O Enem está marcado para 1º e 8 de novembro; projeto de adiamento ainda precisa ser aprovado pela Câmara antes de seguir para sanção.

O Brasil sofre de um sério problema de sensibilidade. E não digo que somos pouco sensíveis. Somos capazes de chorar individual e coletivamente por um jogo de futebol, um beijo de novela e até pelo big brother. Somos ultra sensíveis para grande parte de nossa produção midiática, seja a exposta nos espaços documentais, como os jornais, ou nos espaços de ficção, como na nossa teledramaturgia. Mas aí está justamente o problema. Passamos décadas educando nossa sensibilidade para certas representações, mas não para outras.

Aprendemos a ser sensíveis com as Helenas, moradoras do Leblon, nos seus mais mínimos problemas amorosos, mas nunca com as empregadas das protagonistas, que mal tinham nomes e vida pessoal. A estas últimas cabia a fidelidade e cumplicidade com a patroa, quando “boazinhas” e, se inconformadas com sua posição, rapidamente alçadas à vilania. Aprendemos a ser sensíveis com as crianças brutalmente assassinadas, mas só com as dos bairros altos, quase nunca das favelas. Nossa herança escravocrata não nos permite.

Com muita insistência, as famílias de jovens negros e pobres conseguem fazer com que as mídias lhes chamem por um nome próprio e construam suas imagens de forma positivas. Quando conseguem.

Nesse exato momento de pandemia do Covid-19, pululam reportagens sobre uma classe média tendo que lidar com a limpeza da casa ou as atividades de cozinha pela primeira vez, porque suas empregadas domésticas estão impossibilitadas de comparecer às casas de seus patrões. No Pará, chegou-se a discutir se o trabalho doméstico poderia ser considerado uma atividade essencial, para minimizar o “sofrimento” das classes mais abastadas com as privações causadas pela pandemia.

Abundam, ainda, matérias jornalísticas nos portais de notícias sobre o enfrentamento do tédio causado pelo confinamento e até mesmo dicas de decoração de espaços de meditação em casa. Enquanto isso, grande parte da nossa população, a maioria, está tendo que lidar com as privações materiais mais básicas, como de alimentação, e as diversas problemáticas resultantes da precariedade das moradias brasileiras e a dificuldade de evitar aglomerações em regiões de elevada densidade populacional.

E como isso se relaciona ao ENEM? Bom, atualmente, 87,5% de nossos alunos estudam em escolas públicas. Mas a atenção da nossa mídia (e do nosso governo atual), via de regra, aponta para o cotidiano e as vicissitudes dos estudantes de escolas particulares. Em termos numéricos, esses 12,5% dos alunos representam muito pouco, diante dos outros, mas é deles que a tv e o MEC atual se condoem por, em tese, perder um ano dedicado a um Enem que corre o risco de não ocorrer.

Aproveitando-se disso, o governo federal lançou uma campanha de defesa da manutenção do ENEM desse ano, usando uma maioria de atores brancos interpretando estudantes que, de dentro de seus quartos perfeitamente munidos de estrutura de estudo, de suas arrumadas escrivaninhas, e de seu indefectível acesso à internet, falam de uma meritocracia que não se sustenta na desigualdade brasileira, em que mais da metade de nossas casas nem mesmo contam com saneamento básico.

Um número parecido de vivendas tem ainda mais de 2 morados por cômodo, inviabilizando espaços próprios para o estudo e um terço da nossa população nem mesmo tem acesso à internet. Se havia desigualdade gritantes nas estruturas das escolas frequentadas por nossos alunos, a desigualdade se acentua quando falamos de moradia no Brasil e da impossibilidade de acesso às instituições de ensino.

Para nós, brasileiros, é fácil nos sensibilizarmos com a dor de rostos brancos, com a perda e com os problemas das classes média e alta, que não precisam se preocupar tanto com as garantias materiais básicas. Passamos décadas e, para sermos sinceros, séculos, construindo e consumindo produtos culturais e artísticos que trabalharam em detalhes nossas sensibilidades para entender a subjetividade das classes sociais altas, para sentir suas angústias, as dores das suas perdas e das suas dúvidas frente ao mundo.

Conseguimos entender perfeitamente a dor de um sonho negado a um filho da classe alta, mas não alcançamos sentir com a mesma facilidade a angústia e a impotência de um impedimento estrutural dos sonhos de uma outra coletividade.

Lembram-se quando no Brasil se discutiam as implementações das cotas? Abundavam entrevistas, reportagens e lamentações sobre os filhos das classes médias e altas, frequentadores das escolas particulares, aquela minoria numérica explicitada logo ali acima. Diziam em tom choroso, com a indignação compartilhada pela reportagem, que haviam investido tanto em escolas particulares para seus filhos e que agora suas vagas nas universidades públicas estavam sendo “roubadas” pelos estudantes de escolas públicas.

Não se falava da violência que é uma elite se achar dona das vagas das universidades públicas ou da desigualdade que permite que algumas famílias possam investir milhares de reais anualmente na educação de seus filhos e outras não. Quase não se denunciavam as inúmeras vantagens nos exames seletivos que esses adolescentes de classes favorecidas tinham a priori, apesar da possibilidade de cotas, por contar com estruturas mais adequadas de ensino, classes extras, viagens e até mesmo, quem diria, alimentação suficiente. Nossos olhos eram provocados a olhar para uma classe, sentir com ela, chorar por ela. Ainda que a maioria de nós não pertencêssemos a ela, a nossa sensibilidade sim era dela, construída para ela.

Avançamos muito desde as primeiras Helenas do Leblon e desde as implementações das cotas, sempre com muito esforço, muita luta e muita elaboração e divulgação de outras produções e outras sensibilidades. Mas, essas conquistas, ainda não completas, estão sempre em risco e hoje enfrentam uma nova batalha, entre tantas, com a proposição da manutenção desse ENEM.

Bolsonaro e seus ministros precisam construir uma narrativa de minimização da pandemia, para suavizar sua inação e sua insensibilidade com as dezenas de milhares de vidas perdidas e com a intensa vulnerabilização ocasionadas pela pandemia, mas intensificadas pelo negacionismo do governo. E seus ministros, secretários e empresários apoiadores têm agido nesse sentido (veja, por exemplo, as atuações do Weintraub, da Damares, Regina Duarte e outros).

Para construir essa percepção e salvar-se politicamente, continuará provocando piadas, minimizações discursivas, promessas de remédios milagrosos e incentivando o “retorno à normalidade”, pois sabe que, conforme a pandemia cresce no Brasil, a cobrança por suas ações e sensibilidade também crescerão e deixarão a descoberto o que de fato essa pandemia é: uma crise gigantesca que exige um trabalho sério de articulação de recursos e ações que ele não está fazendo.

De um lado, se nega a seriedade e magnitude da crise da pandemia e, por outro, se exime de todas as consequências que ela inevitavelmente irá trazer e que estão sendo agravadas pelas suas próprias ações negacionistas e de incremento de conflitos. No caso da educação, promovem a acentuação das desigualdades no favorecimento de uma classe social em lugar de planejar estratégias de adequação e diminuição de danos para os alunos e suas famílias, como a maior parte dos países está fazendo (seja na distribuição de alimentos que remediariam a falta da merenda escolar, seja em assumir a responsabilidade por aumentar o acesso à internet ou ainda de articulação da relação entre instituições de ensino, professoras/es e pais, que, neste momento no país está acontecendo de forma individualizada com grandes prejuízos para todas as partes).

Qualquer gestor sério e minimamente responsável sabe que realizar um exame da magnitude do ENEM e com a diversidade de contextos do Brasil em um momento em que aglomerações são um perigo à saúde coletiva é simplesmente inviável. Mas colocar a ameaça de sua realização em pauta pode trazer ganhos políticos significativos.

Bolsonaro, Weintraub e aliados usam de nossas (in)sensibilidades construídas cotidianamente para continuar acentuando desigualdades, para fomentar conflitos e polêmicas e para manter sua narrativa de pé. Usam da vida de nossa juventude, dos nossos alunos e seus futuros para fazer jogo narrativo. Utilizam-se dos impeditivos estruturais de acesso à educação, já tão naturalizados por nossa sociedade, para fazer desse ENEM só mais um “pequeno, mas justificado, obstáculo”.

Diante de uma grande pressão popular e de movimentos sociais, o Senado à revelia do Ministério da Educação propõe um adiamento do exame, que ainda deverá ser votado pelo Congresso. Frente a mais essa derrota política, Weintraub começa a ceder pelo seu adiamento, ainda que sob protestos e após gastar sua pauta e dinheiro público com campanhas pela sua manutenção.

Adiar o ENEM é um dever civilizatório nosso, como sociedade que se quer mais justa, de defesa da democracia e da democratização dos acessos à educação.

A insistência de realização desse ENEM é um problema político e, como grande parte dos problemas políticos, uma questão também de sensibilidade.

*Júlia Costa é professora universitária e mestre e doutora em literatura. Atualmente, pesquisa as relações performáticas entre o dito “real” e o ficcional na literatura, no teatro e na cena política.

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