendi que eu podia me reapropriar desse lugar, retomar algo que sempre foi meu. Eu não precisava cursar moda para reproduzir um padrão eurocêntrico ou colonial, mas sim para valorizar e dar continuidade a um saber ancestral”, diz.
Com curadoria e direção criativa compartilhadas, a marca passou a valorizar peças vintage com foco em identidade visual, acessibilidade e dignidade para pessoas negras e periféricas. Esse compromisso ganha forma tanto no cuidado com a estética quanto na escolha por técnicas tradicionais, como o crochê, macramê, fuxico, além do uso de materiais reaproveitados como palha, retalhos, conchas, CDs e o que mais a imaginação alcançar.
A Cabrochas e se desenvolveu sobre três pilares: beleza, planeta e mãos criativas. “Temos esse lugar da estética porque a nossa imagem, nossa ancestralidade, também é afirmada pela nossa beleza, pela nossa autoestima. É uma forma de reparação para que a gente se sinta bonita. O pilar do planeta é o de compreender a natureza, e a ideia das mãos criativas representa as mãos que fazem e entregam ao mundo algo que é sustentável, criativo, interessante”, explica a designer.
Nesse contexto, a marca adota práticas como a reciclagem, a circularidade e o upcycling não apenas como estratégias de reaproveitamento, mas como forma de manter vivos os saberes manuais e valorizar o tempo de vida investido em cada criação.
“Se pensarmos que muitos dos produtos que consumimos foram feitos, majoritariamente, por pessoas negras, por mulheres negras, é importante refletir também sobre o que significa descartá-los com tanta facilidade. Quando a gente vende o nosso trabalho, estamos vendendo o nosso tempo de vida. Então, quando eu recupero uma roupa ou recupero uma garrafa também estou resgatando o tempo de vida de alguém. Essa é a forma mais contemporânea de pensar reuso atualmente”, reflete Gabrielly.
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A indústria da moda é uma das mais poluentes do mundo, historicamente marcada pela exploração, especialmente de pessoas racializadas, e pelo descarte em massa de produtos. Então, caminhar na contramão do modelo hegemônico de produção e consumo, é pensar também em justiça social e ambiental.
Retorno ancestral e valorização do território
Alguns anos depois de criarem a marca, mãe e filha decidiram retornar a Pernambuco. Edna chegou à Ilha de Itamaracá em janeiro de 2019, e Gabrielly a acompanhou no mês seguinte. Apesar de ter nascido e crescido na capital paranaense, a designer de moda nunca se sentiu verdadeiramente pertencente à cidade e sofreu episódios de racismo que definiram essa relação.
Além disso, a decisão foi motivada pela busca por condições profissionais mais coerentes com os valores que defendem. Apesar de Curitiba ser reconhecida como uma “cidade sustentável”, mãe e filha optaram por um movimento de retorno às raízes, acreditando que Pernambuco oferece um terreno mais fértil para aprofundarem seus saberes e práticas.
“Trouxemos na bagagem uma trajetória de trabalho com sustentabilidade e nos deparamos com um território marcado pelo racismo ambiental. E aí começa uma troca: viver numa ilha cercada por belezas naturais, sendo muito acolhidas por essa comunidade que se conhece e tem um forte senso de coletividade. É nesse contexto que a gente entende a importância de oferecer nossa contrapartida”, diz Gabrielly.
Na ilha, começaram a atuar em parceria com os moradores, criando jardins ecológicos reutilizando pneus e outros materiais descartados. Foi nesse processo que perceberam a grande quantidade de garrafas de vidro abandonadas e Edna propôs a construção da Casa de Sal. Seguindo a mesma metodologia da casa, também construíram quatro eco-lixeiras e já retiraram mais de 13 mil garrafas da comunidade, que tem cerca de 1.800 moradores fora da alta temporada de verão.
Outras ações também contaram com a participação direta da população local. Um exemplo é o projeto “Moda Sustentável do Sossego”, que promoveu o encontro entre gerações e celebrou a intelectualidade presente no território. Em 2023, o projeto foi selecionado pela segunda edição do RE-FARM Cria, programa de fomento à moda brasileira promovido pela Farm. No ano seguinte, recebeu o Prêmio Periferia Criativa, concedido pelo Clube de Criação, organização dedicada à valorização da criatividade na publicidade.
Ainda em 2024, a marca integrou a programação do Festival O Canto da Sereia com o desfile Cabrochas: Manto de Lia. A apresentação destacou a importância da cantora e compositora Lia de Itamaracá na construção da identidade da Ciranda. A coleção homenageou o movimento cultural, artístico e estético que a trajetória afro-diaspórica de Lia representa e protagoniza.
Outro destaque é a parceria com o Greenpeace Brasil, em que uma bandeira da organização com 20 metros de diâmetro foi transformada em 100 jaquetas corta-vento e 100 ecobags. A iniciativa chamada “Vestir a Bandeira: Defendendo o Clima” foi inteiramente produzida na região metropolitana do Recife. As peças foram entregues à Casa 1, centro de acolhimento LGBTQIAP+ em São Paulo (SP).
A produção envolveu profissionais de diferentes territórios periféricos da região metropolitana do Recife, entre eles costureiras, modelista, assistentes e uma pessoa responsável pela serigrafia. “A gente utiliza o nosso trabalho para fortalecer também o nosso território”, afirma a designer.
Começo, meio, começo
Para Gabrielly, a experiência de realizar um trabalho que atravessa estados carrega um significado ainda mais profundo. Ela acredita que não é justo que alguém precise deixar sua terra de origem para acessar oportunidades dignas, como sua avó precisou fazer no passado.
Em sua visão, o Nordeste possui uma riqueza própria que precisa ser valorizada. Por isso, defende o fortalecimento da região para que profissionais e criadores não dependam da validação de grandes centros urbanos como São Paulo e Rio de Janeiro.
Além da questão geográfica, Edna e Gabrielly também apontam a burocracia e a dificuldade de acessar recursos e financiamentos como um dos principais entraves ao fortalecimento de iniciativas como as que desenvolvem.
Segundo elas, o que hoje se chama de “sustentabilidade” nada mais é do que a continuidade de práticas ancestrais: modos de vida em harmonia com a natureza, baseados na circularidade, no reaproveitamento e no respeito ao tempo das coisas. Mas mesmo as populações protagonistas dessas práticas, seguem invisibilizadas pelos mecanismos institucionais de fomento.
“Temos inúmeras comprovações do quanto o nosso trabalho é importante, revolucionário e emancipador. Mas também enfrentamos muitos estigmas. Sabemos que somos atravessadas por um sistema colonial e que ser uma mulher negra revolucionária não nos livra das tentativas constantes de nos subestimar”, analisa Gabrielly.
Hoje elas atuam com uma multiplicidade de frentes, negócios e pessoas. No caso da Cabrochas, a marca funciona como ateliê, brechó e acervo de roupas, acessórios e calçados. Mas também assume funções de direção criativa, produção de moda, styling, além da realização de cursos e oficinas. Já com a Casa de Sal, promovem turismo de base comunitária eo ecoturismo, recebendo visitantes que buscam relaxar e vivenciar a Ilha de Itamaracá de forma ecológica e comunitária.
Ações guiadas por uma filosofia que dialoga com o princípio africano de Sankofa – a ideia de olhar para o passado para resgatar saberes e respostas já construídos por gerações anteriores diante de estigmas e violências históricas.
“O melhor caminho que a gente pode traçar é se reconectar com os nossos mais velhos, com as nossas mais velhas, enquanto eles ainda estão aqui. Nêgo Bispo falava sobre isso: começo, meio e começo. Então, o futuro é continuar, recomeçar, sem abrir mão da nossa modernidade, mas também sem abrir mão da nossa ancestralidade”, completa Gabrielly.